Movimento foi lançado oficialmente no passado mês de junho.
Movimento foi lançado oficialmente no passado mês de junho.DR

Movimento mobiliza médicos, associações e empresas para enfrentar a crise demográfica em Portugal

Com a natalidade em queda e apenas 1,44 filhos por mulher, Movimento + Fertilidade quer envolver as empresas na promoção da parentalidade; propostas de alteração à lei laboral podem colocar entraves.
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Já há muitos anos que Portugal enfrenta um desafio que deixou de ser estatístico e passou a ser um problema estrutural na sociedade: com a taxa de natalidade permanentemente em queda, o envelhecimento populacional ameaça a sustentabilidade social e económica. De acordo com dados divulgados pelo Instituto Nacional da Estatística (INE), em 2023 a taxa de fecundidade foi de 1,44 filhos por mulher, quando o mínimo necessário para a renovação da população seria de 2,1.

Olhando para este como um desígnio nacional que deve englobar toda a sociedade, nasceu em junho o Movimento + Fertilidade, iniciativa que mobiliza especialistas médicos, associações e empresas para apoiar quem deseja ter filhos e assim ajudar a combater esse flagelo demográfico do país. Criar um ecossistema empresarial que apoie a fertilidade e a parentalidade, combater a discriminação no ambiente laboral, apoiar o sonho da parentalidade e desenvolver políticas empresariais inclusivas são os pontos em destaque na carta de intenções do movimento.

E nem o anteprojeto de reforma da lei laboral apresentado pelo Governo pouco depois, no início de agosto, demove os promotores do movimento - o Executivo propôs alterações em matérias como a amamentação, a licença parental ou o luto gestacional, atraindo acusações de promover um retrocesso em alguns direitos adquiridos e dificultar mais a concilicação entre trabalho e vida familiar.

O objetivo deste movimento é alertar para uma urgência demográfica que já começa a ser um problema na Europa e, sobretudo, em Portugal. Lidamos todos os dias com a infertilidade, mas temos também um dever social de alertar para este declínio da fertilidade que estamos a verificar”, explica o Dr. Luís Vicente, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (SPMR), em entrevista ao DN.

A iniciativa, lançada oficialmente no dia 5 de junho, no Centro Cultural de Belém, resulta de uma parceria entre a Associação Portuguesa de Fertilidade, a SPMR e a Ordem dos Médicos. A inspiração, conta Vicente, veio de uma tendência europeia, seguindo a linha de países como França, onde o presidente Emmanuel Macron elevou o problema da natalidade a urgência nacional, ou Alemanha, que há muito criou regimes laborais flexíveis para apoiar famílias.

“Estive em 2024 numa reunião promovida por Macron que tinha exatamente este objetivo: inverter a baixa natalidade. Em França, foi declarado como uma urgência nacional. O que estamos a fazer em Portugal é adaptar esse modelo à nossa realidade”, conta Luís Vicente.

Para o médico, se a ciência tem vindo a oferecer respostas cada vez mais eficazes à infertilidade, os números mostram que as condições sociais e laborais pesam tanto quanto a biologia.

O adiamento da maternidade, o aumento dos problemas de fertilidade masculina e a falta de informação entre as novas gerações compõem o cenário visto como preocupante pelos líderes do movimento. “Um estudo recente mostrou que 78% das mulheres da geração Z não sabiam o que é a reserva ovárica. É urgente que a educação para a saúde inclua informação clara sobre fertilidade, que não se limite à contraceção”, defende.

Luís Vicente, Presidente da SPMR.
Luís Vicente, Presidente da SPMR.DR.

De acordo com Vicente, as propostas do movimento assentam em diferentes pilares: reforço dos serviços públicos de saúde em articulação com os privados, promoção de estilos de vida saudáveis, educação para a fertilidade e, sobretudo, criação de condições laborais que permitam conciliar a vida profissional com a parentalidade.

“Não basta dizer que as mulheres estão a ter filhos mais tarde. É preciso criar condições para que quem queira optar por ter filhos mais cedo consiga fazê-lo sem ser prejudicado”, afirma Luís Vicente.

Para o médico, discutir apenas os limites da amamentação no Código do Trabalho é algo curto. “Na Alemanha, qualquer mulher tem direito a três anos de licença em regime parcial ou com horários flexíveis. Não estamos a falar de medidas inatingíveis. São políticas que já provaram ser eficazes no aumento da natalidade”, afirma.

De acordo com números levantados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de um em cada seis casais enfrenta dificuldades em engravidar. Desta forma, o Movimento +Fertilidade não surge apenas para ampliar o acesso a tratamentos médicos, mas sobretudo reduzir o número de pessoas que chegam demasiado tarde às consultas.

Nós temos soluções para a infertilidade, mas queremos que nos chegue menos gente tarde demais, quando até os próprios tratamentos têm resultados piores”, alerta Luís Vicente.

Empresas subscrevem movimento

Uma das primeiras empresas a aderir a iniciativa foi a Merck Portugal, que esteve na fundação do movimento em junho. Para Pedro Moura, diretor-geral da empresa, o setor empresarial tem um papel fundamental na criação de ambientes de trabalho mais amigos da parentalidade. "Mais do que qualquer outro parceiro, as empresas são o núcleo central onde esta mudança pode ser fomentada”, explica em entrevista ao DN.

Segundo Moura, a adesão ao movimento permite, por um lado, dar visibilidade a preocupações já existentes dentro das organizações e, por outro, impulsionar uma mudança estruturada a nível nacional.

“Desde que lançamos o movimento, a quantidade de empresas que reconheceram estas prioridades surpreendeu-nos. Empresas que se preocupam com a parentalidade atraem e retêm mais talento, e isso é também um argumento económico forte”, defende.

No caso da Merck, o compromisso traduziu-se em medidas concretas listadas por Moura, tais como: o apoio financeiro a tratamentos de fertilidade até 16.500 euros por colaborador, independentemente do estado civil; análise gratuita e confidencial da reserva ovárica; flexibilidade de horários e trabalho híbrido; apoio psicológico 24 horas por dia, extensível ao pré e pós-parentalidade, e seguro de saúde para todo o agregado familiar.

“Tudo isto é acompanhado por uma cultura de inclusão e equilíbrio, alinhada com o nosso compromisso no Movimento +Fertilidade. Empresas que acarinharem a parentalidade terão trabalhadores mais engajados”, resume Pedro Moura.

Pedro Moura, Diretor-Geral da Merck Portugal
Pedro Moura, Diretor-Geral da Merck PortugalDR

Já sobre as já mencionadas propostas de alteração ao Código do Trabalho, que incluem mudanças na amamentação ou na licença parental, o gestor fala com cautela.

Vejo muito barulho acerca de possíveis alterações, mas ainda pouco de concreto. O Movimento é um espaço do diálogo, também com o Governo, para percebermos o que queremos aprofundar e o que precisa de ser ajustado. Defendemos sempre medidas de reforço à parentalidade, porque entendemos que este não é apenas um desafio das empresas: é uma obrigação", sublinha.

Em pouco mais de dois meses, o Movimento +Fertilidade já ganhou a adesão de dezenas de organizações, de multinacionais a seguradoras e empresas nacionais. Tanto para o empresário, quanto para o médico, a força da iniciativa reside neste cruzamento entre ciência médica, associações de doentes e setor empresarial, unidos por esta meta que deve ser de interesse nacional: garantir que ter filhos em Portugal não seja uma penalização social ou profissional.

Estamos numa encruzilhada”, resume Luís Vicente. “Se não invertermos esta tendência, tornamo-nos uma sociedade envelhecida, com poucas pessoas a sustentar o sistema social. Promover a fertilidade não é só uma questão de saúde, é uma prioridade económica e social para o país”, complementa.

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