Um jornal que celebra 160 anos olha o mundo e pensa: como abarcar, como testemunhar tudo isto? Que devir nesta história dos meus dias? Em que direção vamos?.Um jornal com 160 anos sabe que não há uma resposta para estas perguntas. Há dúvidas, medos, esperanças, vontades, resistências. E desistências. Cada uma dependendo do lugar onde se está, de onde se vem, do que se sabe e sente. .Um jornal com 160 anos sabe que o melhor do jornalismo é querer entender, sintonizar, desvendar, questionar, aprofundar. Ligar, como num interruptor, um canal de empatia que diz: fala, estou aqui para ti e para a tua verdade, tudo farei para não a trair. Um jornal com 160 anos sabe que essa é a única missão por que pode e deve jurar: fazer justiça, não como juiz mas como quem retrata. Arriscando falhar e falhando, sabendo que no que conta e relata se relata e conta também a si..Arrisquemos então com a ucraniana Yaroslava Shumyk, a palestiniana Dima Mohammed, o sírio Kamal H. Com as irmãs afegãs Mahdiya e Fatema Erfani e com a iraniana Nahid Sanganian. Vozes de países em guerra ou convulsão, países em risco, perigosos, infernais, impossíveis, que encontraram em Portugal um refúgio. Para com elas olharmos o mundo que está e o que aí vem..“A ordem internacional já acabou, ficou para trás”.São cinco da manhã em Kyiv. O dia é 24 de fevereiro de 2022. Na casa onde vive com os dois filhos, a bebé Miia, com quase dois anos e Sviatyk, de três, Yaroslava Shumyk, 39 anos, produtora de TV, recebe um telefonema dos sogros: “Começou a guerra”. Slava (é assim que toda a gente a trata) agarra nas crianças e vai para o ginásio que funciona no piso zero do prédio. Ficam lá três dias. “Ao fim desse tempo, decidi: precisamos de sair não da cidade, mas do país. Tinha de dar segurança aos meus bebés.”.Para chegar aos comboios que a levarão para a Polónia, tem de atravessar o rio Dniepre, mas a ponte está fechada. Quando abre, a 28, põe-se a caminho. Como bagagem, leva, além do carrinho da bebé, duas mochilas com água, comida e coisas das crianças e um bacio. “Não sabia se as poderia levar a uma casa de banho.”.É boa ideia. O comboio de evacuação vai a rebentar pelas costuras, pessoas amontoadas pelos corredores durante as 26 horas que dura a viagem. Em Varsóvia, uma polaca desconhecida acolhe-os. “As crianças choravam o tempo todo com o stress, ao fim de duas semanas tivemos de sair dali e arranjar uma casa só para nós.” Não por muito tempo; em março já está em Portugal, para trabalhar no canal da Federação Portuguesa de Futebol. .“Já tinha vindo a Lisboa, mas chegar para viver e trabalhar é diferente. O português era barulho para mim. As primeiras palavras que aprendi foram chichi e cocó, para as crianças dizerem na creche. Mas percebi que precisava de falar português, até por respeito.” Quase três anos depois, a sua fluência nesta língua, em penhor do acolhimento, é o avesso da raiva pela do invasor. “Não consigo ouvir russo, sinto-me mal fisicamente.”.A Rússia cujo presidente, Vladimir Putin, decretou que a Ucrânia não existe, confessando até que está arrependido de não a ter invadido mais cedo. A Rússia que separou esta família e tantas outras – as mulheres e crianças a fugir da guerra,os homens retidos pela conscrição. Como o pai das crianças, de quem Slava estava separada, e o seu irmão mais novo. “Penso em voltar a cada dia. Voltaria se não fossem as crianças: ir à noite com elas para a estação de metro à noite, por causa dos bombardeamentos… é muito complicado.”