Quando a 12 de novembro de 1900 se deu o ato final da Exposição Universal de Paris, acima de 50 milhões de visitantes haviam franqueado nos sete meses anteriores os portões de acesso aos 112 hectares do certame. Nos anos que antecederam a mostra internacional, a capital francesa mudara de feição, beneficiando de novas estruturas, entre outras, a Gare d" Orsay, o Grand e Petit Palais, a Ponte Alexandre III, sob a sombra tutelar da Torre Eiffel, inaugurada 11 anos antes para a Feira Universal de 1889, agora abrilhantada com 7.000 lâmpadas elétricas e pintada de laranja e amarelo..No dealbar do século XX, a Indústria e a Tecnologia subiram ao palco da exposição parisiense. Aos visitantes do certame ficava o convite para se deslocarem numa passadeira rolante, acionada a eletricidade, assim como num comboio urbano; utilizarem escadas rolantes, testarem novos motores a diesel, endereçarem o seu olhar ao espaço, à boleia da lente de um telescópio; encantarem-se com a Arte Nova, nascida na última década do século XIX, inspiradora dos novos pórticos do metro de Paris..A mostra parisiense, onde se apresentaram mais de 40 países, entre eles Portugal, marcou a linha de fronteira entre dois séculos e entre dois mundos. A Galeria das Máquinas, estrutura criada para a mostra de 1889, recuperada na feira de 1900 foi disso mostra. Duas atrações digladiavam-se a atrair não só o afeto, mas também os francos dos visitantes. Um colosso denominado Mareorama reproduzia a uma escala hercúlea uma viagem de navio mediterrânica. A atração era herdeira dos grandes espetáculos de panoramas nascidos no século XVIII, pela mão do irlandês Robert Barker, disseminados na Europa e nos Estados Unidos no século XIX. Os panoramas configuravam apresentações para as massas, de telas pintadas à mão, "imersivas", montadas a 360º em torno do público, conferindo a ilusão de presença em paragens distantes. Na galeria parisiense, a competir com o gigantismo do Mareorama, uma atração dava os seus primeiros passos junto do público. O Phono-Cinéma-Théâtre prometia nos seus cartazes "visões animadas dos artistas famosos". O espetáculo era tributário de duas invenções de décadas anteriores, o cinematógrafo, de 1895 (ano de registo da patente pelos irmãos Lumière), marco inicial da história do cinema; e o fonógrafo, aparelho inventado em 1877 pelo norte-americano Thomas Edison para a gravação e reprodução de sons através de um cilindro..Vinte e sete anos antes da apresentação oficial do primeiro filme sonoro norte-americano, O Cantor de Jazz, de Alan Crosland, Paris testava timidamente o casamento entre som e imagem. O David que se estreara a 27 de abril frente ao Golias, Mareorama simbolizava o novo século. O titã de 33 metros de comprimento a recriar, à escala de um para um, um navio a vapor, movido a motores hidráulicos e com capacidade para, a cada sessão, transportar mais de 700 espectadores, afundar-se-ia com o século XX, face aos atrativos da imagem em movimento de pioneiros do cinema como os irmãos Lumière..Nos finais do século XIX, os franceses Henry Lioret e Clément Maurice Gratioulet desenvolveram a ideia de sonorizar os seus filmes. Henry Lioret trazia no currículo sucessivas adaptações do fonógrafo, incluindo o feito de ocultar um destes aparelhos naquilo que denominou "boneca falante", brinquedo comercializado no Natal de 1893, dotado de cilindros de cera onde foram gravadas saudações em francês, espanhol e inglês. O Bébé Phonograph de Henri Lioret viajou na bagagem do presidente francês Félix Faure, na sua visita à Rússia, em 1897. Em São Petersburgo, a grã-duquesa Olga Nikolaevna Romanova, filha do imperador Nicolau II, recebeu das mãos do dirigente francês um trio de bebés falantes..Na Exposição Universal de Paris, Lioret e Gratioulet deram voz não a bebés, mas a artistas que brilhavam nos palcos da Comédie-Française, nos teatros de Vaudeville e circos. George Foottit e Rafael Padilla, a dupla de palhaços Footit et Chocolat, assim como Jean Coquelin e Sarah Bernhardt, tiveram as suas vozes gravadas e representações eternizadas em filmes sincronizados com voz e imagem. Uma dança a dois difícil de acertar. Havia amiúde que ajustar manualmente o ritmo entre os dois meios de reprodução..A poucos metros do Phono-Cinéma-Théâtre, imperioso na sua presença, o Mareorama nascera das mãos do engenheiro e pintor de cartazes publicitários francês Hugo d"Alesi. A estrutura com centenas de toneladas combinava o gigantismo de pinturas panorâmicas em movimento e a ação proporcionada por uma grande plataforma mecânica. Os visitantes do Mareorama eram convidados a embarcarem numa viagem virtual que os levava por mar desde Villefranche (França) até Constantinopla (atual Istambul, na Turquia)..Uma tela de 19 500 m2, aproximadamente 800 metros de comprimento e 13 metros de altura desfilava frente aos visitantes, movida por um par de cilindros, acionados por motores hidráulicos. Nos oito meses que antecederam a exposição de Paris, um batalhão de pintores decorativos transferira para a tela os esboços rascunhados ao longo de um ano por Hugo d"Alesi. Agora, dezenas de milhares de espectadores, "embarcavam" numa plataforma que reproduzia com fidelidade um navio. Uma combinação de cilindros hidráulicos, correntes e motores elétricos, permitia que a plataforma rolasse em diferentes direções. Os passageiros deste navio a mais de 600 quilómetros do Mediterrâneo, experienciavam em terra a viagem marítima. Efeitos sonoros reproduziam o som do vento no cordame e o troar da sirene a vapor. Variações na iluminação recriavam o dia e a noite e o susto de relâmpagos. Algas e alcatrão forneciam um elemento olfativo. Ventiladores entregavam aos espetadores a ilusão da brisa marinha e dezenas de figurantes o afã da tripulação de bordo. Nos bastidores, uma orquestra interpretava Illusion d"un voyage de mer, composta por H. Kowalski..Não obstante o sucesso o Mareorama não sobreviveria ao fim da Exposição Universal de Paris, desmontado e esquecido. A era dos panoramas esmorecia, a do cinema emergia. Ao Phono-Cinéma-Théâtre não estava reservado futuro. A mostra de Paris não lhe proporcionou particular sucesso, embora tenha iniciado uma digressão europeia posterior, nomeadamente na Alemanha. Em 1961, a Cinemateca Francesa anunciava a descoberta de 18 títulos associados à pré-história do cinema sonoro, entretanto recuperados pelo especialista em imagem Henri Chamoux e o seu archéophone, dispositivo capaz de ler e gravar cilindros danificados. Vale a pena uma visita à Internet para assistirmos aos dois minutos de filme de 1900, Cyrano de Bergerac, de Clément Maurice. Uma viagem dos nossos olhos a um passado que encantou os visitantes da Exposição Universal de Paris..dnot@dn.pt