Na semana passada, dez médicos e nove enfermeiros da Unidade de Saúde Familiar Parque da Cidade, da ULS Loures e Odivelas, entregaram escusas de responsabilidade, devido às condições em que estão a exercer a “prática clínica” - a estes juntaram-se quatro assistentes técnicos, somando-se assim 23 escusas de responsabilidade sobre o que poderá acontecer nesta unidade se continuarem a funcionar nas condições em que estão. Mas os 19 médicos e enfermeiros não foram os únicos a apresentar este documento no decorrer deste ano. Segundo dados disponibilizados ao DN pelas ordens das classes médica e enfermagem, 1248 profissionais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) já fizeram o mesmo – 248 são médicos do Sul e Ilhas e do Centro e mil são enfermeiros de todo o país. Os números registados até meio de julho, no caso dos enfermeiros, ainda são “inferiores” aos totais alcançados em 2024 e 2023, respetivamente 1353 e 2116, mas até ao final do ano o total de 2025 poderá aumentar. Para já, o bastonário Luís Filipe Barreira diz que o número atingido até agora, que indicia uma redução, “é positivo”, mas continua a refletir que “os problemas de fundo permanecem”.No caso dos médicos, também tudo pode mudar no segundo semestre, já que a Secção Regional do Sul e Ilhas da Ordem, que é a que regista sempre o maior número de escusas de responsabilidade, já contabiliza 236, quando no ano de 2024 o total foi de 295. “A continuarmos com este ritmo de entregas de escusa, provavelmente, atingiremos as 400”, explicam ao DN, pois “o número de documentos entregues aumenta sempre em épocas de maior pressão, como o mês de agosto ou época de Natal”. Na Secção do Centro, foram contabilizadas até dia 17 de julho apenas 12 escusas de responsabilidade, em 2024 o total foi de 56. Ou seja, no primeiro semestre deste ano, estas duas secções regionais da ordem dos médicos já contabilizaram 248 escusas de responsabilidade, quando em 2024 o total foi de 351. A confirmar-se que a Seção do Sul e Ilhas pode receber cerca de 400 até ao final do ano, quer dizer que, nesta classe, haverá um aumento de entrega destes documentos contando apenas com os dados de duas seções, já que o DN pediu os mesmos à Secção Regional do Norte, que não os disponibilizou até à publicação deste texto.Mesmo assim, e tendo em conta os dados das duas seções da Ordem dos Médicos, a presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), Joana Bordalo e Sá, considera que “são números por baixo, porque há escusas que são apresentadas só nos conselhos de administração das Unidades Locais de Saúde (ULS), as entidades às quais devem ser entregues em primeiro lugar, e que não são dadas a conhecer aos sindicatos nem à ordem”.Profissionais das urgências e das especialidades de Medicina Interna e Cirurgia são quem entrega mais escusasSeja como for, tanto para esta dirigente sindical como para os bastonários dos médicos e dos enfermeiros “uma escusa de responsabilidade” é sempre “um alerta”, que “não pode ser ignorado”. “Os profissionais usam este documento para atestarem que estão a trabalhar em condições que podem colocar em risco a prestação de todos os cuidados de que necessitam os utentes”, sustentam ao DN. Talvez por isso mesmo, concordem também que a região de Lisboa e Vale do Tejo e a do Algarve, as mais pressionadas com a escassez de recursos humanos, sejam as que registam o maior número de escusas de responsabilidade. E dentro destas os hospitais mais visados são o Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra) - que “deve refletir metade dos documentos recebidos este ano”, segundo a Ordem dos Médicos - Garcia de Orta, Vila Franca de Xira, Barreiro, Beatriz Ângelo, Setúbal, Santarém, Santa Maria e Faro. Mas há ainda a registar escusas de responsabilidade apresentadas em serviços das regiões da Madeira e dos Açores.Joana Bordalo e Sá destaca ao DN: “Desde o início do ano, já recebemos mais de meia centena de escusas de responsabilidade, a última foi na semana passada em relação à USF Parque da Cidade, onde os profissionais denunciaram temperaturas superiores a 35ºC no interior da unidade — um cenário que, compromete a segurança dos utentes e o desempenho clínico dos profissionais, sendo que também há queixas no norte do país, em centros de saúde e hospitais”. .FNAM apela a escusas de responsabilidade massivas e decide prolongar greve às horas extra. A dirigente sindical relembra que este “documento é utilizado pelos médicos quando consideram que não estão reunidas as condições mínimas para exercer a atividade clínica em segurança, tanto para os utentes como para os próprios”, confirmando que “a maioria das queixas refere-se a unidades de saúde da região Sul do país, com destaque para o Hospital de Faro, que lidera em número de escusas apresentadas na área da Oncologia, seguido do Hospital Garcia de Orta, em Almada, e do Hospital Amadora-Sintra”.Em relação aos motivos, médicos e enfermeiros concordam também que a maioria tem por base a escassez de recursos humanos, “mais de 40% das escusas apresentada têm por base equipas clínicas desfalcadas e condições básicas de trabalho”, sustenta a dirigente da Fnam. O que justifica também que a esmagadora maioria das escusas de responsabilidade sejam submetidas “por médicos da especialidade de Medicina Interna, enquanto cerca de um terço estão relacionadas com serviços de urgência”, acrescenta. No entanto, também há escusas de responsabilidade apresentadas noutras áreas, como Cirurgia, Ortopedia, Ginecologia-Obstetrícia, Medicina Geral e Familiar e Oncologia - áreas que “tradicionalmente são mais sobrecarregadas e pressionadas