Processos de escutas da PIDE: "Os telefones têm ouvidos"

Os investigadores investigam, os coscuvilheiros escutam. As escutas telefónicas constituem uma das mais severas intromissões na vida privada dos cidadãos. Muito apetecida pelas secretas, a interceção telefónica foi amplamente utilizada pela polícia política do Estado Novo. Dirigidas a reprimir a opinião e a generalizar o medo, as escutas incidiam sobre a atividade política, mas também sobre a reputação profissional, o ambiente familiar, a permeabilidade à corrupção ou amantes. Um livro sobre o passado, não esquecendo os perigos do presente.
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Alfredo Caldeira e António Possidónio Roberto estudaram mais de 500 processos de escutas da PIDE, realizadas nos últimos 10 anos de ditadura. Identificaram 89 150 dias escutados. Em Os telefones têm ouvidos, agora publicado, apresentam dados e conclusões. As possíveis.

Nos Anos 60, os telefones tinham ouvidos. Agora, têm câmaras e enorme sofisticação. Os telefones de hoje são gravadores, os tempos, de permanente vigilância. Porém, e apesar dos meios rudimentares da época, se comparados, este livro é muito assustador. Porquê?
Alfredo Caldeira (AC) - O que caracterizava esse período era o "quero, posso e mando". As escutas eram feitas em segredo, porém, provocavam um grande medo. As pessoas tinham medo. Toda a gente achava que era escutado.

Era?
AC - Não era bem assim. Havia escutas esporádicas, outras que duravam quatro anos. E mais, até. De todas elas, a polícia política podia fazer o queria.

Havia um comando único?
AC - Nos Anos 60, o sistema estava bem organizado, com um comando único. Havia um indivíduo que mandava naquilo: o responsável da PIDE, Álvaro Pereira de Carvalho. Concentrava todo o poder das escutas. Tanto que, nas transcrições, era ele quem sublinhava e punha notas. E que depois as levava, ou não levava, aos superiores e ao Presidente do Conselho. Este era um poder gigantesco.

Tinha na mão a vida das pessoas.
AC - Ontem, como hoje, as pessoas contam tudo ao telefone. E contam mais da vida privada de que dos negócios ou da política. Para uma polícia política, esse tipo de informação era também muito importante.

António Possidónio Roberto (APR) - Estas escutas contavam, naturalmente, com a colaboração dos TLP, dos CTT e da Rádio Marconi. Os CTT e o TLP sabiam. E estavam todos autorizados.

O que é que as escutas procuravam? Que eficácia tinham?
AC - As escutas não viam a luz do dia, não eram incluídas nos processos-crime. Nem os advogados de defesa as conheciam. Raramente eram mostradas às vítimas. A polícia rodeava as escutas de um grande segredo, o que as tornava ainda mais importantes.

Não serviam de prova?
AC - Não eram apresentadas.

Quer dizer que alguém apanhado numa conversa telefónica a criticar o regime não seria preso?
AC - Nunca. As escutas podiam ser usadas, mas não serviam de prova.

Qual era o objetivo?
AC - Um dos grandes objetivos era a captura.

Provavelmente, os elementos mais procurados estavam na clandestinidade. Quem aparece nestas escutas?
AC - Desde logo, quem tinha telefone. O operário têxtil não aparece. Aparece o doutor. Portanto, há toda uma área de resistência que não está aqui. A não ser, de modo indireto: o advogado que fala do cliente ou, por exemplo, de uma greve. Depois, há a questão dos assinantes. Um caso flagrante é o de Arnaldo Matos. O Arnaldo Matos aparece numa escuta, mas o telefone está em nome da mulher. Portanto, não aparece na lista dos escutados.

Os telefones identificáveis podiam não estar em nome das vítimas. Como identificava a PIDE quem estava ao telefone?
AC - Muitas vezes, não identificavam. O número de pessoas que usava o telefone era realmente muito pequeno. Mesmo quando já havia cerca de 400 mil telefones, não se faziam muitas chamadas. E quem as fazia era geralmente o dono da casa. Quando eram familiares, a PIDE começava a perder-se.

Como era feita a gestão dessa tal conta corrente entre a PIDE e os TLP?
AC - A PIDE limitava-se a enviar um ofício. Tudo se passava com imensa rapidez, no próprio dia. Os agentes da PIDE iam frequentemente à Central Telefónica.

Qual era o grau de sofisticação das escutas? Utilizavam-se já pequenos microfones escondidos?
AC - Nas gravatas, por exemplo. Os alfinetes de gravata eram muitas vezes microfones. Aliás, o equipamento, à época, era moderno. Mal a pessoa mexia no telefone, o sistema disparava, começando imediatamente a gravar.

