Onde eu estava... por Ana Paula Costa

Onde eu estava... por Ana Paula Costa

Nasceu em Angra do Heroísmo, Açores, em 1958. É professora e escritora.
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25 de Abril de 1974, seriam uma seis e meia da manhã. Ouço uns sussurros vindos da sala e vou ver do que se trata. Encontro a minha mãe a conversar com um dos meus primos, que estava no Continente a fazer a tropa. Que alguma coisa se passara no Quartel, ouço-o dizer. O que fosse, com os meus 15 anos por vezes despreocupados e de pessoa que nem conhecia a palavra política, não percebi. O que eu já tinha percebido muito bem é que pelo facto de ter nascido mulher, teria talvez um caminho mais penoso do que o de todos os meus primos rapazes. Pela minha observação do mundo em que me movimentava, o caminho não seria fácil.

Nasci nos Açores, em Angra do Heroísmo e, apesar de ter saído da Ilha aos 3 anos, tinha uma forte ligação à minha avó materna e a toda a família que lá vivia. Ia quase todos os anos passar as férias de Verão na Ilha e certa vez, pelos meus 14 anos, quis sair à noite porque havia uma festa. Foi-me autorizado apenas porque acompanhada por um dos meus primos mais velhos. As meninas não saiam sem vigilância. Foi nesse mesmo Verão que soube que um tio proibira a filha de se casar porque o rapaz era divorciado. Uma menina casadoira, e virgem como ditavam os costumes então vigentes, não podia ser “entregue” pelo pai a um homem divorciado.

Naquela Ilha, à semelhança do que acontecia no Continente, algumas mulheres da minha família, por trabalharem fora de casa, eram uma exceção. As senhoras, nascidas para o recato do lar e para as funções de mãe, mulher, dona de casa, acrescentavam ao seu quotidiano a aprendizagem de alguns trabalhos que sempre me entediaram (então chamados lavores femininos), a pintura a óleo ou a aprendizagem de um instrumento musical. O que lhes sobrava na Ilha? A neurose, os problemas “de nervos” que levavam muitas delas a um internamento em S. Rafael (o hospital psiquiátrico daquele tempo). Apesar de trabalhar, a minha mãe - que era professora - precisou de uma autorização especial para casar com o meu pai que não era funcionário público.

Depois de ter feito 10 anos, em 1968, mudámo-nos - os meus pais, as minhas duas irmãs e eu - de Lisboa para Beja, uma vez que o meu pai foi tomar conta das instalações da base militar. Acho que nessa altura me saiu como que uma sorte grande, passando a ter uma vida bem mais tranquila do que em Lisboa. E cheia de pequenas aventuras que em Lisboa teriam sido mais difíceis: subir às árvores, esfolar joelhos, andar de bicicleta e de patins na pista da Base de Beja.

Tive a sorte de poder observar, desde muito cedo, as vivências deste triângulo em que se movia a minha vida - Lisboa, Beja, Angra do Heroísmo - em que havia um fator comum de que cedo tomei nota: o da vida no feminino, tantas vezes dependente de um casamento. Prevalecia a vontade do homem, quer no espaço doméstico, quer no espaço público. Vontade essa que se estendia às empregadas, tantas vezes seduzidas e violadas pelos patrões. Foi o que aconteceu a uma empregada interna de uma das casas de família no bairro em que vivíamos. A rapariga foi passar o Natal com os seus pais e nunca mais regressou. Soubemos depois, já não me recordo como, que não tinha regressado por ter sido violada pelo homem da casa onde trabalhava. E este episódio foi silenciado, o que é tão escandaloso como o que sucedeu à pobre rapariga.

Se o papel das mulheres se traduzia nos tais planos domésticos, o futuro seria quase sempre igual para todas elas, independentemente até de alguns fatores sociais. Ser católica, fiel ao seu marido e à sua máscula vontade, dona de casa e mãe zelosa e recatada. Ai das que se atrevessem por outros caminhos. As mulheres eram as cuidadoras, “Deus, Pátria, Família”. E silêncio, todo o silenciamento em torno da dor.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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