Uma sequência de “zeros” e “uns” numa ardósia pode não fazer muito sentido dentro do conteúdo oficial de uma aula de Matemática do 4.º ano, mas nem por isso estes números passam sem despertar interesse. “O que são?”, pergunta, baixinho, a Íris, de nove anos, à colega ao lado. Aos poucos, a explicação do que se trata vai fazendo sentido e, agora, estão todos atentos. Interagem, respondem e expressam na cara aquele ar de “uau” de quem acaba de descobrir algo surpreendente. Com zeros e uns escreve-se em bits, a linguagem dos computadores, e é isto que os alunos do final do 1.º ciclo e até ao 2.º da Escola Básica Engenheiro Duarte Pacheco, na freguesia do Beato, passam a aprender com a chegada do projeto Primeiros Bits, uma das 52 iniciativas financiadas pela edição de 2024 do Programa BIP/ZIP da Câmara Municipal de Lisboa..O projeto é promovido pela TreeTree2, uma organização sem fins lucrativos que dinamiza ações de aprendizagem científica para alunos a partir do Ensino Básico e até ao Superior. Quem conduz esta aula introdutória no Beato é João Rico, fundador e presidente da direção, um jovem Físico a acabar um doutoramento em Engenharia e Informática no Instituto Superior Técnico, que acredita que as competências em computação adquiridas por miúdos vão além do que seja apenas entender códigos numéricos. “Há uma série de vantagens. Coisas como a literacia digital ficarem melhores na disciplina de Matemática e outras, mas o principal é desenvolverem o pensamento computacional, que é uma competência muito alargada e que lhes permite abordar problemas, quaisquer que eles sejam, de forma mais sistemática. E isso é algo que se transmite para todas as disciplinas, para todas as áreas, para a vida do dia a dia”, explica ao DN..Pensar de modo computacional pode fazer sentido, desde cedo, a quem cresce num dos 67 Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária (BIP/ZIP) de Lisboa, localidades que concentram um terço dos habitantes da capital e onde se encontram as piores condições sociais, económicas, ambientais ou urbanísticas da cidade. Daí terem sido identificadas e agrupadas na Carta dos BIP/ZIP, aprovada pela Assembleia Municipal de Lisboa em março de 2011 e incluída, posteriormente, no Plano Director Municipal. A EB Engenheiro Duarte Pacheco fica nos BIP/ZIP 9, zona da Quinta dos Ourives e Estrada de Chelas, e “tem uma série de particularidades”, diz João Rico. “Em geral, há muitos alunos desfavorecidos de forma socioeconómica, uma comunidade muito grande de imigrantes. E, portanto, se nós fizermos um programa que funciona aqui, então sabemos que funciona nos outros lados”, explica o responsável, sobre a escolha deste bairro para a implantação do Primeiros Bits. A iniciativa recebeu 50 mil euros do programa BIP/ZIP para, ao longo de um ano, colocar em prática criação de conteúdos de computação, dinamizar aulas de programação, capacitar alunos e professores e constituir, de modo colaborativo, uma plataforma que poderá ser utilizada por escolas em todo o país..Sylvain Papyon e Rodrigo Borralho na horta com alunos. Foto: Paulo Spranger..Dos bits à horta.Colaboração também é o que rege o projeto de implantação da horta urbana agroecológica dentro da Escola Básica e Secundária Gil Vicente, nos BIP/ZIP 9, zona da Graça e Sapadores, na freguesia de São Vicente. O projeto, promovido pela cooperativa Rizoma, recebeu 49 983 euros dos fundos camarários e é parte de uma ação mais robusta, que quer capacitar a comunidade com conhecimentos e competências relacionadas à alimentação saudável e à sustentabilidade, mas também “criar um setor económico que ofereça uma oportunidade às pessoas da cidade de se emancipar”, explica ao DN Sylvain Papyon, um dos responsáveis pelo projeto e membro da Rizoma. “O objetivo final é criar um modelo de agricultura que tem muito valor acrescido, a nível de um ponto de encontro da comunidade, a nível de coesão social, de benefícios educativos e económicos”, completa..Os alimentos cultivados na horta vão ser vendidos na mercearia da Rizoma. Numa primeira instância, a horta serve como mais um recurso escolar. E logo se percebe que não falta interesse para o que virá pela frente. Mesmo em fase inicial - a terra ainda está a ser preparada para ser semeada - já há bracinhos que pegam nas ferramentas com entusiasmo. “Encontrei várias minhocas”, grita o Diego, depois de mexer na terra sob o comando de Rodrigo Borralho, mais um colaborador da Rizoma, encarregado de dinamizar a componente educativa com as crianças..A Rizoma já atua na Graça e Sapadores e na zona envolvente. Na escola, a horta não será a primeira empreitada. A cooperativa já implantou um ponto de compostagem, reabilitou áreas com mato crescido, criou uma espécie de agrofloresta e até um espaço com animais, como galinhas e um porquinho. “Não havia dinâmica no espaço. E o que se percebe é que as crianças têm uma vontade enorme de vir para este espaço, percebemos que é quase como se fosse também um refúgio para elas”, diz Rodrigo ao DN..Samuel Sousa, de 19 anos, aprendeu no Ciclopes a consertar bicicletas. Foto: Paulo Spranger..Da horta às biclas.Quem busca um refúgio quer, antes de tudo, um sítio para se sentir seguro, não sendo necessariamente preciso estar isolado. No bairro Padre Cruz, na freguesia de Carnide, os miúdos e jovens encontram no projeto Ciclopes as ferramentas para este propósito. É um espaço onde, basicamente, qualquer um pode alugar uma bicicleta. Entretanto, vai muito além. O projeto dota os participantes com competências mecânicas, habilidades físicas e de raciocínio. “Acabamos por trabalhar não só esta dimensão de eles terem autonomia para conseguir arranjar a bicicleta, conseguirem ir a outros sítios de Lisboa à vontade, pela mão deles e sem custo, mas também começámos a perceber que as questões de mecânica e trabalho com as bicicletas desenvolvem aqui algum pensamento crítico, calma, foco, alguma sistematização”, explica ao DN a idealizadora do Ciclopes, Catarina Miguel Martins..O Padre Cruz é o BIP/ZIP 16. “O bairro está abaixo da média em muitos dos indicadores económico-sociais. É também o maior bairro social da Europa, é muito periférico e não tem soluções de metro próximas, nem autocarros frequentes, e, portanto, torna-se numa ilha no meio da cidade”, contextualiza Catarina Miguel Martins. A fundadora do projeto já tinha experiência no contexto da mobilidade com bicicletas, mas pelo lado da tecnologia, quando resolveu voltar ao segmento, desta vez pela vertente social. O nome completo do projeto - Ciclopes Eleva Skills - indica que as habilidades de quem participa são potencializadas. O recurso municipal de 50 mil euros vai servir para a compra de novas bicicletas, ferramentas, pagamento de funcionários, dinamização de ações desportivas e de workshops de profissionalização em mecânica, “uma área que está a surgir como opção profissional para estes jovens” explica Catarina..Um exemplo é Samuel Sousa, de 19 anos, que frequenta o Ciclopes desde que o projeto montou a sede física no bairro, há dois anos. “Aqui não estamos a fazer porcaria na rua. Os miúdos, em vez de estarem agarrados aos telefones, estão por aqui e hoje muito mais gente anda de bicicleta”, diz ao DN. E completa: “Aprendi aqui a arranjar bicicletas e vou para a mecânica.” Sai a pedalar, com a confiança de que a vida no bairro não o vai parar..caroline.ribeiro@dn.pt