Tem uma carreira de músico, poeta, romancista. Quando fala deste O Livro que me Escreveu, que é o último livro que publicou em Portugal, está muito a falar das palavras. Para si, como cabo-verdiano, as palavras podem ser do crioulo, a sua língua materna, podem ser do português, a sua língua de educação, podem ser das outras línguas que aprendeu já adulto. Como é que as palavras e as línguas jogam na sua identidade? Eu tenho muito respeito pela palavra e acho que uma das coisas mais belas que já se escreveu foi “No princípio era o verbo”. Quando se estuda as religiões é a maior sacada metafórica da história da literatura. O cérebro não consegue pensar sem imagens, por isso existem tantas imagens de Deus e de santos para nos ajudar a conectar com o que nós queremos. O cérebro não tem essa capacidade, a não ser depois de muita prática meditativa quando se consegue, por breves instantes, estar nesse espaço do não criado e não findo. Ora, cada palavra carrega então a história do mundo e isso interessa-me muito. Eu carrego a minha história e carrego a história dos outros. Quando se nasce tem-se uma língua materna e depois tem-se o contacto com a língua que hoje é a língua oficial de Cabo Verde. Mais ainda, porque as palavras também são borboletas, são o final do processo da lagarta. Por exemplo, em Cabo Verde nós dizemos “parlamentarismo mitigado”, é esse o termo, mas em crioulo é de morrer a rir porque “mitigado” significa uma pessoa muito pobre que não tem onde cair morta. Outro exemplo, a palavra “galante” em crioulo significa uma mistura de feio com ridículo, se se disser a uma pessoa feia ou mal vestida que está galante é muito ofensivo porque além de se dizer à pessoa que está feia estamos também a dizer-lhe que ela está ridícula. E porquê? Porque nos séculos XV, XVI, XVII, quando os senhores chegavam à missa na Ribeira Grande de Santiago, com aquele calorzão, vestidos com meias e penas e casacos, dizia-se que estavam galantes, ou seja podiam estar bonitos, mas eram também muito ridículos [risos]. Portanto, tenho muito interesse pela sociologia das palavras, pela história antiga das palavras e, às vezes, pela memória das palavras. Há palavras que viajam e vão perdendo o seu rasto..Sendo músico e sendo escritor, as palavras são diferentes quando são cantadas e quando são escritas? São, porque as palavras são mais do que léxicos. O léxico é uma pertença de significado de cada língua, enquanto a palavra é uma entidade seja em que língua for. É como se dissermos, e por isso falei do verbo, Deus, aí estamos a falar do que os cristãos acham que é, do que os muçulmanos acham que é, do que os hindus acham que é. É engraçado porque nós em Cabo Verde usamos muito o termo literatura oral e a palavra vem de quando ainda não havia escrita..A literatura oral existe sobretudo em crioulo? Basicamente em crioulo. Quando não havia escrita como é que nós guardávamos a memória das coisas? Como é que poetizávamos e contávamos histórias e filosofávamos? Fazíamo-lo porque existia a palavra independentemente dos caracteres que nos ajudam a guardar essa palavra. Quando nós escrevemos em português tem uma pimenta, porque não nascemos a pronunciar ou a fazer frases nessa língua. O nosso contacto com a língua acontece aos seis anos e isso criou um novo universo linguístico com o léxico que nós já conhecíamos..Pode haver choque, como com o exemplo que deu da palavra galante... Aliás, só por isso a minha literatura, desde que escrevi o primeiro romance, é muito tendencialmente quinhentista, porque é a base da língua crioula. Os cabo-verdianos, às vezes, ficam com vergonha de falar crioulo....Está a dizer que há quase um arcaísmo na sua escrita. Exatamente, porque está tudo em crioulo, eu não invento. Por vezes tenho de explicar e já tive histórias em que a minha editora, que eu adoro, e jornalistas também, precisam dessa explicação. A Maria do Rosário Pedreira, que eu digo que me fez escritor, temos uma história muito bonita, pergunta-me se esta ou aquela palavra existem e eu respondo-lhe que vêm do português... O meu amigo Francisco Fontes, que foi delegado da Lusa em Cabo Verde, a quem eu mando os meus livros, também, perguntava. Agora, eu invento palavras a partir de uma sugestão sonora, por exemplo, neste livro eu digo “lumimoso”, porque a palavra é luminosa, mas também é mimada, então isso cabe numa só palavra. “Lumimoso” ou “lumimosa” são invenções e isso faz parte..