"Hoje, às 00h 00m 00s de Portugal Continental, num ponto quatro vezes mais longe do que a Lua, o telescópio espacial Euclides voltou-se para a constelação de Erídano, no hemisfério celeste austral, e durante 70 minutos recolheu a luz dessa região de céu escuro. É a primeira de mais de 27 mil fotografias que irão constituir o mosaico do céu com a maior resolução alguma vez feito. Serão mais de 15 biliões de pixéis, e ao fim de seis anos espera-se ter capturado a luz de mais de mil milhões de galáxias”. A 14 de fevereiro de 2024, a página do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço assinalava uma conquista. A imagem captada a 1,5 milhões de Km de distância da Terra marcava uma nova etapa na missão espacial Euclid cuja origem remonta ao início do presente milénio, sob a égide da Agência Espacial Europeia (ESA). A 1 de julho de 2023, a estação espacial no Cabo Canaveral, Florida (EUA), entregou ao espaço o foguetão Falcon 9 da SpaceX. Um primeiro impulso para um pequeno telescópio, com 3,7 metros de diâmetro, que viajaria nas quatro semanas seguintes rumo ao Ponto de Lagrange Dois (atrás da Terra em relação ao Sol), uma localização estável sem interferência da luz do planeta, da Lua e do Sol. Com o telescópio Euclid também viajou para o espaço a ciência portuguesa. A equipa do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA), da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), há muito que laborava num complexo software que gera o cronograma das orientações do telescópio no espaço e os tempos de observação para o calendário da missão. Isto, no âmbito do grupo de rastreios do Consórcio Euclid, entidade que reúne 300 instituições, 12 mil cientistas, de 13 países europeus, a que se juntam os Estados Unidos, o Canadá e o Japão. Portugal uniu-se a esta missão em 2012, aquando da assinatura do acordo multilateral com a ESA e as restantes agências financiadoras do consórcio Euclid..Até 2030, o telescópio Euclid vai embrenhar-se nos últimos 10 mil milhões de anos de história do universo. Nos próximos seis anos, as regiões que serão observadas constituem praticamente um terço de todo o céu, o chamado céu extragalático. Este é um mapa do universo que procura respostas concretas: A missão quer compreender os porquês para a expansão acelerada do universo. Na equação entram teorias cosmológicas a carecerem de comprovação: a existência de energia escura e de matéria escura. Até ao presente, nunca se conseguiu detetar diretamente nenhuma destas entidades incógnitas. O telescópio Euclid estuda o lado escuro do universo através do desvio da trajetória da luz provocado pela matéria no universo, e a aglomeração de galáxias. Os dois métodos permitirão medir a geometria do universo e esclarecer de que é que este é feito. .“Pensemos em 100% de todo o material que existe no universo, 70% será na forma de energia escura, 25% na forma de matéria escura e apenas os restantes 5% na forma de matéria normal, como gás, as estrelas, entre outros. Ou seja, todo o modelo está construído com base nesta matéria que se desconhece”. As palavras são de Ismael Tereno, investigador na IA, coordenador de equipa na missão espacial Euclid. Por telefone, o cientista, faz-nos uma aproximação aos objetivos da missão. .“Há várias teorias que têm de ser comprovadas. A missão também permite estudar a força gravítica a grandes escalas. Vamos estudar galáxias longínquas e interações a grande escala. Temos várias hipóteses. Podemos até descobrir que não existe a energia escura”, adianta Ismael Tereno. .Um enorme puzzle.Sobre o telescópio “em si, é menor do que os de Terra. O mais importante é o sistema ótico que tem e os detetores e instrumentos. Consegue ter um campo de visão grande, cem vezes maior do que o campo dos telescópios Hubble e James Web. Ao mesmo tempo foi desenhado para ter uma grande resolução”, sublinha Tereno, para acrescentar: “uma imagem capta 50 mil galáxias. No total teremos mais de mil milhões de galáxias”. .“Um enorme puzzle e jogo de Tetris”, como nos explica João Dinis, Investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. O também investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço juntou-se à missão em 2013, estando a tempo inteiro desde janeiro de 2014 “com o objetivo de desenvolver uma ferramenta de construção do planeamento da missão. O desenvolvimento da ferramenta demorou vários anos. O planeamento final foi entregue em junho de 2023, um mês antes do lançamento do telescópio”. .“O telescópio Euclid observa o céu extragalático segundo uma estratégia de passo a passo: adquire uma imagem, desloca-se um pouco para o lado, adquire outra imagem e assim sucessivamente. O céu extragalático é a parte do céu que sobra quando se retira a nossa galáxia, a Via Láctea, e uma faixa em torno da eclíptica, a linha do zodíaco onde se passeiam o Sol e os planetas”, detalha o cientista. .