Musk entrou nas nossas cabeças. Devemos celebrar ou temer o futuro?
O anúncio de Elon Musk, na última semana, de que a sua startup Neuralink implantou o primeiro chip cerebral em humanos desatou doses similares de excitação, desconfiança e preocupação. Entre a possibilidade de um avanço importante para a neurociência e a obsessão megalómana de um bilionário apostado em atingir a telepatia e criar ciborgues, cabe um universo inteiro de desafios. Não só tecnológicos como éticos e morais. As opiniões dividem-se entre os que aplaudem o arrojo empreendedor de Musk e os que desconfiam dos seus propósitos. Ou até sobre o quão inovador é mesmo o dispositivo implantado pela Neuralink.
O objetivo assumido pela empresa é conectar cérebros humanos a computadores. Numa primeira fase, para tratar condições neurológicas complexas que impedem o movimento, como o de doentes tetraplégicos ou com esclerose lateral amiotrófica. Posteriormente, espera Musk, para chegar até um patamar que permita descarregar o conteúdo de computadores e telemóveis diretamente no nosso cérebro. Mas se os interfaces cérebro-computador (ICC, ou BCI na sigla internacional) - área em que se insere este projeto do bilionário norte-americano - não são novidade, e até já houve outras experiências com dispositivos implantados, o que traz a Neuralink de novo e potencialmente revolucionário?
“Traz, sobretudo, a quantidade de elétrodos que é possível incorporar naquele implante”, responde João Paulo Cunha, especialista em Neurociência e Neuroengenharia e investigador do INESC-TEC, no Porto. Neste domínio dos BCI, “existe um padrão que é o chamado Utah array”, estabelecido pelos implantes testados pela pioneira empresa de Utah Blackrock Neurotech. Ora, esse padrão, explica João Paulo Cunha, “é de 128 elétrodos colocado no córtex motor para captar pequenos sinais neuronais e interpretar esses sinais”. Aqui, no caso da Neuralink, estamos a falar de quantidades muito maiores: “Estão a usar 1024 elétrodos na versão inicial, mas podem ir até mais de 3000.”
Além disso, acrescenta o investigador português, “tem um robô de implantação, que é a grande novidade”. Os outros dispositivos do género já conhecidos “são implantados por neurocirurgiões”, esclarece, enquanto “este é por um robô que tem uma ponta de 40 microns, parece uma máquina de tricotar”. O que confere “mais precisão e reprodutibilidade”.
Embora Musk e a empresa não tenham fornecido muitos detalhes, João Paulo Cunha aponta que o chip terá sido implantado “na zona sensorio-motora, uma zona do córtex que tem a representação do nosso corpo”. Para já é destinado a pessoas “com problemas na atividade cerebral”. E pode significar “uma melhoria brutal na qualidade de vida dessas pessoas, que podem vir a movimentar uma cadeira de rodas de forma autónoma, por exemplo, sem depender de ninguém, ou abrir mensagens de e-mail sem precisar de apoio”, exemplifica o investigador.
Este estudo clínico com pacientes humanos, para o qual a Neuralink conseguiu a aprovação da FDA (regulador norte-americano de práticas médicas) em maio de 2023 depois de uma primeira recusa, deve durar seis anos. Inicialmente, a empresa quer avaliar a segurança do implante e do robô que fez o procedimento cirúrgico.
Mas há outros debates que se levantam e que vão da privacidade e proteção de dados até à bioética. Onde estão as linhas vermelhas neste campo? “O uso da biónica pode levantar problemas éticos”, concede o investigador do INESC-TEC: “A biónica responde a dois objetivos: um é tentar restabelecer funcionalidades motoras que alguém perdeu; outro é o chamado human enhancement, expandir tecnologicamente as capacidades humanas. Esse levanta questões éticas mais complicadas.”
Para já, a ambicionada telepatia de Musk (que deu ao chip o nome de Telepathy) “é claramente ainda ficção científica”, refere João Paulo Cunha. Os BCI estão ainda muito longe disso, “mas estão a entrar nessa estrada”.
E se por um lado o investigador português agradece que Musk tenha resolvido meter muitos milhões nesta área em 2016, quando fundou a Neuralink, “porque permite acelerar este campo e ajudar a resolver muitos problemas na neurociência” - e, acrescenta, “já se fazem coisas na medicina com Inteligência Artificial melhores do que com humanos qualificados” - também adverte que este caminho pode “levar a desvios perigosos”. “Se não tivermos limites, controlo ético, podem fazer-se coisas que podem dar muito para o torto, sem dúvida”.
Por isso, diz, “há que ter o engenho de separar bem as águas: utilizar o lado bom destas tecnologias e legislar o lado mau”.
Avanços e desafios nas neurociências
Antes deste anúncio da Neuralink, já se somavam décadas de investigação e avanços nesta área dos Interfaces cérebro-computador invasivos (com implantes). Como o dos investigadores da Blackrock Neurotech, com sede em Utah, que implantaram o seu primeiro interface cérebro-computador em… 2004. Mas também empresas como a Synchron, fundada pelo australiano Tom Oxley e que tem financiamento de outros milionários como Jeff Bezos ou Bill Gates, ou a Precision Neuroscience, formada por um cofundador da Neuralink, estão nesta corrida.
João Paulo Cunha lembra que, na Europa, também há muito trabalho feito com Interfaces cérebro-máquina, invasivos (implantes) ou não invasivos. Como o dos investigadores da Escola Politécnica de Lausane, na Suíça, que “trabalham nesta área há vários anos” e têm testado interfaces “que fazem uso de exoesqueletos controlados por atividade cerebral para ajudar pessoa incapacitada a andar”. E recorda ainda o exemplo que ganhou escaparate global com a cerimónia de abertura do Mundial de futebol de 2014, no Brasil, em que um jovem paraplégico “deu o pontapé de saída simbólico através de um exoesqueleto robótico controlado pela mente”, projetado “por um grupo nos EUA liderado por um colega brasileiro [Miguel Nicolelis, professor da Universidade de Duke]“.
No INESC-TEC, no Porto, João Paulo Cunha está também entre uma equipa de investigadores que desenvolveu o uso de tecnologia de estimulação cerebral profunda - que também pode ser englobada na vasta área de ICC - para aplicação terapêutica em pessoas com doenças neurodegenerativas, em particular a doença de Parkinson. “Estimulamos zonas do cérebro para baixar sintomas da doença em doentes já com nível de medicação tóxica”, explica. Esses estímulos permitem baixar o nível de medicação e, garante o investigador, podem conferir “mais dez anos de qualidade de vida a esses doentes”. Num outro projeto, os investigadores do INESC-TEC aplicam uma técnica de termocoagulação por radiofrequência em doentes com epilepsia. “Implementamos elétrodos nos doentes e enviamos um sinal com determinada frequência que vai queimar, na zona em que está o elétrodo, a atividade que provoca a epilepsia”.
Voltando à Neuralink de Elon Musk, João Paulo Cunha cataloga-a como o grande avanço da atualidade no campo dos Interfaces Cérebro-Computador, mas identifica “problemas bem mais graves a necessitar de avanços na neurociência genética”. Como a doença de Alzheimer, que, diz, “deverá atingir cerca de 40% da população futuramente”. “E os outros 60% estarão a cuidar daqueles 40. Vai afetar-nos a todos”, adverte.
Ora, nesta área, apesar dos muitos milhões investidos em investigação nas últimas décadas, os avanços terapêuticos até agora não têm tido resultados significativos. “É um problema muito grave nas neurociências”, considera. “Ainda não há avanços de Inteligência Artificial nesta área semelhantes aos que há para as incapacidades neuromotoras. Não há um chip implantado que vá atuar sobre uma determinada zona alvo, até porque não há uma zona alvo específica nessa doença, ou desconhece-se qual seja”, explica João Paulo Cunha.
Esse é um grande desafio futuro na área da neurociência, aponta. “Há alguns avanços, sim, ao nível do desenho de fármacos. Já há ferramentas de IA que permitem ter mais precisão na escolha do tipo de moléculas que podem ter mais sucesso no tratamento desta ou daquela patologia”. E isso, garante, “já é um acelerador importantíssimo”.
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