E o célebre clique?
AC - Era raríssimo. Só por inoperância.

Escutavam-se também pessoas do regime. Qual era o objetivo de escutar Adriano Moreira ou Kaúlza de Arriaga? Ou Cecília Supico Pinto?
AC - Era o sistema do medo. Toda a gente suspeitava de que era escutado. O Adriano Moreira achava que era escutado. E era, de facto. Não diria que eram escutados pela PIDE achar que podiam ser dissidentes. Não. A PIDE escutava aqueles sobre os quais interessava saber alguma coisa.

Salazar ou Marcelo Caetano teriam sido escutados?
AC - Não é certo que nunca tenham sido escutados. A polícia tinha acesso a telefones confidenciais. Quais? Não os identificámos. Porém, lembro-me de ver telefones ditos confidenciais. Mas não estão nas transcrições.

As escutas serviam também para obter informações que poderiam servir para chantagear?
AC - Pereira de Carvalho, numa entrevista reproduzida no livro, insinua claramente que o antecessor dele usava as escutas para chantagem.

Há casos desses transcritos?
AC - Não há, mas há dados estranhíssimos. Aparece, por exemplo, uma referência ao "Ministro do Biafra". Portugal apoiava a Guerra de Secessão do Biafra, então aparece o misterioso Ministro do Biafra. Esse nome existe, esse tipo existe, de facto. Mas aparece ligado à prostituição.

Procurava-se a prostituição, a homossexualidade, as relações familiares?
AC - Era o que mais lhes interessava. É sempre isso o que mais lhes interessa.

Há relatos de chantagem?
AC - Há casos de chantagem clara. Antes e depois de 25 de Abril. Até entre os da situação, quer dizer, entre eles.

Que escutas chegavam ao Presidente do Conselho?
AC - Todas. Quer dizer, todas as que a polícia quisesse. Numa carta dirigida a Salazar, o diretor da PIDE, Silva Pais, informa que andou a escutar a Cecília Supico Pinto, do Movimento Nacional Feminino. Descobriu que andava metida com vários tipos, referindo em especial Pedro Cabrita, um homem da extrema-direita.

Tinha-a na mão. A PIDE, mas não só. No fundo, as escutas estavam acessíveis a várias pessoas -- aos funcionários dos TLP, às datilógrafas. Como controlava a PIDE esse perigo?
AC - A polícia pôs ordem nos serviços. Todos os passos eram extremamente controlados. As datilógrafas eram controladas.

Há casos de escutas determinadas apenas por questões pessoais -- inveja, ciúmes?
AC - Não aparecem relatados, mas que existem, existem. Há escutas que não têm explicação clara. Por que razão foi escutada fulana de tal se não se lhe conhecia atividade política? Porque lhe conheciam atividades sexuais. Atividades que podiam expor pessoas que, essas sim, interessavam à polícia. Era um mero percurso, um jogo permanente.

Portanto, as escutas dividiam-se em duas vertentes: a vigilância da oposição política, pura e dura, ou seja, procurar saber o que é que os oposicionistas andavam a fazer...
AC - Daí o grande interesse pelos estudantes, pelos deputados.

No livro refere que entre os mais escutados estavam também jornalistas, advogados, corpo diplomático. A lista termina com a referência a um jogador de futebol. Quem é?
AC - O Coluna. O Coluna coletava dinheiro para a Frelimo. Conta-se que quando o Eusébio se recusou a contribuir, o Coluna lhe pregou um par de bofetadas. E ele contribuiu. De resto, o Coluna foi tratado em Moçambique como um herói.

APR - Era um senhor.

...a segunda vertente é, obviamente, chantagista. Ou seja, a PIDE procurava os podres da vida privada.
AC - Isso é muito evidente. Nas escutas, mas não só. Por exemplo, no 25 de Abril, foi encontrado no gabinete de Silva Pais um vasto processo sobre uma empresa de construção civil.

O livro faz referência, também, a informadores. Qual era o grau de penetração na sociedade portuguesa dessa gente?
AC - Na revolução, a primeira coisa que a PIDE fez foi destruir a informação sobre a rede de informadores. Cada agente da PIDE podia ter, e tinha, vários informadores aos quais pagava. Havia até os que, fingindo ter informadores, se pagavam a si próprios.

Os informadores ganhavam bem?
APR - Os informadores sobre Humberto Delgado ganhavam muito, muito bem. No caso da Guerra Colonial, havia também os espiões.

Em Portugal dava-se formação?
APR - Nenhuma. Eram tipos que se ofereciam por qualquer razão. Havia muita oferta.