“O segundo objetivo é a observação de três campos profundos, um perto do polo Norte, outro perto do polo Sul e o terceiro na constelação da Fornalha. Estes são campos observados repetidamente, dezenas de vezes, para se obter informação de objetos mais distantes, ou seja, mais profundos. A par com os dois objetivos científicos, é necessário cumprir com um exigente programa de calibrações, condição essencial para se aferir e validar as imagens adquiridas”, acrescenta João Dinis, e continua: “A solução encontrada é uma mistura entre montar um puzzle e o jogo Tetris. São agrupadas sequências com algumas centenas de observações, relativamente próximas umas das outras, formando o que se pode chamar de uma peça do puzzle. Essas peças são feitas à medida, tendo em conta a parte do céu já observada, onde têm de encaixar. Depois, a peças são dispostas por camadas, tal como no jogo Tetris, preenchendo o céu dos polos para o equador”..Na sua totalidade, o planeamento de missão consiste em cerca de mais de 40000 observações, repartidas ao longo de seis anos, à razão de 20 observações por dia..Progressos na Cosmologia e Astrofísica.António da Silva é o representante nacional da Direção do Consórcio Euclid e ponto de contacto nacional (NCP) da missão junto da Agência Espacial Portuguesa. “A minha contribuição para a missão Euclides remonta a 2007, quando, juntamente com colegas que são hoje membros do IA-FCUL, iniciei o processo de negociação para a entrada oficial de Portugal no consórcio Euclid, o que se concretizou em 2012”. O investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e docente do Departamento de Física da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa desde essa data que assume funções de representante nacional na Direção do Consórcio Euclid e ponto de contacto nacional da missão junto da Agência Espacial Portuguesa. “Para além disso trabalho em vários grupos científicos e contribuo para o grupo nacional de planeamento da sequência de observações da missão”, acrescenta..Sobre a missão, sublinha que “ajudámo-la a construir e, finalmente, vai permitir-nos iniciar um conjunto de estudos que pode levar a progressos verdadeiramente significativos em várias áreas do conhecimento, como é o caso da Cosmologia, Astrofísica e da Física fundamental. Esta é a primeira vez que uma equipa nacional, sediada na IA-FCUL e denominada equipa SOST (Survey Operations Support Team), assume esta responsabilidade operacional no rastreio de uma missão do programa científico da ESA”..Ismael Tereno pormenoriza as operações: “A ESA fez os contactos com os parceiros industriais que construíram o telescópio e o próprio telescópio. Também chamou a si as operações, nomeadamente o lançamento, o arquivo dos dados. O consórcio científico envolveu, por seu turno, universidades em diferentes países europeus. O consórcio também construiu instrumentos científicos. A ESA contribui com metade do financiamento para a missão, os países suprem o restante, através das agências espaciais nacionais ou de outras entidades. No caso português, quando o país entrou na missão, fomos procurar qual a infraestrutura com a qual podíamos contribuir. A equipa da IA apresentou a infraestrutura do mapeamento. À partida, o nosso trabalho poderia ir até ao lançamento do telescópio. Contudo, prolongou-se para a fase de operações com a ESA incumbiu-nos de fazer o mapeamento”. .Matéria escura e energia escura.“Estamos a tentar compreender a evolução do universo através dos seus vários mecanismos. A matéria escura e a energia escura, são duas incógnitas nas atuais cosmologia e física fundamental”, explica Ismael Tereno. “No final dos anos de 1990, houve observações de supernovas e descobriu-se que estavam a uma distância diferente daquela que se esperava de acordo com os modelos. Tratou-se de uma evidência para a expansão acelerada do universo. Após o Big-Bang gerou-se uma energia inicial que, supunha-se, iria travando, mas deu-se o contrário. Daí falarmos da energia escura. Começaram a desenhar-se missões para o futuro para determinar se existia mesmo essa energia escura. Missões cada vez mais precisas. A quarta etapa destas observações prende-se com o Euclid, com negociações iniciadas em 2007. Este é tributário de duas missões anteriores, a Dune e a Space, ambas com o mesmo objetivo, uma com recurso a imagens, a outra a espetros. A ESA fundiu-as numa só. Nasceu a Euclid”. .“A matéria escura é distinta da energia escura. A matéria escura é uma entidade postulada a partir dos anos de 1930 para explicar fenómenos de gravitação. Havia observações que não estavam de acordo com a teoria. Um caso muito conhecido é o da velocidade de rotação de uma galáxia. Nesta, acreditava-se que as estrelas que a compõem rodariam mais lentamente quanto mais longe estivessem do centro da galáxia. Verificou-se que as que estão mais longe continuam a rodar à mesma velocidade. Postulou-se que deveria haver matéria que não se vê e que está a criar campos gravíticos, logo as estrelas rodam mais depressa para não serem atraídas para o centro da galáxia”. .Estima-se que até março de 2025, o Euclid terá coberto entre 15 a 18% da área de céu prevista. Ainda na primavera do próximo ano os cientistas contarão com um conjunto de dados relativos aos rastreios profundos de algumas regiões particularmente escuras do céu. Entretanto, no verão de 2025, a missão contará com os primeiros dados relevantes para os objetivos que leva. Uma luz de conhecimento sobre o universo escuro. Por agora, Ismael Tereno ainda vive o entusiasmo das primeiras imagens recebidas: “Foi uma grande emoção. Primeiro porque comprovámos que tudo estava a funcionar bem. Depois, porque obtivemos imagens com uma resolução nunca vista. Mesmo objetos na nossa galáxia, por exemplo um enxame de estrelas, é captado numa mesma imagem. Sobre ela conseguimos fazer um zoom e identificar as estrelas individualmente”. .“Desde 2012, mais de 40 investigadores e alunos nacionais têm trabalhado nos aspetos científicos da missão. No futuro, muitos mais investigadores e alunos nacionais poderão contribuir para a redação de artigos e realizar teses de investigação durante todo o período proprietário da missão e, posteriormente, até ao fim das observações por volta de 2030. Todo este percurso não teria sido possível sem o apoio da Agência Espacial Portuguesa e da Fundação para a Ciência e Tecnologia”, conclui António da Silva. Avanços que podem ser acompanhados na página online do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço.