Fevereiro de 1974. Morava desde 1973 na zona do Jardim das Amoreiras, frente à vila operária Bagatela, num rés-do-chão com três quartos e um quintal, que dividia com duas amigas que tinham estado em Paris comigo. Foi fácil encontrar casa. Conseguimos convencer a senhoria a reduzir a renda mensal em 500$00. Pagávamos 3.000$00, precisamente o que eu ganhava, enquanto empregada de escritório e explicadora de francês..Eu tinha 23 anos. Tinha frequentado o Liceu Francês em Lisboa, da infantil ao Baccalauréat, e seguido para a Suíça para frequentar o curso de Literaturas Comparadas. Mais do que aulas frequentei, no entanto, manifestações com ecos do Maio de 68 parisiense. Sem avisar os meus pais, fui viver para Paris, onde me juntei à militância política contra a guerra colonial e a ditadura de Marcello Caetano. Fiquei também cerca de um ano e meio e, sem a mesada dos meus pais, nem a Torre Eiffel vi. Voltei a Lisboa em 1971. .Em fevereiro de 74 vivia para a luta política clandestina e tinha o sonho de ser jornalista (repórter de guerra). Mas não havia curso de jornalismo em Portugal. Nesse mês, veria uma luz ao fundo do túnel, pois um jornalista do Diário de Lisboa deu-me a ideia de me candidatar ao novo sistema de impressão em offset, comprado em 1969 por esse considerado um jornal de oposição ao regime. Eu entraria por ali e depois tentaria passar para a redação. Os acontecimentos de dois meses depois mudariam esse plano..A política económica e colonial da ditadura, que aumentava exponencialmente a emigração masculina e o serviço militar obrigatório dava mais chances de uma mulher trabalhar. A guerra colonial era o pavor da minha geração, como tinha sido das anteriores gerações. Ceifou a vida de muitos e deixou marcas físicas e mentais em todas as famílias..Muitos dos meus amigos preparavam-se para sair de Portugal clandestinamente, sujeitando-se a nunca mais regressar ao país. Partiam, sem informar as famílias e os amigos, que só tempos depois receberiam cartas de França, Bélgica, Holanda, Dinamarca ou Suécia. .Como muitos jovens, eu estava farta. De me esconder, de falar por meias palavras ao telefone, de colar vinhetas contra a guerra colonial nas paredes e distribuir clandestinamente propaganda contra a ditadura à noite, arriscando a prisão. De namorar às escondidas. Farta de não ouvir a música de que gostava na rádio, apesar da ousadia de programas como o Limite, da Rádio Renascença. De não ler o que me apetecia (a não ser essas brechas de liberdade limitada que eram o jornal cor-de-rosa da Madeira, Comércio do Funchal, o Noticias da Amadora e o Jornal do Fundão).Arranjar a pílula contracetiva era muito difícil, pois só era comprada mediante receita médica. .Portugal era em fevereiro de 1974, um país horrível, cinzento, marcado pela partida para a guerra, a emigração ou o exílio. Grande parte dos portugueses viviam na miséria, na iliteracia, na ignorância cultural e, sobretudo, sem futuro à vista. A elite da ditadura, ínfima e endogâmica, vivia num mundo fechado, sem mobilidade social, e marcada pela cegueira. Descia a Avenida da Liberdade como se descesse os Champs Elysées, sem perceber que não havia Lido para ninguém. Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles