O dia D da restauração

Três restaurantes de Lisboa, muito diferentes mas com a mesma esperança: que esta segunda-feira seja o primeiro dia do resto da normalidade.
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No largo de São Cristóvão onde Lisboa volta a parecer uma aldeia e os sinos tocam a cada hora, o chef José Paulo Rocha, está a reabrir as portas d"O Velho Eurico.

Consegue notar-se o sorriso de excitação do jovem por detrás da máscara preta quando visitamos o restaurante. Dali a pouco os clientes voltam a poder sentar-se nas mesas das duas pequenas salas. É hora de ter tudo a postos depois de várias semanas fechados. Dentro do restaurante partilham-se ideias sobre a melhor forma de arrumar o espaço, tendo em conta as normas de segurança impostas pela covid. A jovem equipa de seis elementos gesticula com os seus braços tatuados os movimentos certos da arrumação das mesas e cadeiras junto às paredes ladrilhadas de azulejos claros.

Este é um ambiente diferente dos últimos dias. Apesar do confinamento, O Velho Eurico não parou. José Paulo Rocha e a sua equipa de seis elementos reinventaram-se. Cozinharam, promoveram os pratos nas redes sociais e entregaram, eles próprios, as encomendas à porta dos clientes. "Foram cerca de 30 a 40 encomendas por semana, o que não foi suficiente para cobrir toda as despesas mas deu para segurar o barco", conta o jovem chef de 23 anos. Agora, esta segunda-feira aguardam o regresso dos clientes de acordo com as regras da terceira etapa do desconfinamento ditadas pelo governo de António Costa.


Nada de novo para quem há um ano vive em função do que o vírus vai permitindo. José Paulo Rocha diz que a ideia é manter o espírito da casa e alguns dos pratos com sucesso , "como o arroz de pato e bacalhau à Brás", mas vai fazer coisas diferentes: "quero servir a comida das tascas típicas. Moelas, caracóis, pataniscas, tenho saudades de fazer isso".

O "restaurante típico" Eurico - que só mais tarde ganhou o nome de Velho - existe naquele mesmo local há 40 anos. O antigo dono, Eurico Ferreira, natural de Ferreira do Zêzere, por ali trabalhou durante quatro décadas, primeiro numa carvoaria que servia petiscos e depois no restaurante, que existia paredes meias com uma mercearia das quais ficou dono. Os anos foram passando, a servir as gentes da Mouraria até que adoeceu e vendeu o espaço.

Agora, O Velho Eurico é gerido por uma equipa jovem. Em consonância com quem o frequenta. Gente urbana, estudantes, artistas e estrangeiros que adotaram Lisboa como sua, sabem que a nova versão d"O Velho Eurico é uma abordagem contemporânea à típica tasca portuguesa, sem perder a tradição. Está lá tudo, das mesas aos copos e pratos e o pão e vinho sobre a mesa, mas com um pouco mais de requinte e conforto.

Na visita que fizemos de véspera, José Paulo Rocha conta as expectativas para mais uma abertura, não disfarçando o nervosismo da incerteza dos tempos que se vivem. Esfrega as mãos nas calças brancas como que as aquecer para o que aí vem. O desejo, claro, é que os restaurantes não voltem a fechar, que não exista mais confinamento e que aos poucos a azáfama de uma casa cheia com pratos a saírem da cozinha a toda a velocidade seja o novo normal. O jovem chef não vai em euforias: "seria bom, mas não conto que o restaurante vá encher logo no início, talvez a esplanada quando o tempo estiver bom", diz.

Mas promete resistência e resiliência. A partir desta segunda-feira o restaurante passa a servir almoços e jantares e a ter mais catorze lugares numa esplanada com vista para os sinos da Igreja de São Cristóvão e São Lourenço, uma das igrejas de Lisboa que não tombou com o terramoto de 1755. Talvez seja um bom presságio.

Na zona ocidental de Lisboa, quase por debaixo do tabuleiro da Ponte 25 de Abril, José António Nunes recebe os jornalistas de braços abertos na esplanada cheia de clientes do seu Solar dos Nunes. De camisa branca, imaculada, com alguns botões abertos que deixam transparecer um fio que certamente segura uma cruz, fala-nos de esperança. Quase a papel químico do que disse ao DN há 12 meses. A conversa tem lugar dentro do restaurante, quase pronto para abrir. As paredes continuam pejadas de memórias com fotografias de gente conhecida que por lá tem passado ou de artigos de revistas e jornais onde se contam as histórias de 33 anos do Solar.

Sentado num dos recantos do restaurante José António Nunes conta esperançoso e resignado: "Há um ano quando falámos ninguém sabia que a pandemia ia durar tanto tempo, é o maior oceano de obstáculo que tive na minha vida, e ainda hoje não sabemos quanto é que isto vai durar mais. O último ano tem corrido com o apoio dos amigos", como José António Nunes faz questão de tratar os clientes.


Dentro do restaurante, que faz lembrar a Lisboa cantada por Carlos do Carmo, a esperança existe mas é nervosa: "Tenho receio pelo futuro, não pelo setor da restauração mas pelos portugueses em geral. Vemos o esforço que os restaurantes fazem, com todas as medidas de segurança e higiene e todo o investimento, mas ao mesmo tempo, ouve-se falar de festas privadas às dezenas...".

Diz que não sabe falar de política mas não deixa de mandar recados para os decisores. "Não sei se a esquerda ou a direita faria melhor que o primeiro-ministro e o Presidente da República têm feito, não queria ter as dores de cabeça que têm e não é fácil gerir isto tudo no nosso país. Mas a restauração, sinceramente, tem sido muito mal tratada. A taxa de desemprego no setor está a subir muito, há miséria escondida. Não sei onde isto vai parar".


Mas há esperança? "Sim!", diz sem pestanejar. "Estou cá porque tenho esperança, sou um homem de força e quero acabar os meus dias à frente do Solar dos Nunes. Tenho largas dezenas de mensagens no telemóvel de amigos para continuar e não desistir".

O Solar dos Nunes, fundado há três décadas pela mãe e pai de José António Nunes e é um marco na cidade na cozinha tradicional portuguesa. Desde o início da pandemia conseguiu manter a sua brigada de 17 funcionários em layoff. Além disso, nestes meses, O Solar criou cinco pratos pensados para take away e para entregas em casa dos clientes, algo nunca antes pensado. "Tivemos que aprender, que nos adaptar, fizemos entregas na Ericeira, Sesimbra, Quinta da Marinha, cheguei a ter um fim de semana com oito carros na rua. Eu, a minha irmã, os meus sobrinhos, os meus colaboradores, todos na rua a entregar a nossa comida. E correu muito bem". A conversa é interrompida por um casal de clientes que faz questão de cumprimentar o dono do restaurante e enaltecer o serviço feito na esplanada. José António Nunes sorri, agradece, muito, e continua a conversa com cara de quem terminou mais uma missão com brio: a de servir bem os seus "amigos".

Na conversa segue-se a pergunta que ninguém quer ouvir ou responder: E se depois deste existir um novo confinamento e os restaurantes voltarem a fechar? "Não sei, temo pela restauração, isto já é tempo a mais", remata. Dentro do restaurante ou na esplanada, a resiliência dos Nunes recomeça esta segunda-feira.

Noutra zona da cidade, em plena estrada da Luz com vista para as Torres de Lisboa e para os viadutos da Segunda Circular, e sem as ânsias que outros têm do regresso dos turistas, o restaurante A Courense já funciona a meio gás. No dia da visita, vésperas da reabertura das salas no interior, a esplanada está cheia - são sobretudo jornalistas e comentadores dos jornais e rádios que existem nas redondezas.

É uma casa familiar, sabe isso quem a frequenta. O chefe de família, Manuel Brandão, 62 anos, está no restaurante desde agosto 1972, primeiro como empregado da taberna que ali existia e depois, logo jovem, a ficar com quotas da casa que ao longo do tempo foi comprando na totalidade à medida que os outros sócios iam morrendo.


A Courense tem "um ambiente familiar acompanhado de boa comida", diz. A cozinha tem a mão de Rosalina Brandão, mulher de Manuel que veio, tal como ele, do concelho de Vila Nova de Cerveira. A partilhar o serviço, o filho de ambos, Ricardo, 36 anos, formado em Belas Artes, que, em pé, afastado, faz questão de acompanhar as palavras do pai sentado a uma das mesa despidas com os jornalistas do Diário de Notícias.

Em tempos de pandemia, o cozido à portuguesa, a feijoada, o bacalhau e as batatas fritas, as quais vários críticos de gastronomia já enalteceram várias vezes, foram apresentados a novos clientes, resultado da aposta que Manuel fez no take away e nas entregas, feitas pelos próprios.

"Começámos a fazer entregas em casa de pessoas que vivem aqui na zona e que não nos conheciam, e que agora, com o interior do restaurante aberto, tenho esperança que nos passem a visitar, diz Manuel. Conta que o take away foi uma surpresa e boa solução para pagar as despesas do dia-a-dia - a que se juntou os apoios da junta de freguesia de e da câmara municipal - mas "não é serviço!", remata. "Falta a venda das bebidas, do vinho, dos cafés e dos dois dedos de conversa no final", conta de avental posto, encostado à parede de azulejos brancos e com mãos a retocar frequentemente a posição da máscara

O restaurante, que só serve almoços e encerra ao domingo, vai continuar a funcionar da mesma forma. Manuel Brandão não vê necessidade de mudar, acredita que este regresso aos restaurantes vai ser feito a conta-gotas "As pessoas têm um medo desgraçado. Até para fazer o pagamento automático o fazem afastados, ao longe. É muito tempo fechados em casa a ver televisão".

É precisamente a confiança e a manutenção das regras de distanciamento que vai ditar o regresso à normalidade da maioria da restauração, "aos poucos", como também acredita Manuel.


Três restaurantes muito diferentes, do típico tradicional para uma classe mais abastada, ao restaurante comum com sabores elevados pela "mão" regional da cozinheira ou à nouvelle vague de jovens chefs que enaltecem o produto e os costumes nacionais. Todos, em comum, partilham a vontade de voltar mas com receio de como a pandemia vai temperar o futuro.

filipe.gil@dn.pt

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