pela escassez de recursos humanos e condições de trabalho, sobretudo nos serviços de urgência, mas não só. Serviços em que os médicos trabalham com equipas desfalcada e para lá do limite da exaustão”, sustenta Joana Bordalo e Sá, reforçando que a estrutura que dirige vai continuar “a alertar para a gravidade dos problemas que se vivem no SNS e para a necessidade de medidas urgentes que garantam condições dignas e seguras aos médicos e aos utentes”. .Mais de mil médicos de 45 unidades apresentaram escusa de responsabilidade. Na opinião da sindicalista, “o Primeiro-Ministro pode repetir números e slogans no debate do estado da nação. Pode fugir às perguntas da Saúde, mas não pode fugir à responsabilidade pela crise que se vive no SNS”.Do lado do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), a dirigente Maria João Tiago, confirma ao DN ser “normal recebermos nesta altura do ano, época de férias, tal como no Natal, escusas de responsabilidade. No mês de julho já recebemos 14”, embora o DN tivesse ficado sem saber o total desde o início do ano. Para a dirigente do SIM, “a falta de profissionais para assegurar as escalas são uma das principais razões para a apresentação deste documento", assume, explicando: "As escalas das urgências são feitas a partir do princípio que os médicos aceitam cumprir mais horas extraordinárias do que as legais e das que já fizeram na realidade, muitas vezes, centenas de horas a mais, e com o recurso a colegas prestadores de serviço, quando isto falha o funcionamento das urgências está em risco e as escusas de responsabilidade começam a aparecer”.Escusa de responsabilidade está na Constituição portuguesa e “é um dever ético e moral”Como diz o bastonário dos médicos, a escusa de responsabilidade “é um mecanismo legal. Está na Constituição portuguesa. E mais do que um alerta é um dever moral e ético de qualquer funcionário público, que tem de comunicar superiormente as insuficiências que tem para desenvolver o seu papel e a sua atividade corretamente”. Carlos Cortes salvaguarda que o número de escusas recebidas até agora nas várias secções regionais da Ordem pode ser inferior aos totais dos anos anteriores, mas a verdade é que “todas as semanas recebo no meu gabinete documentos deste teor, que são sempre um grito de alerta. Se um médico apresenta este documento é porque considera que já não há mais nada a fazer", o que para o representante da classe é também “um sinal de grande responsabilidade e de coragem”. O bastonário sublinha que “os médicos são muito zelosos e rigorosos nesta matéria. E quando não têm as condições necessárias para poder interpretar os seus doentes, porque é isso que querem e devem fazer, e que tal pode ter um impacto negativo sobre a prestação dos cuidados de saúde, apresentam um documento de escusa de responsabilidade”, esclarecendo ainda que “tal documento não é uma escusa ao trabalho nestas condições, como não é uma escusa à realização dos procedimentos que têm de ser feitos. É simplesmente um alerta às chefias, às administrações e aos organismos que gerem a Saúde de que já não têm as condições necessárias para exercerem”. .Um em cada 10 enfermeiros pediu escusa de responsabilidade pelos cuidados prestados . O representante da classe médica especifica ainda que este documento "não elimina o médico da sua responsabilidade disciplinar em determinado acontecimento que não seja o de adequado. O documento em causa é meramente para as condições de trabalho". Segundo explica, quando uma escusa de responsabilidade chega à ordem, as situações relatadas são sempre analisadas. O mesmo acontece com as escusas de responsabilidade entregues na Ordem dos Enfermeiros (OE). “A escusa de responsabilidade é um mecanismo formal que os enfermeiros utilizam sempre que consideram não estarem reunidas as condições para garantir cuidados com qualidade, segurança e dignidade. É também um instrumento de proteção profissional e uma forma de sinalizar situações de risco para os doentes”, explicam os enfermeiros ao DN. Por isso mesmo, “sempre que recebe um pedido de escusa, a OE atua junto das administrações das unidades de saúde envolvidas, procurando soluções”, apesar de muitas vezes, continuarem “a existir dificuldades estruturais, designadamente na contratação de mais enfermeiros, o que impede uma resposta adequada às necessidades identificadas”.Ao DN, Luís Filipe Barreira reconhece que “a Ordem dos Enfermeiros registou uma redução do número de pedidos de escusa de responsabilidade apresentados por enfermeiros em 2024 e no primeiro semestre de 2025, face aos anos anteriores, e que este decréscimo reflete um alívio relativo em alguns contextos, mas não representa uma resolução do problema, mantendo-se focos de grande pressão e risco assistencial em várias zonas do país”. Os números do primeiro semestre podem apontar para uma tendência de estabilização ou diminuição global, mas há “regiões que continuam a registar níveis elevados de escusas, ou mesmo aumentos localizados, como é o caso do Hospital de Vila Franca de Xira, onde dezenas de enfermeiros apresentaram pedidos de escusa de responsabilidade. Trata-se de um número muito significativo, que reflete o impacto da sobrecarga assistencial e da ausência de dotações seguras num serviço hospitalar de referência”.O verão ainda não terminou. O pior mês, segundo os profissionais, está para chegar e "já registámos situações dramáticas", sublinha Joana Bordalo e Sá. Para o bastonário dos médicos "é obrigatório que todos os médicos que estejam a lidar com as condições necessárias à sua prática lancem o alerta através de uma escusa de responsabilidade".