AC - Há o caso de um dirigente da PIDE que, a certa altura, tem uma informadora. Como fazia e assinava os relatórios da amante, tem informação importante. Com o dinheiro que recebia, pagava o apartamento da senhora. A amante nunca soube de nada. É este tipo de secretismo que existia.

Por "tipo" leia-se amantes e sexo?
AC - E dinheiro. Os três pontos andam ligados.

APR - Há uma história do Silva Pais. A certa altura, chama ao seu gabinete o Manuel Vinhas, grande industrial à época. Ouvimos essa gravação e constatámos que era diabólico. Percebia-se que o Vinhas estava a tremer.

AC - Silva Pais tinha na secretária um botão que acionava um gravador que funcionava para conversas presenciais e telefónicas. Ou seja, também se autoescutava.

APR - Ainda a propósito de informadores, a PIDE conseguia entrar dentro das empresas.

AC - A PIDE fez uma coisa bem esgalhada -- privatizou uma parte do seu serviço. Ou seja, fez contratos com as empresas. Fornecia informações sobre os trabalhadores - quem eram os comunistas, se ia haver greves, etc. -- e recebia muitos milhares de contos em troca. Que eram geridos sem se saber como. Não há contas desses pagamentos.

A correspondência violada era outra fonte de informação. Havia os carteiros de confiança.
AC - Contámos no livro a história do carteiro de Ponta Delgada. Um tipo que se dirige à Direção da PIDE, queixando-se de que o carteiro de confiança que lhe leva as cartas está desmascarado porque o posto da PIDE é por cima de um café muito frequentado. Quer dizer, todos conhecem o homem.

Uma das novidades do livro é esta: a 3 de dezembro de 1973, a poucos meses da revolução, portanto, a PIDE deixou de escutar os militares. Qual é a vossa interpretação para isto?
AC - A polícia política foi sempre dirigida por militares. O Silva Pais era major, os principais dirigentes da polícia vinham da GNR ou tinham passado pela PSP. Portanto, era um perigo se os militares, esteio do regime, se revoltassem. A PIDE preocupava-se muito com os militares e, já agora, deixem-me dizer, com a Igreja. Com a crescente influência de católicos progressistas, a PIDE desata a escutar padres e freiras - Felicidade Alves, Frei Bento Domingues, enfim. Mas, voltando aos militares. No livro são apresentadas três explicações: a força do novo subsecretário de Estado do Exército, o Viana de Lemos, alguém muito próximo de Costa Gomes, com poder para amansar as tropas. Outra hipótese tem a ver com a estrutura de segurança interna criada por Caetano no final do regime, que no fundo entregava a Costa Gomes a segurança interna, deixando a PIDE de alguma forma a ele submetida. E uma terceira hipótese: as escutas não pararam, apenas passaram a ser feitas por outra via. Porque não acredito que a PIDE tenha parado. Seria de uma incompetência total.

APR - A verdade é que não temos registo de escutas a militares, a partir daí. Nada. Há a reunião de Óbidos, no dia 1 de dezembro. E, no dia 3, cortam as escutas.

Dizem que as dificuldades encontradas nesta investigação impediram o apuramento da realidade de maneira cabal. Desconhece-se o destino dos equipamentos de escuta, desapareceram arquivos.
AC - Este trabalho é sobre o CI3, arquivo em que de facto encontrámos algumas particularidades. Por exemplo, a quebra da numeração sequencial. Não faz sentido, sendo a PIDE a burocracia que era. Mais: aparecem números rasurados. Muito estranho. Terceiro, há nomes modificados. Ora a PIDE não se enganava nos nomes e, portanto, esta desorganização leva-nos a crer que aconteceu um "vasculhanço".

Alfredo Caldeira pertenceu à Comissão de Extinção da Pide (74/75), António Possidónio Roberto foi coordenador dos Arquivos (74/75). Qual é a vossa interpretação? Desconfiam de quem, de que organizações?
AC - Julgo que terá a ver com o 11 de Março. Tem a ver com a luta política. No meu caso, fui corrido na Comissão de Extinção da PIDE dias antes do 11 de Março. Ninguém me disse a razão.

Por não ser ortodoxo? Estamos a falar do PCP.
AC - Posso dizer que foram requisitados oficiais milicianos, geralmente formados em Direito, para prestar serviços na Comissão de Extinção. Para fazer processos. Gente que não tinha qualificação para tal.

Sabemos quem são essas pessoas?
APR - Temos assinaturas, mas não reconheci nenhuma.

AC - Tem de haver guias de marcha, mas isso, por causa da proteção de dados, está inacessível.

Quem é que nomeava os membros da Comissão?
AC - O MFA.

Quem o exonerou?
AC - A ordem não foi assinada por ninguém, foi de boca. Fui nomeado pela Junta. Quem me exonerou, desconheço.

Em 1974 ainda encontraram bobinas?
APR - Sim, havia gravações.

O que é que lhes aconteceu?
APR - Não sabemos. Não mexíamos nas escutas.

AC - A luta política em volta da Comissão de Extinção foi muito grande. O PCP entrou de imediato. Porque tinha capacidade e sabia o que estava em causa.

APR - Sabia o que queria.

Há o caso de uma embaixada que terá oferecido os seus serviços a troco de escutar outra.
AC - A Embaixada da República Federal Alemã terá oferecido os seus serviços a troco de escutar a Embaixada da RDA. A da RDA fez o mesmo: serviços a troco de escutar a embaixada da RFA. Portugal era um país muito importante na época. Estavam cá todos. Lembro-me de ter conhecido na Comissão de Extinção dezenas de tipos extremamente importantes, feitos jornalistas. Era um corrupio de gente.

O arquivo da PIDE está dividido em vários subarquivos. Ainda há partes inacessíveis?
AC - Este material não estava acessível. Fizemos uma proposta ao diretor da Torre do Tombo, que achou ser altura para estudar estes elementos. Até para a própria Torre saber o que tem.

É então um mito que tenham desaparecido grandes dossiers?
AC - A esmagadora maioria do arquivo da PIDE está na Torre do Tombo. Mais: é possível chegar a muito do que falta fazendo cruzamentos. Agora, há vários casos estranhos. Um deles foi testemunhado pelo então comandante da PSP de Lisboa: saíram da sede da PIDE, na António Maria Cardoso, para o Aeroporto de Figo de Maduro, e daí para um avião da Aeroflot, uma série de documentos. Há um outro caso: autorizado por alguém, o PCP retirou dos arquivos documentos que diziam respeito a casas clandestinas e imprensa prisional.

APR - Praticamente, só o PCP e a Luar -- o PS pouco -- sabiam analisar os documentos. Uma das preocupações do PCP era descobrir os denunciantes, para correr com eles do partido.

AC - Na verdade, o regime não extinguiu da melhor maneira a PIDE. Não responsabilizou os agentes pelos crimes que possam ter cometido. No entanto, fez uma coisa: fechou-a durante dois anos. Alguns deles estiveram presos, impedidos assim de passarem para os partidos. Mas ficou muita coisa por resolver.

Foi um desleixo intencional?
AC - A Presidência do Conselho, a Assembleia da República, os arquivos nacionais deviam ter preservado estes documentos com outro cuidado.

Devia ter sido criada uma Comissão de Vítimas que avaliasse os pedidos de acesso. Devo dizer que não foi fácil andar a mexer na vida privada de outros. Obviamente, sabíamos o que queríamos fazer, que não estávamos a prejudicar ninguém, mas nunca perdemos de vista a importância de preservar a reserva.

O que é legitimo dizer sobre o desaparecimento para Moscovo, ou para os Estados Unidos ou para a França, de arquivos da PIDE?
AC - É mais grave o caso de Paris. No dia 25 de Abril, o subdiretor da PIDE estava em Paris. Motivo: uma reunião com o chefe da secreta francesa sobre uma operação contra a Guiné-Conacri. A Operação Safira. É este quem lhe anuncia a revolução. O Barbieri (Cardoso) quase desmaiava. Não sabia de nada. A partir daí, a França temeu que a populaça se apoderasse da Operação Safira e de outros documentos comprometedores. Que os franceses estiveram em Lisboa, estiveram, o que levaram não se sabe.

Que marcas deixaram as escutas da PIDE no povo português?
AC - O medo. Os títulos dos jornais, as divulgações "à sorrelfa" de escutas e de interrogatórios, gravados e filmados, provocam medo. As pessoas têm cada vez mais medo de falar ao telefone.

Qual é o melhor instrumento para limitar abusos de poder?
AC - O Estado de Direito. As notícias que vão saindo deixam-nos a sensação de que há escutas a mais. Que um pobre de um secretário de Estado tenha sido escutado durante 4 anos é preocupante. São horas e horas de escutas. Quem as ouve? Quem escolhe os visados? Quem controla quem escolhe e ouve? Quer dizer, há que criar um sistema de grande veracidade sobre o apuramento dos casos de crime.

O futuro será a China, com a vigilância através de dados biométricos?
AC - Não há dúvida. Infelizmente. Há, hoje, um sistema perigosíssimo que nos encosta à parede. Esta é uma área complicada, demasiado atual. Este livro é sobre o passado, não pretende ser sobre o presente, mas são atuais as palavras de velho chefe de brigada da PJ. "Sabe, os investigadores investigam. Depois, há os coscuvilheiros. Esses escutam".

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