Onde eu estava por... António Sobrinho

Onde eu estava por... António Sobrinho

Geógrafo, nascido em Lisboa em 1954.
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"Em meados de 1973 era um jovem estudante universitário de 19 anos de idade que havia concluído o 1º ano do curso de Geografia na Universidade de Lourenço Marques, assim como o curso de Topografia nos Serviços Geográficos e Cadastrais. Nessa altura, ainda habitava na casa paterna na cidade de Lourenço Marques. O pai, médico, e a mãe, professora do ensino secundário, asseguravam aos três filhos (duas raparigas e um rapaz) aquilo que achavam essencial (nomeadamente, uma boa educação), não dando relevo ao que classificavam como acessório (as extravagâncias, regra geral, não faziam parte do nosso quotidiano). 

Em meados de 1973, recebi guia de marcha para me apresentar na repartição distrital dos SGC no Xai-Xai (João Belo). Na ocasião, o meu pai deu-me uma caixa que continha ampolas de soro antiofídico, seringas e agulhas que eu deveria conservar a baixas temperaturas. Se fosse picado por uma cobra, devia fazer o garrote e aplicar duas injeções, uma, superficial, na zona da mordedura e outra intramuscular. 

No mato vivemos em tendas e palhotas. Dispúnhamos de algumas comodidades, como um autotanque, um chuveiro, uma geleira, candeeiros a gás. Um “cozinheiro” preparava as nossas refeições. Por vezes, abatíamos uma peça de caça, procurando melhorar a dieta dos auxiliares de campo africanos, homens rudes e dedicados. Quando tal sucedia, era dia de festa! 

Adormecia frequentemente ao som do batuque, sobretudo quando estive acampado junto às margens do rio Limpopo. A batucada, que se prolongava horas a fio pela madrugada, visava conservar os hipopótamos à distância dos campos de cultura da população indígena.

Com o aproximar do fim do ano regressei à casa paterna. No Natal de 1973, pressenti um ambiente pesado. Acabou por ser o último Natal em que todos estivemos juntos, já que o meu pai, gravemente doente, viria a falecer em março de 1974, uns dias após a intentona das Caldas da Rainha. 

Entretanto, a situação militar em Moçambique ia-se degradando. Após a Operação Nó Górdio, que envolveu muitos efetivos e material de guerra, a guerrilha alastrava para as regiões de Tete (onde estava a ser construída a barragem de Cahora Bassa), Manica e Sofala (tendo a serra da Gorongosa como santuário).

No capital, as notícias da guerra iam chegando, veiculadas através dos jornais, pela rádio, incluindo as emissões consideradas subversivas da voz da FRELIMO, ou mesmo por testemunhos de terceiros.

Nos meses que antecederam o 25 de Abril de 1974, a situação político-militar em Moçambique era crítica. O esforço de guerra gerava um descontentamento crescente e cansaço na sociedade. 

Embora com as devidas cautelas, tudo era discutido, a fim de se evitarem problemas com a PIDE. Esta, porém, mostrava-se mais “branda” no Ultramar do que na Metrópole, exceção feita quando se confrontava com elementos afetos aos nacionalistas, fossem eles militantes ou apenas simpatizantes dos movimentos de libertação, apodados de terroristas pelo regime.

Os estudantes universitários rondavam cerca de 3000 em abril de 1974. A generalidade tinha consciência das desigualdades existentes. Paulatinamente foram influenciando comportamentos e modos de pensar, aproveitando-se simples encontros desportivos ou saraus culturais onde se liam poemas ou se entoavam canções de protesto para fazer passar a mensagem da necessidade da mudança de políticas e do fim à guerra. 

Vastos setores da população europeia, muito embora não estivessem totalmente de acordo com a política vigente, desconheciam das intenções da FRELIMO. Vivia-se um impasse que era urgente quebrar. Isso acabou por acontecer com a Revolução do 25 de Abril. Num primeiro momento, exultei de alegria, mas pouco depois percebi que Moçambique iria acabar para mim.”

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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