Onde eu estava... Alfredo Cunha

Onde eu estava... Alfredo Cunha

Alfredo Cunha O repórter fotográfico nasceu em 1953. É de Celorico da Beira.
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Abril era com alguma frequência o mês em que inaugurava a época balnear. Jovem de 20 anos, não precisava de grande calor para rumar manhã cedo, ao volante do meu Mini preto, até à costa da Caparica, sozinho ou com a namorada da altura. As dunas daquelas praias eram o meu refúgio e, como o outro, nelas roí muitas maças. Que melhor poderia fazer na Lisboa daquela época um miúdo com bom ordenado e alguma pinta senão tentar namorar longe dos olhares censores que obrigavam a uma distância de segurança entre rapazes e raparigas. As discotecas Cova da Onça e Hipopótamo, e uma ou outra festa particular onde se dançasse agarradinho - o Hey Jude, dos Beatles, demorava quase 14 minutos, por isso saíamos de lá quase casados - proporcionavam algumas exceções, mas nada que se comparasse a uma manhã na Caparica

O bom ordenado vinha da revista Século Ilustrado e do jornal O Século, onde era um dos repórteres fotográficos mais jovens.

A fotografia está enraizada na minha família há décadas e décadas. Filho e neto de fotógrafos rapidamente percebi que a minha paixão eram os jornais.
Tinha um horário noturno. Entrava as cinco da tarde e fazia os fechos. As reportagens eram, por isso, maioritariamente à noite: muitos espetáculos - musicais, teatrais, ópera, concertos -, muitas entrevistas com os artistas da época, com quem me dava muito bem, rusgas da polícia - sobretudo os desacatos com marinheiros no Cais do Sodré-, muitas touradas, muito futebol, com destaque para o meu Benfica. E coisas bizarras. Por exemplo, uma reportagem com um ‘morto’ que acordou na morgue.

As fotos eram tão censuradas quanto os textos. Lembro-me de um trabalho assinado pela jornalista Maria Antónia Palla e por mim sobre a degradação as escolas primárias do bairro alto. Uma outra sobre os hospitais civis de Lisboa, nomeadamente o Curry Cabral onde se amontoavam no mesmo espaço, miúdos à espera de tratamento e cadáveres deitados em macas. Ambas as reportagens sofreram cortes enormes da censura.

Chegava a casa a altas horas, algumas vezes, sobretudo no Inverno, depois de passar pelo SNOB, um bar de jornalistas.

No dia 24 de abril de 1974, talvez a pensar na praia, fui diretamente do jornal para casa (vivia com os meus pais na Amadora). Estranhei ver a minha mãe acordada. Que havia uma movimentação militar em Lisboa, disse-me. Saí de imediato, armado com as duas Nikon S e a Laika m3. Apanhei o comboio das 5.30h. Na redação encontrei o Mário Zambujal, o Carreira Bom, o Urbano Tavares Rodrigues. Ficou decidido que iria em reportagem de rua com o Mário Contumélias (que pouco depois perderia de vista).

Vi as movimentações sem fazer ideia do que seria aquilo. Nunca me senti em perigo de vida, mas tive a certeza de que aquilo corria bem só depois de Marcelo Caetano ter sido preso no quartel do Carmo. Percebia-se nos soldados muita juventude e ansiedade. Mas os oficiais eram muito expeditos. Percebia-se que sabiam muito bem o que estavam a fazer.

Ficaria amigo de Salgueiro Maia. Desse dia, não tenho uma única fotografia em que esteja com ele. Mas há uma que adoro: ao mesmo tempo que um polícia lhe faz continência, ele olha na direção da minha câmara com um ar zangado. Está a perguntar-me por que razão estou escondido atras de um poste da EDP a fotografá-lo. Avisa-me com voz de poucos amigos de que se não quero correr riscos tenho de estar visível. Por último, que se tratava de um pronunciamento militar e que se eu fosse a favor do regime estava do lado errado. Respondi-lhe que estava do lado certo.

Daquele dia, há uma única foto em que apareço. Foi tirada pelo Rui Ochoa na sede da Pide, quando foi tomada pela Marinha. Com ou sem registo, foi o dia mais feliz da minha vida. Inesquecível.”

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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