Às vezes para um português como eu pode ser difícil de perceber, porque a minha língua materna é a minha língua de educação. Como é que um cabo-verdiano ajusta a sua identidade a estas duas línguas? Existe um debate sobre se o crioulo devia ou não ser a língua oficial, uma vez que a Constituição prevê essa possibilidade. Se os cabo-verdianos ficassem fechados no crioulo reforçavam a sua identidade, mas perdiam a abertura para o mundo? Essa questão em Cabo Verde não se põe, porque mesmo que se tire a língua oficial portuguesa, nós continuamos com uma língua em que mais de 90%, há livros que dizem que chega a ser 99%, do léxico vem da língua portuguesa. O nosso crioulo é chamado crioulo de base lexical portuguesa. Não só estaríamos a falar uma língua que é evidentemente a nossa, com uma estrutura gramatical proveniente de línguas africanas, como o português continuaria ali. Ele está presente, por exemplo, nas canções, a transferência das palavras está ali. No nosso caso, todos os escolarizados passam a ser bilíngues e esse bilinguismo é mais do que uma opção, ele torna-se, de certo modo, biológico. Porque o ensino ser feito na língua portuguesa e eu poder sair da escola e logo ali à porta começar a falar imediatamente em crioulo, o meu cérebro vai-se adaptando..O livro que me escreveuMário Lúcio SousaD. Quixote184 páginas14,40 euros.No dia à dia, a criança está na escola a falar com o professor em português, no intervalo vai falar com os amigos em crioulo e depois, quando chega à idade adulta, fala crioulo em casa e português no trabalho? Sim, trabalha em português, escreve em português. O cérebro diz-me o seguinte: eu estou aqui, a olhar para as árvores e, de repente, sinto uma inspiração e pego na caneta. Se os primeiros versos vierem em crioulo, eu sei que é uma música e a minha biologia é que mo diz. Pelo contrário, todos os meus romances, sem exceção, começam com uma frase que cai do céu na língua portuguesa. O meu Novíssimo Testamento começava com essa frase que é a de uma senhora a morrer e a pronunciar as palavras. A primeira frase dos meus livros vem sempre em português..Nesta dicotomia entre o crioulo e o português, as duas línguas podem evoluir paralelamente? Essas duas línguas são usadas no geral, mas quando digo no geral não quero dizer toda a gente, no meio urbano é mais evidente, no meio rural o uso do português é menor. Nas nossas casas, e é por isso que eu digo que é biológico, o cérebro sabe as duas coisas, falamos com uma criança em crioulo, repetimos, a criança não escuta, não obedece, a terceira vez vem em português porque é uma língua de autoridade..É um legado histórico? É e é bonito isso. Nós dizemos à criança que está a brincar para se sentar em crioulo, ela não obedece, à segunda também não, aí dizemos em português “senta-te!” e a criança senta-se..Cabo Verde é um país que se distingue muito em África de várias formas. Há uma muito positiva, que é ser uma democracia consolidada com alternância política. E também aquele lado de Cabo Verde que é ser admirado pelo soft power, a música, a cultura, a gastronomia. Como é que se explica esta especificidade cabo-verdiana? Vem do próprio processo de formação do país? É o processo de formação, porque isso começa com uma situação que se criou para que o povo não tivesse identidade porque não havia população autóctone de referência. De repente chegam os portugueses e outros europeus, principalmente franceses, italianos, ingleses, que tiveram importância na formação do povo cabo-verdiano em diferentes ilhas, e chegam os judeus perseguidos pela Inquisição e depois pelo Estado Novo, que foram importantes. Antes, quando os europeus chegaram, trouxeram os africanos à força, homens, mulheres e crianças escravizados. Então, nascem as primeiras pessoas nas ilhas. Essas pessoas perguntavam-se quem eram, se aquelas ilhas onde estavam eram África ou Europa..Mas a miscigenação demora a acontecer? Evidentemente, mas repare que no caso de Cabo Verde, os escravos que nasceram nas ilhas, quando o Brasil foi descoberto já tinham 34 anos, já eram velhos demais. Portanto, foram os filhos desses escravos que foram enviados para o Brasil, e porque é que já eram cabo-verdianos crioulos? Porque eles eram filhos de mães africanas e pais portugueses em muitos casos. Eram escravos valiosos, muitos deles batizados, muitos deles trabalharam no que seria a sociedade cabo-verdiana e já estavam na mediação das línguas, portuguesa e africanas. Daí nasceu depois a língua crioula de Cabo Verde..A identidade africana dos diferentes escravos que foram levados para as