Onde eu estava por... Aurora Rodrigues

Onde eu estava por... Aurora Rodrigues

Nasceu no Alentejo em 1954. É casada e tem uma filha. Mora em Évora, onde exerceu como Procuradora da República. Está jubilada.
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Nasci num “monte” próximo da Mina de S. Domingos, em Mértola. A minha mãe tinha a 3.ª classe da escola primária, como se dizia então, e o meu pai tinha a 4ª classe, mas ambos queriam que eu e a minha irmã estudássemos, para nos libertarmos. Sonho difícil de concretizar para quem não tinha posses. Por voltas do destino, inesperadamente tive a possibilidade de ir para o Liceu de Beja e a seguir para a Universidade.

Entrei na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em outubro de 1969 com 17 anos. Em 20 de Janeiro de 1974, fiz 22 anos e já não estava na Faculdade. Tinha sido expulsa a 9 de novembro de 1973.

Aquela escola fervilhava e tinha-me juntado a um grupo de estudantes que era contra a Guerra Colonial e contra o fascismo. Como eu.

Porém, a atividade partidária, começou apenas depois da morte do estudante José António Ribeiro Santos, assassinado a tiro pela PIDE, num anfiteatro de Económicas, onde decorria um encontro de estudantes. Foi no dia 12 de outubro de 1972. Estava presente e nessa noite aderi à organização partidária a que ele pertencia - Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas, sector estudantil do MRPP. Até então participava com eles no combate ao colonialismo e ao fascismo no movimento associativo e cooperativo livreiro. Fazia parte da linha associativa Ousar Lutar Ousar Vencer e da cooperativa universitária livreira Livrelco.

Quer a Associação Académica de Direito de Lisboa, quer a Livrelco tinham sido encerradas. Fui presa a 3 de maio de 1973. Esta prisão foi antecedida de uma detenção intimidatória. Disseram-me “da próxima vai ser diferente”. O objetivo era amedrontar.

Depois da prisão, as ameaças dos males que iriam fazer foi constante. Fui torturada de variadas formas no reduto sul de Caxias, em celas exclusivas para esse fim. Havia uma mesa ao centro, um banco sem costas para mim, cadeiras para os PIDEs. A pior das torturas foi a do sono, que se prolongou por 16 dias e noites sem dormir, consecutivamente. Fizeram-me ao mesmo tempo a tortura do afogamento, o espancamento até ao desmaio. As humilhações mais diversas. Só pude mudar de roupa quando a camisola ficou cheia de sangue por causa do espancamento. A cara inchou, as pernas incharam, dos pés saía líquido. Tive alucinações. Garantiram-me que não voltaria à Faculdade. Quando consegui voltar, fui expulsa.

A prisão não me mudou. Continuei a fazer o que fazia. Em janeiro de 1974, dactilografava os comunicados, que ajudava a distribuir. Pintava paredes durante a noite com palavras de ordem revolucionárias.

Sabia que não seria presa de novo, a não ser que fosse apanhada em flagrante delito ou denunciada. Por isso, sentia-me mais livre. Não arriscariam prender-me porque sabiam que não diria nada. A grande preocupação era evitar que outras pessoas fossem vistas comigo.

Naquele janeiro, vivia em Santo António dos Cavaleiros, numa casa onde nos escondíamos e onde eu dactilografava os comunicados. Vivia praticamente sem dinheiro. Comia o que havia de mais barato. Enjoei cavalas cozidas.

Por vezes, dormia na casa dos meus tios, em Camarate e no Feijó, onde comia e me davam algum dinheiro. O que arranjava era para comprar resmas de papel para os comunicados.

Os comunicados eram dactilografados em stencil. Ainda tenho no nariz o cheiro do verniz que usávamos para tapar os erros que por vezes aconteciam. As pinturas eram feitas de noite, com outros camaradas, porque as camaradas que dactilografavam comigo tinham filhos pequenos. O policopiador fazia muito barulho. Então, por razões de segurança, os locais de impressão mudavam diversas vezes.

Foi assim o meu mês de janeiro de 1974. Fazia a revolução e as tarefas eram muitas. Acho que no dia dos meus anos não comi cavalas. Mas não tenho a certeza.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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