Londres. Este dia de janeiro de 1974 começou mais uma vez com frio, neve e a escuridão própria das manhãs de inverno nesta latitude, o que me deixa sem vontade de sair de casa e enfrentar a viagem diária de comboio que terei de fazer até Londres. São sete da manhã, às nove entrarei no escritório para mais um dia de trabalho, traduzindo relatórios de acidentes marítimos de espanhol para inglês, e às seis da tarde espera-me o Birkbeck College e as aulas do curso de Psicologia em que me matriculei, para regressar depois a Farnham e chegar a casa já muito depois de a minha mulher ter acabado de jantar..De segunda a sexta-feira é esta a minha rotina, quebrada ao fim de semana pelos nossos passeios pela cidade e as noites de música que me fazem feliz, mas, apesar de tudo, uma rotina mil vezes preferível à perspetiva de enfrentar a guerra anacrónica e absurda que me levou a deixar Portugal há pouco mais de um ano..Depois de ter casado em setembro de 1972, fui incorporado no Exército e fiz nas Caldas da Rainha a recruta, já com a decisão tomada de deixar Portugal caso não fosse chamado para o Alerta Estar, o batalhão onde músicos, atores e artistas de outras áreas preparavam espetáculos para as tropas portuguesas nos territórios ultramarinos. Quando foi afixada a minha especialidade, compreendi de imediato que o facto de o Quarteto 1111 ter várias canções proibidas pela censura do Estado Novo tinha-me impedido de ser selecionado para o único tempo de serviço militar que admitia cumprir. A minha mulher veio uma semana antes de mim para Inglaterra, passei a fronteira a salto no Minho e, chegado a Madrid, embarquei no avião que me trouxe a Londres, deixando para trás um país onde a pobreza, o analfabetismo e a ausência total de liberdade eram uma aberração na Europa democrática que vim encontrar..Respira-se aqui uma liberdade e modernidade inspiradoras, a oferta cultural é fabulosa, poderia dizer que apenas me falta o sol e a gastronomia do meu país para ser feliz. No entanto, em muitas manhãs como a de hoje as saudades apertam, sinto, acima de tudo, a ausência da família e dos amigos que deixei para trás e sonho com uma mudança política que transforme o meu país num estado democrático onde cada um possa livremente expressar o que sente, mas, acima de tudo, que acabe com uma guerra e política coloniais que convêm e beneficiam apenas alguns, em prejuízo de milhões de portugueses..Vivo, portanto, assim dividido entre tudo o que Londres me pode oferecer e Lisboa não e o que Londres nunca terá e Lisboa tem..Ao primeiro sinal de mudança em Portugal, sinto que farei as malas e regressarei ao meu país. Até lá, no entanto, demore o tempo que demorar, estou determinado a ser livre e feliz neste país que me acolheu como um amigo de braços abertos. Está na hora de sair de casa e apanhar o comboio, para enfrentar o inverno e a vida..Texto recolhido por Alexandra Tavares Teles