várias ilhas vai desaparecer muito rapidamente? Desaparece porque não ficaram grandes comunidades. A música como é que surge? Dessa não identidade. A pessoa não sabia em que continente estava, não sabia que língua falar porque lhe era imposta uma língua, mas tinha referências de outra que lhe era proibida, no meio de vários instrumentos, europeus e africanos, não podia dizer que era só negro nem só branco porque o pai era branco e a mãe era negra. A pessoa não podia renegar a sua identidade. Aí acontece, mais do que a miscigenação, a criação de uma cultura síntese. Miscigenar está muito ligado ao conceito genético, enquanto a cultura síntese está ligada a uma opção social de sobrevivência. Tens de criar a tua própria língua, a tua própria música, para poder ter a mãe e o pai no mesmo contexto. Essa cultura síntese é a força da música de Cabo Verde. A nossa música tem características do continente africano, do continente europeu, tem uns traços da música arábico-andaluza que nos chegam também com os europeus, do que nos chega com os judeus e, mais tarde, com a passagem dos navios brasileiros por Cabo Verde. Tudo isso faz a nossa música. Ainda estamos em processo de conformação de uma cultura consolidada, mas segundo definições o crioulo é exatamente uma cultura dialética. Por isso eu não uso a palavra crioulidade, mas crioulização, porque estamos permanentemente em processo de transformação pois somos uma cultura de misturas..Leonardo Negrão / Global Imagens.Esta existência de uma diáspora cabo-verdiana na Europa, mas igualmente nos Estados Unidos e em África também contribui para a crioulização? É evidente, interna e externa. Houve um momento em que a nossa música começou a ser conhecida em Portugal, ao de leve nos anos 1940, depois evoluiu, chegou aos Estados Unidos e a seguir tomou conta da Europa. Nós trouxemos essa música, mas, de repente, começámos a receber a música da nossa diáspora, de Portugal, da Holanda e de França, que influencia no arquipélago a forma de fazer novas músicas. Há uma troca permanente. Há uma pincelada social no nosso percurso ligada à diáspora. Eu lembro-me sempre de a minha avó me dizer: O que é que há na costa de lá? Quando as pessoas emigravam diziam que finalmente podiam ir ver o que é que havia na costa de lá. Nós estamos muito ligados a querer saber o que é que há do lado de lá. Faz parte da nossa “existência” a ideia de visitar mundos e voltar..Há algum país de África que tenha alguma semelhança com esta lógica cabo-verdiana ou é mesmo única? Há, porque África também é diversa e múltipla. Se considerarmos Madagáscar, Seicheles, Reunião, Ilhas Maurícias... Ainda mais, tenho o meu conceito de que África, a partir de um certo momento da história, para além de ser um continente passa a ser um conteúdo. Isso para poder englobar os que não estão no continente, estamos a falar de Cuba, Haiti, Martinica, Santo Domingo, Nova Orleães... vai-se encontrar semelhanças no processo de formação dessa África toda..Os africanos continentais olham para os cabo-verdianos como africanos ou acham que são qualquer coisa a meio do caminho da Europa? Eu já escrevi isso no Manifesto a Crioulização sem nenhum tabu. Eles não nos acham muito africanos. Somos africanos na política, na filosofia, na forma como escolhemos ser africanos, um país independente acarinhado por África, por todos os regimes, por todas as instituições, por todos os Estados. Nós somos africanos. Essa é a minha opção e também é a minha crença, mas também já discuti com muitos africanos e tenho essa verdade em mim, a de que tenho de ter alguma delicadeza na minha afirmação africana. Na verdade, eu só tenho uma parte africana e, querendo ou não, a outra parte é europeia. Muitos cabo-verdianos têm avós, bisavós, trisavós, que vieram de Portugal e da Europa. Isso faz com que nós assumamos a cultura síntese da crioulização, aquilo que commumente se diz “o mestiço”. Para mim, o crioulo é mais do que simplesmente a mestiçagem, mas faz parte. Nós, em relação ao continente africano temos um tratamento semelhante ao que temos na Europa. Quando estamos em África somos africanos, mas non troppo e quando estamos na Europa não somos europeus..Em termos das ilhas, a miscigenação é transversal, mas esta crioulização de Cabo Verde é distribuída igualmente por todas as ilhas ou não? É por todas as ilhas. Isso acontece por causa do percurso do povoamento. Isto é, se os portugueses tivessem povoado todas as ilhas simultaneamente talvez houvesse bastante diferença entre umas ilhas e outras. No entanto, eles povoaram a ilha de Santiago e é a partir daí que se dá o povoamento das outras ilhas. Portanto há sempre um núcleo que viajou com a língua, com os ritmos, com a música e com a miscigenação genética. Há outro processo, mais tarde, em que os cabo-verdianos debatem isso abertamente sem complexos. Há em Cabo Verde gente que diz que não é africana, mas nunca ouvi gente a dizer que era europeia. Essa coisa de dizer “não sou africano” é como dizer que não se é só africano. Havia intelectuais que diziam “não somos nem isso nem aquilo”, eu digo que somos isso mais aquilo..É possível dizer, por exemplo, que não existe a questão da raça em Cabo Verde, que qualquer que seja o tom da pele a pessoa é vista como um cabo-verdiano e ponto final? Em Cabo Verde não temos essa questão, mas isso não quer dizer que não haja racismo, porque o racismo é uma questão de cada pessoa. A nossa sociedade não tem etnias, nunca tivemos etnias até hoje, portanto não temos assentamentos étnicos. Acabamos por criar uma identidade síntese que tem várias etnias e várias outras culturas dentro e isso reflete-se na política. Por exemplo, o primeiro presidente de Cabo Verde, Aristides Pereira, era, como nós dizemos lá, escuro, e o primeiro-ministro era assim parecido contigo. Depois vêm as primeiras eleições democráticas, ganha um presidente mais escuro que o primeiro, o António Mascarenhas Monteiro, e ganha um primeiro-ministro mais claro do que eu, o Carlos Veiga. Anos mais tarde ganha um presidente da República mais claro do que tu, o Jorge Carlos Fonseca, e o primeiro-ministro é o José Maria Neves que é mais ou menos da minha tipologia e que hoje é o atual Presidente da República que tem um primeiro-ministro que é dos mais escuros que já houve [risos]..Diz disso a brincar, mas em muitos países africanos não poderia brincar com estas coisas... Claro que não, mas eu falo da minha realidade cabo-verdiana onde, felizmente, encontramos isso dentro da mesma casa. Dentro da mesma família temos alguns irmãos que uns vão sair ao bisavô e são claros de olhos verdes e um outro que saiu ao pai diretamente e é preto, como nós dizemos em crioulo..Portanto, a família reflete a sociedade? Evidentemente. Também há ilhas onde, no interior da ilha, há uns 30 ou 40 anos havia uma percentagem de pessoas escuras muito pequena e noutra uma percentagem de pessoas claras muito pequena também. Por exemplo, no interior da ilha Brava havia maioritariamente pessoas de ascendência europeia. No interior da ilha de Santiago já não, porque os descendentes de escravos fugiram para as montanhas e a sua ascendência é mais africana..Mas esse sentimento de ser cabo-verdiano hoje em dia é transversal às ilhas e a todas as classes? Todos nós criámos um país. Eu diria mais do que criar, inventámos. Em relação à independência há uma questão política interessante: o processo de maturação da nossa identidade, que leva à criação de uma língua e de um nome, para podermos dizer que somos cabo-verdianos, e daí a pertença à comunidade mundial dos crioulos. Nós somos de uma comunidade mundial como quando alguém diz que é europeu, africano ou judeu ou hindu. Nós não somos só cabo-verdianos fechados no nosso umbigo, somos crioulos do mundo espalhados pela Ásia, pela África, pela Europa e pela América, evidentemente. Nesse processo, os cabo-verdianos percebem a partir de certo momento que não podiam ser súbditos de ninguém, porque tinham criado uma identidade. A tendência é a de as identidades renegarem a subserviência e quererem uma afirmação. Aí começa o processo da contestação do domínio colonial. Por isso é que quando se dá o processo da descolonização e independência, é um processo que já vinha de há quatro séculos..É como se houvesse um caminho desde o povoamento das ilhas que não têm ninguém até à formação de um povo e a chegada desse povo à independência? Para resumir, quando faço palestras no estrangeiro digo assim: Imaginem um lugar onde não havia um assentamento populacional com expressão e esse mesmo lugar, cinco séculos depois tem um povo, um Estado, um passaporte, um governo, uma bandeira. É um sucesso. É um país que já chegou a perder um terço da sua população devido à fome em alguns lugares, é um país que em 1975 tinha 75% da população analfabeta e que 49 anos depois da independência está acima dos 90% de população alfabetizada e pertence aos países em vias de desenvolvimento. Ou seja, é um país de desenvolvimento médio, já deixou de ser um país pobre.