.Complicado é também “não poderem abraçar o pai, só falarem com ele ao telefone. No outro dia a minha filha disse: ‘O papá vai-me buscar à escola amanhã’. Que lhe respondo? Levaram um ano até perceberem que o pai não está porque não pode. Ainda assim, não sendo meu marido, é mais fácil – há muitas mulheres que já voltaram por causa dos maridos. Mas estar longe do meu irmão, que adoro – falo dele e começo a chorar – é muito difícil. Tem três filhos, a mais nova com um ano, então quando lhe ligo falo sobre as crianças, a comida, o tempo, sobre a vida. Sobre tudo o que não é a guerra. Que ia perguntar, ‘têm medo?’” Enrouquece. “Se quando falamos está a haver um bombardeamento pergunto o que a filha quer pelo Natal. Falamos de coisas assim importantes, como presentes.”.Também falam da eletricidade e da água – “Coisas em que aqui não pensamos, mas que lá estão sempre a faltar, porque a Rússia ataca as centrais, o fornecimento.”Coisas em que não pensamos. Coisas que não sentimos. Nem o marido nem o irmão de Slava estão – para já – a combater, mas muitos dos seus ex-colegas do canal de televisão em que trabalhou 15 anos sim. “Jornalistas, editores, motoristas. Sem qualquer preparação.” É horrível e é normal, no universo em que Slava vive..Yaroslava Shumyk na régie do canal da Federação Portuguesa de Futebol, onde trabalha desde 2022..“O mundo muda, a minha visão do mundo é diferente da das pessoas daqui [de Portugal]. Tinha a experiência da doença muito má que a minha mãe teve – de como nos habituamos à doença má. E agora a minha casa tem este cancro que se chama Rússia. E sei que se a Rússia ganhar, a Europa vai mudar muito mais do que alguém pode imaginar. Vejo que muitas pessoas não pensam sobre o quanto uma vitória russa mudará as suas vidas. Tal como antes do dia 24 de fevereiro não pensei fugir da minha casa para salvar a vida dos meus filhos, as pessoas não pensam nisso – porque não é normal viver com medo.”.Também ela, admite, não percebeu quando em 2014 a Rússia invadiu e anexou a Crimeia e entrou pelo Donbass adentro. “Foi um choque mas era longe, tínhamos conhecimento mas a vida continuou. Um enorme erro. Tinha um amigo no Donbass que não conseguia sair dali por causa da família e tinha medo de mostrar alguma preferência pela Ucrânia. Quando ele me falou sobre isso não senti que estivesse perto, que fosse uma ameaça para mim.”.Cruel perguntar a Slava onde se vê e aos filhos, à família e ao seu país no futuro próximo. Como prevê que evolua uma guerra da qual, ao fim de quase três anos, o mundo e a Europa se foram cansando como de uma série com demasiadas temporadas e que o novo presidente americano parece decidido a terminar a troco de território ucraniano, premiando o invasor. Uma guerra que já matou tanta gente, para a qual faltam soldados, armas, e pode faltar alento – o alento que, na reação dos invadidos, assombrou o mundo..Slava com os dois filhos, Sviatyk e Miia, que tinham três e quase dois anos quando saíram da Ucrânia..“O que vejo para a frente? Estou sempre a evitar para mim essas perguntas, porque não tenho planos, tenho de ter forças para passar cada dia. Há futuro mas não tem data. A guerra faz coisas horríveis às cabeças, às famílias, destrói muito mais que edifícios, mata mais que vidas. Não sei quando tudo vai ser resolvido, mas quero que haja alguma justiça e sei que não vai resolver nada dar território à Rússia.” .Que ordem internacional poderia sair disso? A resposta cai como uma lâmina. “A ordem internacional já acabou – ficou para trás. Mas vivemos neste tempo, não é? Tenho curiosidade em perceber como se vai resolver. Não posso ter influência em Trump mas posso ter influência nas coisas que posso fazer. Como dizem os meus amigos das forças armadas ucranianas, ‘vamos continuar, mantendo as forças para o que podemos fazer’. Tenho medo de ficar sem família e sem casa, mas tenho de controlar este medo. E estou sempre a pensar que não preciso de muita coisa. Que o fundamental da vida é poder cheirar a cabeça dos meus filhos.”.“A única forma de atingir a paz é aceitar a igualdade”.Se Slava e os filhos são desde 2022 refugiados, Dima Mohammed nasceu assim, na Argélia, há 45 anos. Só viveu na terra dos pais e avós a partir da adolescência. Mas até hoje nunca conseguiu visitar Der Ayyub, a aldeia da qual os avós foram expulsos em 1948, durante a Nakba, a grande catástrofe palestiniana, quando, com vários massacres documentados à mistura, centenas de milhares – estima-se que 700 mil – foram expulsos das aldeias e cidades pelas milícias e exército do recém-criado Israel. .“Os meus avós mudaram-se para a aldeia ao lado, Yalu, em território não ocupado, onde o meu pai nasceu em 1950. Depois, na guerra de 1967, também Yalu foi ocupada e foram para um campo de refugiados. O meu pai saiu da Palestina para estudar e não conseguiu ver os pais durante décadas, porque não o deixavam entrar. Depois da ocupação da Cisjordânia, se saías da Palestina o teu bilhete de identidade ficava na fronteira com as forças israelitas e se não voltavas em três anos, perdias o direito a ele. Por causa disso a minha mãe levava as filhas à Palestina de três em três anos – para não perdermos o direito a lá viver.”.Faz uma pausa, como quem toma balanço. É muito para contar uma e outra vez, a cada ocasião em que lhe perguntam “quem és tu”. “Isto está a acontecer desde a juventude dos meus avós, desde que os meus pais nasceram, está a acontecer há quase um século. A injustiça faz parte da minha vida. Mas quando fui viver para a Palestina, em 1994, percebi que viver o dia a dia da ocupação é diferente de ouvir falar disso. Ver na TV é muito diferente de estar ali. Para mim, que acabara de chegar, viver com soldados armados e com a ameaça constante de violência não era normal – essa coisa que ali se tornou normal para as pessoas, ser parado a caminho da universidade e ficar no checkpoint horas, perder aulas por motivo nenhum. Ficava sempre zangada. Lembro-me de pensar: ‘Vou desistir da aula, estou exausta’, mas depois concluir ‘isso é o que eles querem’. E decidir que apesar da dor e da raiva não ia deixar que o dia fosse estragado, que ia às aulas e aproveitaria o máximo. Tive de aprender como criar resiliência para continuar a viver com alegria.”.A Palestina foi também um choque identitário: “Tive de perceber quem sou. Porque sabia bem que era palestiniana mas também me sentia argelina. E na Palestina fui às vezes considerada estrangeira.” Aos 23, após fazer ali o liceu e a universidade, saiu para um mestrado na Europa. E ficou. Desde 2011 em Portugal, é investigadora no Instituto de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. “A minha ideia era voltar a viver na Palestina, foi por acaso que não aconteceu. Mas vou lá muito. Desde que começou o genocídio, fui três vezes.”."É preciso continuar com esta raiva e este sentido de injustiça sem que isso nos faça odiar o mundo", diz a palestiniana Dima Mohammed..A família tem uma casa em Ramallah e outra em Jericó – ambas cidades na Cisjordânia. “A Jericó é muito perigoso ir por causa dos ataques dos colonos.” Do tempo que se perde nas estradas devido a desvios e checkpoints multiplicados pelos israelitas acha que nem vale a pena falar. “Temos de encontrar o equilíbrio entre tolerar uma situação que não é normal nem deve ser normalizada e continuar. Temos de conseguir viver bem na nossa terra, suportar algumas injustiças para enfrentar e combater as mais graves. Continuar com esta raiva e sentido de injustiça sem deixar que isso nos faça odiar o mundo.” .Um esforço mais difícil desde 2023: “Ver o mundo a tolerar o genocídio em Gaza, a conviver com este massacre, tem sido uma coisa muito dolorosa. Estamos a celebrar o Natal [falou com o DN a 25 de dezembro], este segundo Natal em que a terra de Jesus está a ser massacrada – famílias inteiras, escolas, hospitais, igrejas até, a serem massacrados. É um sentimento de abandono muito difícil de gerir, dói muito. O mundo, apesar do esforço de muitas pessoas, não tem conseguido parar Israel.”