Afinal, de que se fala quando se fala de obesidade? Fala-se de doença crónica, sem cura, mas tratável. De uma doença que é a mais prevalente no país e que está associada a outras 220, metabólicas, cardiovasculares, respiratórias, hepáticas, urinárias, de infertilidade e a 13 tipos de cancro. Na verdade, fala-se de uma doença que afeta 28,7% dos portugueses adultos, embora 68% da população já viva com excesso de peso. É ainda um problema que já custa ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) mais de 1,1 milhões de euros por ano, cerca de 6% do total da despesa em saúde, segundo dados oficiais. Mas é também a doença que na sombra transporta o medo do “estigma”, da “discriminação”, da “solidão” ou tão só o medo de “subir escadas”, de “correr com os filhos”, de “entrar num ginásio” ou de “ir ao médico”. Se nada for feito para combater tais medos, a presidente da Sociedade Portuguesa e Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM), Paula Freitas, não tem dúvidas: “No futuro, teremos uma sociedade mais doente, mais cansada, menos produtiva e que viverá menos anos. É uma bola de neve com custos para todos”. Especialistas, doentes e ex-doentes acreditam ser possível fazer algo para reverter esta realidade. Por isso mesmo, a SPEDM, a Sociedade para o Estudo a Obesidade (SPEO) e a Associação de Doentes Obesos e Ex-Obesos de Portugal (ADEXO) lançaram agora a campanha “Quanto pesa o medo?”, com a duração de oito semanas, e que tem por objetivo “envolver a sociedade civil” no problema.Paula Freitas espera que esta campanha “traga alguma luz e mudança nas mentalidades, envolvendo a sociedade civil, e não só doentes e profissionais de saúde. O importante é dizer à pessoa obesa ou pré-obesa que tem uma doença, mas que é tratável. Só tem de pedir ajuda médica ”. E quanto mais cedo esta decisão for tomada, “mais cedo teremos resultados”. A médica alerta ainda para facto de "o importante ser tratar estes doentes antes que a doença se instale, ou quando já está instalada fazer reverter esta e outras situações. Portanto, quanto mais cedo for a intervenção médica, mais cedo se consegue reduzir a carga da doença a longo prazo”. Para o doente, há mais medos do que aqueles que são visíveis. Há o medo da culpa, da responsabilidade por uma doença que acredita ter por maus hábitos, e, em relação ao pedir ajuda médica, há o medo de o fazer e de ser discriminado. “O doente tem medo de ser discriminado, mesmo quando pede ajuda. Na maioria das vezes, sente-se responsável pela doença que tem e acredita que até a pode resolver sozinho, mas não é assim. É uma doença com que temos de lutar a vida inteira a partir do momento que a temos”, desabafa Carlos Oliveira, presidente da ADEXO. “Os medos existem, mas pretendemos desmistificá-los com esta campanha. É preciso mostrar às pessoas que os medos podem ser ultrapassados e que, quando pedem ajuda para tratamento, do outro lado estará alguém que as saberá encaminhar”, destaca. . No entanto, ressalva, “esta campanha tanto é um grito de alerta para os doentes como para os profissionais de saúde, porque ainda há muitos, nomeadamente médicos, que continuam a acreditar que a obesidade não é uma doença mas sim um processo comportamental, quando na verdade é uma doença biológica sobre a qual o indivíduo não tem controlo”. Carlos Oliveira confessa mesmo, como ex-doente, que “não há pior coisa para um obeso do que chegar a um médico, em desespero, porque, na maioria das vezes já tentou as maiores loucuras, com dietas e outras situações, para perder alguns quilos, e encontrar alguém que não o compreende e se sente julgado e discriminado”. “Portanto, com esta campanha também pretendemos que a maioria dos médicos seja efetivamente uma ajuda e não um ponto de discriminação para os doentes, já que, infelizmente, ainda há alguns que o são”, sublinha, continuando: “Imagine o que é para um doente que já não sabe o que fazer para perder peso e que decide pedir ajuda médica e encontra alguém que não o compreende. É um desespero também, quando é obrigação de um médico ajudar as pessoas a tratarem-se. Se não têm condições para isso, encaminhem-no para um centro de tratamento onde possa ser, efetivamente, acompanhado.“A obesidade vai muito para além do peso”É preciso dizer também que a obesidade é hoje responsável por cerca de 79% dos casos de diabetes tipo 2 e por mais de 40% dos AVC. Como relembra a presidente da SPEDM, a doença que está “associada a mais de 220 doenças, como metabólicas, cardiovasculares, hepáticas, respiratórias ou outras, como apneia do sono, dores lombares, incontinência urinária, infertilidade, ansiedade, depressão”. Por isso mesmo, diz, “a obesidade é muito mais do que uma doença e vai muito para além do peso. É uma doença complexa, mas que tem tratamentos, obviamente”. Porquê? Porque o peso “é apenas uma métrica intermediária”, reforça Paula Freitas. “Se uma pessoa com obesidade não se tratar, vai ficando cada vez mais doente, incapaz de trabalhar e de ter interações sociais e tudo isto tem consequências também para a sociedade, porque uma pessoa que tenha um IMC (Índice de Massa Corporal) acima dos 40, tem uma probabilidade apenas de 50% de atingir os 70 anos. E o que pretendemos é que estas pessoas