Foi mais uma vez numa audição parlamentar que Ana Paula Martins escolheu anunciar medidas que a sua equipa está a preparar. Há uma semana anunciou a criação de uma urgência regional para breve na área da Ginecologia/Obstetrícia para a Península de Setúbal - mas sem adiantar pormenores porque o diploma ainda estava em preparação – e a publicação, dentro de quatro dias, a contar aquela data, da Rede de Referenciação para as urgências nesta área – só que até à última terça-feira, nada se sabia desta última medida. Esta semana, e ainda no âmbito de uma audição regimental, a ministra voltou a aproveitar as respostas às questões dos deputados para anunciar, pelo menos, duas medidas para matérias que têm estado sob pressão, como utentes sem médico de família e a vigilância das grávidas por enfermeiros especialistas. No entanto, assumiu que tanto uma como outra ainda estão na fase de “preparação” ou a ser “avaliada”.No que toca aos médicos de família, Ana Paula Martins disse estar a ser preparado “um clausulado” que permita o estabelecimento de “convenções” (acordos, se quisermos, para prestação de cuidados) com médicos do setor privado ou social para o atendimento de utentes sem médico de família no Serviço Nacional de Saúde (SNS), embora, e como o assumiu o próprio secretário de Estado da Gestão da Saúde, Francisco Rocha Gonçalves, se trate de uma medida que só deverá estar pronta para aplicação no final deste ano. O objetivo é que com este tipo de convenção o se consiga reduzir o número de utentes sem médico de família, que continuam a aumentar à medida que aumenta também o número de inscritos no SNS.Ao DN, a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) diz que esta “poder ser a solução para alguns doentes”, mas, alerta, “é essencial que tais convenções sejam feitas com médicos de família e garantindo todos os critérios de segurança e qualidade na prestação de cuidados – ou seja, que esta seja equivalente aos cuidados prestados no SNS”, afirma o vice-presidente, António Luz Pereira. A questão, destaca ainda, “é que estes médicos, que preferiram ficar fora do SNS e estão noutros setores, também já têm tarefas atribuídas e a sua carga de trabalho, e não sabemos se estarão disponíveis para aceitar tais convenções”. De qualquer forma, “poderá ser o passo intermédio que está a fazer falta nalgumas zonas do país onde se possa aproveitar toda a capacidade existente de médicos de família noutros setores”..Ministra da Saúde anuncia novo regime de convenções até final do ano para atribuir médicos de família .Existem cerca de oito mil médicos de família no país, mas só 5500 no SNSQuestionado sobre se o número de médicos de família existente no país é suficiente para fazer face às necessidades da população, o dirigente da APMGF sustenta que “há muitos médicos de família fora do SNS”. Aliás, reforça, “o que temos vindo a assistir a cada ano que passa e em cada concurso lançado é que a percentagem de colegas que opta por ficar fora da carreira do serviço público é elevada, muitos optam logo à partida pelos setores privado ou social ou até por emigrar”. Segundo o médico, nos últimos anos em cada 400 especialistas que se formam “há cerca de 150 que não se candidatam a qualquer vaga para o SNS”. E relembra: “Existem cerca de oito mil especialistas inscritos no Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos, mas no SNS só estão 5512”, o que faz com que em abril deste ano 1.633.699 de utentes não tivesse médico de família, representando 15% do total dos utentes inscritos no SNS, e que, em julho, este número já fosse de 1,7 milhões.Como é que esta medida vai ser posta em prática, ainda não se sabe, mas apesar de a aceitar a APMGF alerta para um facto que, desde já, considera muito importante: “Que as condições nos cuidados, um cuidado em equipa, sejam equivalentes às que existem no SNS, mas também que não criem desigualdades entre profissionais. Não faria faria sentido que estes colegas viessem usufruir de uma remuneração superior ou até inferior a quem está no SNS”.No entanto, o vice-presidente da APMGF admite também que este cenário “não é o ideal. O ideal seria o SNS ter capacidade para contratar e fixar médicos de família e tê-los a trabalhar em equipa com outros colegas e outros profissionais de saúde, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, etc, mas percebemos que na impossibilidade de se conseguir garantir tais recursos no SNS que esta medida possa ser uma solução”.Quanto à intenção manifestada pela ministra da Saúde, na mesma audiência no Parlamento, de colocar enfermeiros especialistas a fazer “a vigilância das grávidas”, tanto nos cuidados hospitalares como nos cuidados primários, nos centros de saúde, António Luz Pereira relembra que “muitas Unidades de Saúde Familiar (USF) já têm enfermeiros especialistas na área materno-infantil e estes já trabalham em equipa com os médicos e outros profissionais de saúde. Agora, o que é preciso esclarecer é que “nem o médico substitui o enfermeiro, nem o enfermeiro substitui o médico. Temos competências complementares e ambos são essenciais na prestação do cuidado hospitalizado e nos cuidados primários à população”..Enfermeiros passam a ficar responsáveis por partos de baixo risco.Esta matéria, que, segundo a ministra, está a ser avaliada pela sua equipa, após proposta da Ordem dos Enfermeiros, não é tão facilmente aceite pelos médicos de família, que já vieram defender que o que querem “é um trabalho de equipa, esperando-se que, a evolução nos cuidados de saúde, levasse esta a ser cada vez mais alargada com outros profissionais, para que as grávidas tivessem ainda, além de cuidados médicos ou de enfermagem, de saúde oral ou de acompanhamento psicológico”.O médico defende que o acompanhamento de uma gravidez exige a presença de um médico, junto da mulher, da família e das suas dinâmicas para proteger o que será a saúde futura da criança e antecipando problemas”.Bastonário defende que enfermeiros acompanhem grávidas sem médicos de famíliaPara Luís Filipe Barreira, a vigilância das gravidezes de baixo risco por enfermeiros especialistas é algo que não é novo. Há muito que é uma reivindicação da própria Ordem e há muito que é um modelo usado em outros países da Europa. Aliás, e como referiu ao DN, há legislação publicada sobre o assunto e a própria Direção-Geral da Saúde reviu as orientações sobre esta matéria definidas na Norma/002, em janeiro de 2024, para incluir a realização de partos de baixo risco por enfermeiros especialistas, o que “na prática já acontece". "Cerca de 70% dos partos nas maternidades do SNS são realizados por enfermeiros”. “A própria Norma/002 da DGS já prevê, em primeiro lugar, que o atendimento e a triagem telefónica na Linha SNS/Grávida seja feito por enfermeiros especialistas, que as próprias Unidades Locais de Saúde possam incluir no seu atendimento pré-triagem e triagem feita por enfermeiros especialistas também, de forma a melhor adequar a resposta à grávida. Tudo isto existe em legislação e nas orientações de saúde, mas não é colocado em prática”.O bastonário salienta ainda que das novas orientações constam ainda a capacidade de o internamento de uma grávida poder ser feito por um enfermeiro especialista, mas tal também não foi aplicado até aqui. Segundo explica, “por uma questão informática, mas parece que, neste momento, tal já foi resolvido pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS)”,não sabendo também quando é que esta orientação começará a ser aplicada na prática.Quanto ao acompanhamento de grávidas por parte de enfermeiros nos cuidados primários, Luís Filipe Barreira destaca que muitas mulheres já o são nos seus centros de saúde, quer pelo seu médico de família como pelo enfermeiro de família. O problema são as grávidas que não têm médico de família e que, muitas vezes, chegam às urgências sem qualquer informação clínica sobre o seu estado de saúde e sem qualquer vigilância. Nestes casos concretos, e sendo gravidezes de baixo risco, o bastonário defende que os enfermeiros especialistas deveriam poder ficar com essa lista de utentes e fazer todo o seu acompanhamento, tanto vigilância, como prescrição de meios complementares de diagnóstico, como análises e as ecografias necessárias, e até a preparação para o parto. Esta “era uma forma de estas situações ficarem resolvidas”, mas para tal, e como diz, deste ponto de vista a legislação terá de ser alterada.