.O desespero quase não estremece as frases pausadas. “Aprendi a não me deixar intoxicar pelo ódio, a tentar transformar a dor e a raiva, que são pessoais, do meu povo, num amor pela vida, numa força, numa persistência de defender o direito de todas as pessoas a terem uma vida justa e digna. Pelo que dei por mim a fazer ativismo por outras causas. Porque sinto que a injustiça contra as pessoas negras, as pessoas LGBTQ+, as mulheres, os pobres, é a mesma: negar a seres humanos o direito de serem tratados como iguais. O que dói é a mesma coisa: alguns serem considerados menos que os outros.”.A igualdade é então para Dima a chave, o código que desarma os conflitos. Incluindo este, tão, dir-se-á, infindável e indeslindável, que opõe israelitas e palestinianos, esta ferida sempre em carne viva que nos envenena a todos. “A única forma de atingir a paz é aceitar a igualdade. Para mim isso é tão básico. Claro que no futuro próximo vai ficar tudo pior, no mundo e na Palestina. Com a extrema-direita a ganhar força, com o fascismo a voltar, não há muita esperança. Mas esta injustiça não vai durar para sempre. Temos de acreditar que vai acabar. Retiro muita inspiração de outras lutas que venceram, como a do apartheid na África do Sul. Quando a justiça for restaurada, quando a ocupação colonial acabar, não haverá outra alternativa senão vivermos juntos – como palestiniana não vejo outra alternativa. Teremos de partilhar a terra, porque é isso que a história diz; não temos de aceitar a opressão. Que bandeira, que nome para o país, que língua? Tudo isso são desafios para depois de instituirmos a igualdade.”.E, porque é um sonho, Dima sonha: “Gostava muito de ver um país laico, onde todos são tratados como iguais. Temos de lutar juntos para que esta zona, do rio até ao mar, seja uma zona de dignidade para todas as pessoas.”.“A melhor maneira de prever o futuro é construí-lo”.Sonhos. O sírio Kamal, de 40 anos, está a viver um. Depois de vários anos em Portugal, regressou à Síria para trabalhar no campo humanitário. Estava em Damasco quando o regime caiu. “Foi uma mistura de sentimentos. As primeiras horas foram assustadoras: todos os militares e as pessoas dos serviços secretos fugiram, houve um vácuo de segurança em algumas zonas por muitas horas – bancos assaltados, vandalismo, armas roubadas. Gente a disparar em celebração e gente a morrer com balas perdidas.”.Com a rapidez da mudança, houve, como em todas as revoluções, conversões instantâneas: “Pessoas que tinham a foto de Assad nos carros e mudaram para a nova bandeira”. Ri. “Foi mesmo incrível a rapidez. O avanço dos rebeldes começou no fim de novembro. Sábado 7 de dezembro vinha de carro para Damasco e vi muitos carros caros a sair da cidade. Acordei às 5 da manhã de domingo e Assad fora-se. E assim esse dia juntou-se às outras duas datas fundamentais deste território que é a Síria: 1517, quando o império otomano chegou, e 1918, quando as tropas árabes entraram em Damasco e expulsaram os otomanos.”.E agora 8 de dezembro de 2024. Um dia em que se sabe o que acabou mas não o que começou. Estes tempos que Kamal – que não é o seu nome, por razões óbvias – vive são terra incognita, o nome que nos mapas dos navegadores designava o desconhecido, onde se desenhavam monstros e assombrações, mas onde cabia também a ideia de paraíso..Visto daqui, é mais monstros: uma milícia islâmica, dirigida por um antigo membro da al-Qaeda,, al-Jolani, a controlar a maior parte do país. Outras milícias fortemente armadas, incluindo os curdos que a Turquia, com aparente ascendente sobre o grupo de al-Jolani, quer anular.Tem tudo para não correr bem..Do outro lado da chamada Whatsapp, Kamal implora: “Se pensar assim entro em depressão – não terei nenhuma esperança. Mas, claro, não podemos ouvir e ver só o que queremos ouvir e ver. As pessoas estão cautelosas. O HTS [Hayat Tahrir al-Sham/Organização para a Libertação