morram menos”, sublinha. Paula Freitas entende o porquê de um doente não procurar ajuda médica o quanto antes. “A pessoa que vive com obesidade tem medo de procurar ajuda porque interiorizou que o ser assim é responsabilidade dela, entendendo que também é responsabilidade dela atuar sozinha para conseguir perder peso”. Mas se nada fizerem, “à medida que o tempo passa viverão com péssima qualidade de vida”. A médica sustenta que “70% do nosso peso é determinado pelos genes, mas é claro que existe alguma interação entre os genes e o ambiente”. A grande questão, alerta, é que hoje vivemos “num ambiente obesogénico, de disponibilidade alimentar, e com muitos produtos processados, com gorduras saturadas, muito açúcar e sal. E mesmo que as pessoas estejam a comer quantidades relativamente pequenas, a qualidade do que estão a comer também as coloca num patamar de maior risco de obesidade”.Venda de fármacos para obesidade até abril quase iguala total de 2024. A especialista reconhece que a obesidade tem uma “equação muito complexa” e que “há muitos fatores a interagir, sejam ambientais, biológicos, psicológicos e até o património genético”, mas há passos que têm de ser dados precocemente para que a doença não se instale. E, como diz, “no mundo ideal a porta de entrada para a referenciação e tratamento seria o doente procurar o seu médico de família nos cuidados primários de saúde, que já deviam estar organizados com consultas multidisciplinares (com um médico, psicólogo, fisiologista e nutricionista) e não estão”. “Os casos que fossem identificados logo à partida como mais complexos deveriam ser orientados logo para as consultas multidisciplinares nos hospitais para acompanhamento”, refere, acrescentando: “Eu até diria que estas consultas, mais do multidisciplinares, deveriam ser transdisciplinares, porque nas multidisciplinares, por vezes, está cada especialista a falar da sua área e ninguém está a olhar para o doente no seu todo, e este deve ser o nosso foco”.Paula Freitas sabe que, “no papel, tudo isto está pensado”, lembrando mesmo que no Plano de Emergência e Transformação da Saúde (PETS) “está previsto um programa de combate e controle da obesidade nos cuidados primários”. “No papel está também o chamado Processo Assistencial Integrado da Pré-Obesidade no Adulto. Agora, é preciso colocar tudo isto no terreno e abrir as portas para que as pessoas que têm a doença possam ter acesso aos cuidados, para que melhorem o seu bem-estar físico e emocional, e, obviamente, a sua saúde, para que vivam mais anos e com mais contributo para a sociedade”.Carlos Oliveira, ex-doente e presidente da Adexo, reforça a ideia de mais cuidados e de mais inclusão, contando que a maioria das situações recebidas pela associação são pedidos de ajuda para o encaminhamento. “As pessoas não sabem o que hão de fazer, quem devem procurar e o caminho a seguir”. Mas quando ligam à associação é um primeiro passo. “Não tenham medo de pedir ajuda. Controlem a vossa doença o mais depressa possível, porque a doença tem vários estágios e quando se atingem alguns torna-se muito complicado”. Carlos Oliveira dá um exemplo: “Imagine quando a pessoa atinge os 250 ou 350 quilos e faz cirurgia. Nós temos uma cadeira que transporta até aos 350 quilos, mas é usada em hospitais de cuidados continuados”, relembrando que “a legislação refere que os hospitais que fazem tratamento cirúrgico de obesidade têm de ter equipamento, mas depois, se a pessoa perde a mobilidade pós cirurgia e esta unidade a envia para um hospital de cuidados continuados, estes nada têm para transportar ou tratar estas pessoas”.Como diz, e em crítica à falta de apoios aos doentes com obesidade, “estes doentes precisam de fisioterapia e de outros cuidados e, no país, só há duas cadeiras com esta envergadura”.A ADEXO tem vindo a dar o apoio que pode aos doentes, mas, como sublinha Carlos Oliveira, “é necessário que entidades da Saúde façam mais”, porque é preciso que todos percebam que “a obesidade é uma doença tratável, mas não é curável e o doente tem de ser acompanhado para o resto da vida”. Por isto mesmo, um dos objetivos da campanha agora lançada, “Quanto pesa o medo?”, é mobilizar o país para um debate urgente sobre saúde pública. Medicamentos sem comparticipação A obesidade é uma doença crónica, mas até agora estes doentes não conseguiram que a medicação que têm de tomar ao iniciar tratamento tenha comparticipação do Estado. Para a presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo, Paula Freitas, “é uma grande limitação na acessibilidade ao tratamento, que a todos os doentes devem ter acesso”. O presidente da Associação que representa os doentes critica também a situação, mas diz que “a comparticipação está agora a ser negociada entre a associação e a secretária de Estado da Saúde, Ana Povo”. Carlos Oliveira explica que a situação tem provocado grande discriminação entre doentes obesos, porque “os que têm indicação para cirurgia têm o tratamento todo pago e os que não têm indicação não têm apoio nenhum, mas a doença é a mesma. Isto é inacreditável”. Por isso, espera que desta vez “seja possível resolver a situação”..Infarmed autoriza rotulagem em línguas estrangeiras em medicamentos para a diabetes e obesidade