O corpo humano, um ecossistema complexo, alberga triliões de microrganismos, entre outros, bactérias, fungos e vírus designados coletivamente por microbiota. Diferente da designação de microbioma, respeitante ao conjunto dos genomas das comunidades de microrganismos que coexistem no ecossistema humano. A interação entre estes microrganismos tem impacto no desenvolvimento, na saúde e no nosso bem-estar. Fatores genéticos, ambientais e idade influenciam a composição do microbiota/microbioma ao longo da vida. Daí, o estudo do microbioma humano ser relevante. Por se tratar de uma área de investigação em franco desenvolvimento, tributária, por exemplo, da metagenómica, a Academia das Ciências de Lisboa lança este mês de março o ciclo de conferências Microbioma Humano. A abrir o primeiro dos três momentos de reflexão, a 13, 20 e 27 deste mês, estão Ana Faria, docente e investigadora da Nova Medical School e João Paulo Gomes, investigador no Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. “Os micróbios que há em nós. A metagenómica na procura do microrganismo escondido” serve de ponto de partida à conversa que se segue. .Tendemos a considerar os ecossistemas como algo que nos é exterior. Na realidade, o nosso corpo é um ecossistema complexo. Albergamos triliões de microrganismos. Julgo que seria interessante começarmos por perceber de que organismos falamos. Sim. O nosso organismo é colonizado por microrganismos em diferentes localizações, na pele, no sistema respiratório, na boca e em grande quantidade no intestino, por exemplo. São sinais da evolução das espécies e é um ecossistema que nos permitiu evoluir enquanto espécie, em que criámos e mantivemos uma relação próxima com estes microrganismos. E não estamos a falar só de bactérias, mas também de fungos, leveduras e vírus, por exemplo. .Neste contexto referimo-nos a microbioma e microbiota. Quer explicar-nos a diferença entre ambos? O termo microbiota refere-se a uma comunidade que ocupa um local ou ambiente específico. Já o termo microbioma é mais amplo e reflete uma comunidade de microrganismos, mas também o ambiente onde se encontra, incluindo características do hospedeiro. .É lícito afirmar que o microbiota é como uma impressão digital de cada ser humano? Com o avanço tecnológico que nos permite conhecer cada vez mais e em mais detalhe a constituição e abundância dos microrganismos que nos coloniza, eu diria que caminhamos nesse sentido. Cada um de nós é portador de um microbiota único. . Há uma relação intrincada entre estes microrganismos e entre estes e o hospedeiro com impacto na saúde e bem-estar geral do indivíduo. Pode dar-nos alguns exemplos dessa relação? Há muito tempo que a existência destes microrganismos é conhecida, mas não a sua função. Limitávamo-nos a olhar para o microbiota intestinal como um auxiliar na digestão de fibras. Hoje, conhecemos um pouco mais e, para além do papel fundamental na digestão de fibras e a consequente produção de ácidos gordos de cadeia curta, sabemos que há outros mecanismos de interação entre microbiota e o hospedeiro. Por exemplo, a produção de metabolitos do triptofano pelas bactérias intestinais como o indol e os seus derivados, que têm um reconhecido papel na produção de GLP-1 no hospedeiro com consequente melhoria da resistência à insulina e da tolerância à glicose. Ou a produção de trimetilamina, um metabolito bacteriano gerado a partir da colina ou da carnitina, que estão presentes na nossa alimentação, nomeadamente nas carnes vermelhas, e que se associa a um aumento do risco de doença cardiovascular. .Há fatores que influenciam a composição do microbiota/microbioma do hospedeiro? Sim, fatores genéticos e fatores ambientais. Para referir apenas alguns, posso citar a via de parto, o primeiro tipo de alimentação, a exposição a antibióticos, o stresse, a idade e a alimentação. .Referiu na sua resposta anterior o fator idade. Que alterações sofre o microbiota ao longo da vida e há estratégias que permitem modular essas alterações? Os primeiros mil dias de vida são fundamentais para o estabelecimento do microbiota, com um papel importante no desenvolvimento de imunotolerância, e por isso o interesse do seu estudo no contexto das doenças autoimunes. O microbiota estabelece-se durante a infância e, por volta dos dois ou três anos de idade, temos uma composição relativamente bem estabelecida, e que será o microbiota base na vida adulta. No entanto, há flutuações ao longo da vida, quer pela exposição a fatores ambientais, como fármacos, mas também e muito influenciado pelo estilo de vida, como o stresse, a prática de exercício físico, a alimentação. Sabemos que a dieta é um dos fatores que mais facilmente modula a composição do microbiota e por isso a adoção de regimes alimentares com alimentos que promovem o crescimento e manutenção de bactérias benéficas, podem ser positivos para a saúde. O padrão de dieta mediterrânica é um exemplo disso. .Ao longo da vida, com a idade, o microbiota vai diminuindo em diversidade e em riqueza, o que torna ainda mais relevante as intervenções ambientais de forma a manter um microbiota mais benéfico e funcional. . O tema da sua conferência prende-se com a “metagenómica na procura do microrganismo escondido”. Suscita-nos duas questões: o que é a metagenómica e que “microrganismo escondido” é este a que se refere? A metagenómica é a informação genética de uma comunidade de microrganismos. Hoje, conseguimos a partir da metagenómica identificar os microrganismos de uma comunidade, se já tiverem sido identificados e listados em bases de dados. Há ainda uma parte de informação genética que está presente que não está identificada. Tem sido feito muito trabalho na identificação de bactérias, mas outros microrganismos como arqueia, fungos, vírus, são ainda muito pouco conhecidos, mas terão com certeza um papel nesta comunidade. .Também à conferência leva a questão do microbiota eubiótico e disbiótico. São duas referências estranhas ao leigo nesta matéria. Quer explicá-las e de que forma se relacionam com a doença? É aceite a definição de um microbiótico disbiótico para uma comunidade de microrganismos em que há um aumento de microrganismos patobiontes [habitualmente não causam danos à saúde, porém, em certas situações, possuem um potencial de induzir processos inflamatórios], uma diminuição de microrganismos benéficos ou uma redução da diversidade. O termo eubiótico refere-se a um microbiota equilibrado, que não tem estas características e que se associa a saúde, ou não se associa a doença. Uma das grandes questões que temos é a definição da constituição de um microbiota eubiótico, porque como referiu, o microbiota pode ser visto um pouco como a nossa impressão digital, e as característicos de um microbiota eubiótico podem ser diferentes entre indivíduos. .A compreensão da relação entre os microrganismos e os seus hospedeiros humanos apresenta oportunidades para abordagens inovadoras na medicina. Pode dar-nos alguns exemplos concretos? Sim. À medida que conhecemos mais sobre o microbiota e a forma como interage com o hospedeiro, surgem estratégias de intervenção mais direcionadas e personalizadas. A utilização do transplante de microbiota fecal, que já é indicada para o tratamento de Clostridium difficile, está a ser alvo de estudo com o objetivo de correção de microbiota em doenças com uma grande componente disbiótica, como por exemplo na doença metabólica. Mas julgo que uma inovação maior será quando conseguirmos identificar microrganismos em falta numa determinada doença e tivermos disponível consórcios de microrganismos com ação comprovada na recuperação do microbiota com consequente benefício clínico. Uma intervenção mais direcionada e personalizada. .Desenvolve na Nova Medical School uma linha de investigação sobre a compreensão do efeito da dieta no organismo, e o papel central do microbiota nesta relação. Mais especificamente, no que está a trabalhar? Temos feito nos últimos anos trabalho de intervenção nutricional em populações saudáveis e com doença, nomeadamente obesidade e diabetes. Verificamos que a intervenção nutricional com alimentos fermentados, com alguns tipos de fruta por exemplo ou com a adoção de um padrão alimentar mediterrânico, é eficaz na promoção de característica benéficas do microbiota, como aumento da diversidade de riqueza do microbiota, com consequente benefício para a saúde. .ACOMPANHE AQUI A CONFERÊNCIA:.Link: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/98021337850 .ID Reunião: 98021337850 .O ciclo de conferências Microbioma Humano prossegue a 20 de março subordinado ao tema “Microbioma e Saúde Humana”, com a presença de Luísa Peixe, docente e investigadora no Laboratório de Microbiologia da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto.