O olhar de Daniel, 22 anos, um dos filhos mais velhos de Carlos Pina, o barbeiro assassinado no dia 2 de outubro, perde-se no ar. Responde por monossílabos. Está chocado com o que aconteceu mas, ainda assim, solta: “Por um lado, é bom estar aqui na barbearia porque o meu pai queria que isto continuasse”..Nada mais diz. “Não consigo estar a falar disto”, confessa, com mágoa. A seu lado está a mãe, Ana, a primeira mulher de Carlos Pina e mãe de quatro dos filhos do barbeiro, que foi morto a tiro por Fernando Silva, outro morador do bairro, que confessou o crime e acabou por se entregar às autoridades. ”Foi um choque. Ficámos revoltados e continuamos revoltados porque eles estão a ser protegidos”, afirma Ana, referindo-se à escolta policial que acompanhou familiares de Fernando ao bairro, para recolherem alguns bens, em casa. “Em vez de protegerem os filhos da vítima estão a proteger os criminosos. É a gota de água”, afiança a mulher..Além de Fernando Silva, conhecido no bairro por “Nando”, ali moravam os pais e ainda lá vive uma irmã. “Está fechada em casa, tem medo de represálias”, descreve Ana. Isso mesmo constatou o DN, que foi ao encontro da mulher. Do lado de dentro da porta, uma voz de rapaz disse apenas que esta não queria falar. Ao sairmos do prédio, a irmã de “Nando” assomou à janela, para espreitar e verificar quem é que, realmente, lhe tinha batido à porta de casa..No bairro há revolta e ameaças. “Eles já tinham vindo corridos de outro bairro por causa deste tipo de problemas. O que se conta é que o pai já tinha estado preso por também matar uma pessoa”, conta-nos um morador, que prefere não ser identificado..Certo é que Fernando Silva já se tinha metido noutros desacatos. “Toda a gente sabe o que aconteceu, num supermercado aqui perto, em que ele também desatou aos tiros e ainda acertou, de raspão, numa senhora que lá estava”, recorda Ana, a ex mulher de Carlos Pina..Fábio, conhecido no bairro como Ziggy, é o outro barbeiro da Granda Pente. No dia do crime estava a cortar o cabelo a um adolescente quando Fernando entrou. “Ele vinha completamente alterado. Esteve a noite toda a consumir cocaína e sempre que o fazia ficava assim”, conta o barbeiro, ainda mal refeito da situação a que assistiu e do perigo pelo qual passou. “Ele não me atingiu porque não calhou. Eu não tive tempo de sentir medo. O Pina estava ali ao balcão, ao telemóvel, e ele começou a dizer: ‘Vais-me cortar o cabelo? Vais-me cortar o cabelo?’”. E o Pina respondeu-lhe que ia só acabar de almoçar e cortava-lhe o cabelo. Nisto, o Pina levantou os olhos do telemóvel e levou um tiro”, descreve o funcionário da barbearia. “O miúdo que estava a cortar o cabelo escondeu-se atrás do frigorífico, porque eu gritei-lhe para o fazer, porque com o pânico ele queria fugir para o andar de cima da loja. Mas se ele fugisse, os tiros tinham-lhe acertado”, conta..Por estes dias, Fábio confessa que anda “mais alerta, com um olho por cima do ombro. O que eu tenho mais medo é pelo meu filho, que vai e vem da escola, nem é tanto por mim. E quando estou no meu bairro não tenho medo”..Só que o receio, bem como a revolta, estão bem patentes no bairro do Vale, na freguesia da Penha de França, em Lisboa. Uma mistura explosiva que levou os moradores a enviarem um abaixo assinado, entregue na Gebalis - empresa municipal que gere os bairros sociais de Lisboa - dirigido ao presidente da câmara, Carlos Moedas, e ainda a Rosário Farmhouse, presidente da Assembleia Municipal de Lisboa.. Adivinham uma nova tragédia, caso a família do assassino confesso regresse ao bairro. “O homicida confesso foi ajudado a fugir pelos seus familiares, também eles moradores deste bairro, pelo que não são, como é fácil de entender, pessoas bem vistas pelos seus vizinhos”, pode ler-se no texto do abaixo-assinado. “Apesar de ter sido detido, certo é que quem o ajudou a fugir, o seu pai, a sua mãe, irmãos e mulher, pretendem voltar ao bairro, semeando novamente o medo”, prossegue o texto..Os moradores, que assinam o documento, enfatizam, no mesmo: “Esta atitude desafiadora dos familiares de Fernando Silva será geradora de um espírito de revolta entre os restantes moradores do bairro, que poderá originar uma nova tragédia.” O texto termina com um apelo: “Para a manutenção da ordem e tranquilidade do bairro do Vale, e mesmo para proteção dos familiares do Fernando Silva, também eles ligados a constantes desacatos, é urgente que estes sejam realojados noutra artéria da cidade de Lisboa”..António Silva, 51 anos, funcionários público, é um dos residente que assinou o documento. “A vida no bairro é pacata. A maior parte das pessoas sai de manhã, para ir trabalhar, e regressa à noite. Sempre houve aqui algumas zaragatas, normais como em qualquer bairro, mas nunca se viu uma coisa assim”, desabafa. .O morador nota diferenças, no ambiente do bairro, desde que o crime aconteceu. “Noto a nossa revolta. Porque isto não deveria ter acontecido. além disso eles já moravam aqui há uma série de anos e provocavam alerta, eram perigosos, sempre foram”. Também este habitante do bairro do Vale corrobora a informação de que a família de “Nando” já tinha cometido crimes noutros locais. “Eles foram corridos de outros bairros por situações semelhantes. E havia aqui muitas pessoas que já tinham receio deles”..António Silva também adivinha problemas caso a família do homicida confesso regresse ao bairro. “Se eles voltarem vai ser complicado, porque há muita revolta de toda a gente. O que é que vai acontecer?”, questiona. “O pessoal aqui do bairro tem uma raiva muito grande e se isso acontecer vai dar mau resultado. Isto não é chegarem aqui e enfiarem aqui esses criminosos, de um dia para o outro, ao pé de pessoas que fazem a sua vida pacata, que trabalham. O que aconteceu não tem explicação nenhuma. Se eles voltarem, vai ser olho por olho, dente por dente”, adivinha o funcionário público..Jéssica Alves, 28 anos, cresceu e mora no bairro. “Sempre houve muita polícia e algumas confusões aqui no bairro. Mas este crime foi completamente fora do comum”. Na opinião de Jéssica, os familiares de Fernando Silva não deverão voltar ao bairro. “Acho que eles próprios devem ter receio, a verdade é essa. O que o Fernando fez é imperdoável. E a família tê-lo ajudado a fugir também. Está toda a gente muito revoltada. Nós, moradores, fizemos o abaixo-assinado e acho que o que lá está escrito diz tudo”, observa a jovem, também antecipando uma nova tragédia, caso os Silva voltem ao bairro..A defesa de Fernando Silva alega que este é doente mental e que não teria noção do que estava a fazer. Uma versão que não é aceite por Ana, ex-mulher de Carlos Pina. “Agora mata-se assim três pessoas e depois diz-se que é doente? Então eu, que também tomo medicação para a depressão e a ansiedade, vou matar pessoas e depois digo que estou maluca! Isto não tem qualquer cabimento”..A mãe de quatro dos filhos do barbeiro assassinado acrescenta: “Há uma diferença entre a doença e a maldade. A doença nada tem a ver com isto porque eu conheço pessoas com esquizofrenia e eles, normalmente, quando fazem algo de errado não fogem do local. Eles ficam ali parados, perdem a noção das coisas. Não foi o caso, ele fugiu.”.Ana garante que o antigo companheiro “não tinha conflitos com ele. Que eu tenha conhecimento nunca houve problemas nenhuns”. E aproveita para dar conta de que os filhos não estão a receber qualquer apoio. “Quando chegou aqui o INEM e a polícia, ninguém foi capaz de perguntar se os filhos precisavam de alguma coisa. Nem sequer falaram com eles. Eles precisavam de apoio psicológico e nós não podemos pagar, estamos na miséria”, insiste a mulher, que também mora numa habitação camarária, mas noutro bairro..Entretanto, outro problema surge no horizonte da família. “Além do choque, pela morte do pai, agora o senhorio quer tirar-lhes a barbearia. Acho que ficou com medo e não quer renovar o contrato de arrendamento. Isso está a ser tratado por uma advogada”, nota Ana. “É tudo muito difícil, não sei”, diz apenas o filho, Daniel. Nos próximos dias será pintado um mural, de homenagem a Carlos Pina, na empena do prédio onde o barbeiro residia.