Pandemia: crianças mais agitadas e menos tolerantes
Pedagogos e professores encontram alterações significativas nas competências sociais dos alunos após mais de dois anos de pandemia. Crianças e jovens mostram danos socioemocionais.
Maior agitação, menor tolerância e crianças cada vez mais reféns das novas tecnologias. Estas são algumas das consequências - apontadas por docentes e especialistas em educação - do isolamento social a que os estudantes estiveram sujeitos nos últimos anos com os períodos de encerramento das escolas. Recorde-se que, entre março de 2020 e maio de 2021, o ensino presencial esteve interrompido, sendo as crianças do 3.º ciclo as que mais tempo estiveram em e@d (ensino à distância), num total de 97 dias (ver caixa).
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Segundo Helena Silva, professora de Português e Inglês, "as crianças têm apresentado mais problemas de socialização, nomeadamente uma menor tolerância para com as outras e também para com os adultos, professores ou assistentes operacionais". "Há uma maior agitação, não necessariamente uma maior agressividade, mas com menos tolerância, a agressividade psicológica acaba por ser evidente", explica. A docente é também diretora de turma e recebe o mesmo feedback dos pais, que "têm relatado as diferenças que notam em casa com os filhos". "Dizem que os filhos estão mais reféns das tecnologias e que sentem muito mais vontade em ficar em casa a jogar do que em estar com os amigos nos tempos livres, o que acaba por se notar também na escola", refere.
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Em tempo de aulas, nos intervalos, conta esta professora, "as crianças e adolescentes até podem estar sentados lado a lado, mas está cada um agarrado ao seu telemóvel e a jogar o seu próprio jogo ou nas suas redes sociais, sem interagir com os outros". "A falta de tolerância, o ensino à distância, a maior utilização das tecnologias e o acesso imediato à informação são fatores que contribuem para uma maior agitação nas escolas desde que começou a pandemia. As crianças são incapazes de esperar e querem o imediatismo da tecnologia não só na sala de aula, como também nas relações interpessoais. São aspetos que têm aumentado o fosso entre os jovens, os seus professores e os seus pares", explica. Segundo a docente, "nos 2.º e 3.º ciclos é onde se notam as maiores dificuldades, porque foram anos de construção da educação e de construção de identidade que se perderam".
"Há, realmente, alguns danos ao nível socioemocional"
Alfredo Leite, licenciado em Psicologia Educacional e diretor pedagógico do Mundo Brilhante, faz formação em contexto escolar a docentes, alunos e encarregados de educação. No trabalho que faz no terreno, constata muitas mudanças na comunidade escolar, reflexo de mais de dois anos de pandemia. "Têm-me chegado relatos de uma maior dificuldade na gestão das turmas e eu próprio, nas sessões com alunos, também sinto que há uma agitação. O tempo de ecrã (ensino à distância), o afastamento social e também o receio da covid marcaram as crianças e os jovens. Há questões psicológicas e biológicas que podem demorar a voltar ao lugar. Mas com o esforço de todos ultrapassaremos estes problemas. Se não fosse o esforço de muitos professores, o estado das crianças e dos jovens seria pior", sustenta.
O especialista observa maiores dificuldades nas competências de socialização "na faixa etária entre os 10 e os 12", embora admita sentir os efeitos do afastamento social "de uma forma geral, em todas a idades". Alfredo Leite mostra-se ainda preocupado com as angústias que as crianças não verbalizam. "Há, realmente, alguns danos ao nível socioemocional. E há os que têm problemas, mas que não verbalizam. Temos de dar espaço ao diálogo, às questões, às dúvidas, mesmo que eles não deem feedback de forma espontânea. Nas aulas também há objetivos e essa dinâmica dos objetivos, dos currículos, pode dificultar esse feedback, mas é importante que os docentes e as escolas consigam espaços e tempos para que aconteçam essas conversas. Somos seres sociais, precisamos da relação para crescermos como seres humanos", explica. Para o especialista, é necessário, também, apostar na "recuperação de professores", "muito cansados e stressados pelas vicissitudes da pandemia", de forma a que possam continuar a ajudar os alunos na recuperação das aprendizagens e das competências sociais.
Elisabete Alves, professora do 3.º ciclo, admite ter mais dificuldade para desempenhar o seu papel na sala de aula, por questões que se prendem com "uma agitação constante e um excesso de críticas entre colegas de turma". "O espírito de grupo-turma, tão característico entre os adolescentes, perdeu-se. Os alunos estão agora mais críticos, menos tolerantes e verbalmente mais agressivos com os colegas. Problemas que atribuo à falta de socialização provocada pela pandemia. Tenho trabalhado com os meus alunos no sentido de colmatar, aos poucos, essas falhas, mas torna-se, muitas vezes, frustrante, pois é um processo longo", explica. A docente salienta ainda sentir que "os pais estão mais preocupados com essas questões emocionais" e que "questionam de que forma podem ajudar os filhos". "Sentem, como nós docentes, que as crianças e adolescentes estão mais individualistas e têm mais dificuldade em partilhar e em aceitar posturas ou opiniões diferentes da sua, o que torna o papel dos professores e dos próprios pais mais difícil", conta.
Segundo Nuno Pinto Martins, fundador da Academia Educar pela Positiva, "apesar de ainda não existirem muitos dados disponíveis que liguem a pandemia a um aumento dos problemas de socialização ou de comportamento das crianças, alguns estudos recentes apontam para um impacto significativo". "É o caso de uma pesquisa realizada em agosto de 2020 pela Sociedade Brasileira de Pediatria, em parceria com a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, que pretendeu demonstrar a influência da pandemia nos mais novos. Cerca de 88% dos pediatras relataram que os pequenos pacientes apresentaram alterações comportamentais e 75% oscilações de humor".
É, pois, "natural", sustenta o especialista, "que os efeitos da pandemia se tenham refletido nas relações familiares". "A alteração de hábitos e de rotinas a que obrigaram os confinamentos - do dia-a-dia na escola passou-se ao dia-a-dia em casa, com aulas online e uma maior exposição às tecnologias - e o medo, a ansiedade e a insegurança que toda a conjuntura provocou em pais e filhos alteraram as dinâmicas familiares e, em muitos casos, a perceção que as crianças tinham sobre si próprias, sobre aqueles que as rodeiam e sobre o mundo à sua volta. Com o regresso à "normalidade", muitas dessas angústias e anseios terão sido transportados para o contacto diário com colegas, educadores e professores, manifestando-se na forma de comportamento: maior irritabilidade, sentimento de frustração e menor tolerância ao erro, por exemplo", explica.
Nuno Pinto Martins aponta os adolescentes como um dos grupos etários mais prejudicados pela falta de socialização. "Por se tratar de uma fase do desenvolvimento em que a socialização é indispensável, sobretudo com os seus pares, pois é junto deles que procuram descobrir a sua identidade e reforçar ideias e convicções, terem de ficar privados desse contacto durante tanto tempo foi muito altamente prejudicial", afirma. Responsável por formações na comunidade escolar e sessões de kids coaching, Nuno Pinto Martins afirma haver uma grande preocupação por parte de pais e professores para colmatar dificuldades. "De uma forma geral, os pais e os educadores estão preocupados. Como já estavam antes da pandemia, talvez um pouco mais agora. Os desafios que me fazem chegar nas formações sobre educação positiva e nas sessões individuais de kids coaching continuam a ser os mesmos: os comportamentos desafiadores e agressivos, a falta de aproveitamento escolar, a dificuldade em lidarem com a frustração, a baixa autoestima... Sentem que lhe faltam estratégias e ferramentas para gerir estas situações e muitos sentem-se exaustos", conta.
O especialista aconselha a comunidade educativa a "dar voz às crianças e aos adolescentes, ao que pensam e sentem". "Envolvê-los no processo educativo, para que se sintam parte da solução. Estar atento aos sinais e, sobretudo, estar mais presente. Nada disto significa a ausência de regras, limites ou rotinas nem que os pais, educadores e professores abdiquem do seu poder de autoridade (que é diferente de autoritarismo), mas sim que assumam um papel orientador, enquanto referências que são e que modelam comportamentos no dia-a-dia".
dnot@dn.pt
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