do Levante, a milícia de al-Jolani] diz que mudou. De facto, não têm o mesmo discurso que há 10 anos. Houve uma circular da nova liderança a dizer que ninguém tem o direito de intervir na forma como os outros se vestem, e o primeiro-ministro do governo de salvação nacional, depois de fazer um discurso na TV com a bandeira da Síria e com uma bandeira religiosa, atendeu às críticas e no discurso seguinte já não tinha bandeira religiosa. Mas será que é mesmo genuíno, ou estão a mostrar uma tolerância que não sentem? Não estarão a mudar a atitude mas não as suas crenças? Estas pessoas são radicais, é muito difícil mudar a forma como pensam. E também ouvi dizer que já sucedeu, em reuniões, pedirem a mulheres para cobrirem a cabeça e dizerem que não podem misturar-se com os homens. As minhas amigas têm medo, não saem à rua depois de anoitecer, e os meus amigos laicos também estão com muito medo.”.E aos amigos sírios que estão fora, que diz? “Digo para não virem já, porque ainda não é seguro. Mas também lhes digo que devem vir e trazer as suas ideias diferentes, porque aí deixarão de ser minoritárias. São muitos milhões que estão na Europa e na Turquia, pessoas que acreditam que a diferença é boa, que devemos conviver com ela.” .Suspira. “Em 2011 [na chamada primavera árabe] também pensámos que ia ser bom e foi o que foi. Tanto quanto sei os movimentos militares quando tomam o poder não o entregam a seguir. É certo que estas pessoas são muito populares, em eleições democráticas poderão ganhar. Mas sairão se a vontade das pessoas mudar?”.Em Portugal os militares entregaram o poder aos civis. Kamal sorri: “Sim, pois foi. Gostaria muito que este país, este lugar a que pertenço, se aguentasse e progredisse. Quero acreditar que vai tudo correr bem, mesmo se a história diz o contrário. Quem sabe seremos um exemplo bom para os outros países árabes. E não há melhor forma de prever o futuro, como diz a frase, que construí-lo.”.“Às vezes tenho muita esperança, noutras nenhuma”.Construir o futuro é o que as irmãs Mahdiya e Fatema Erfani, de 28 e 19 anos, estão a fazer em Portugal: uma a estudar medicina, a outra a terminar o liceu..Afegãs de etnia hazara, a vida tem-lhes sido uma sucessão de fugas. Nasceram refugiadas, no Irão, onde a família – como cerca de 1,5 milhões de afegãos –, se instalara no final da década de 1980, para fugir ao conflito entre o governo (apoiado pela invasão soviética até 1989, caindo em 1992) e os grupos rebeldes. Voltaram ao Afeganistão em 2006; há três anos voltaram a fugir..Mahdiya estava no quinto ano de medicina na Universidade de Cabul quando em agosto de 2021 os talibãs reganharam o controlo do país; Fatema estudava no liceu americano e jogava na seleção feminina de futebol. Como hazaras, eram já um alvo – a etnia, predominantemente xiita (ramo do islamismo; os talibãs são do ramo sunita) é discriminada no Afeganistão. Mas havia outros fatores de perigo: “O nosso pai, que já morreu, foi ministro dos assuntos étnicos no primeiro governo pós-talibãs e também deputado. E, claro, sabíamos que as mulheres não poderiam ter uma vida normal, pelo que começámos logo a ligar para embaixadas para ver se alguém nos ajudava a sair.”.O salvo-conduto acabaria por ser o facto de Fatema jogar futebol – integrou um contingente de futebolistas resgatadas. Disseram-lhe que tinha de escolher três pessoas da família para a acompanharem. “Não conseguia decidir, mas acabei por escolher a minha mãe, a minha irmã mais velha (Narges) e o meu irmão.” Após várias tentativas falhadas, os quatro viajaram para outra província e ficaram um mês numa casa segura, até que os tiraram do país para a Geórgia e daí para Portugal..Mahdiya saiu numa segunda evacuação. Mas muita gente ficou para trás. “Amigas da equipa de futebol estão sempre a perguntar se podem vir”, lamenta Fatema. “Tenho primas da minha idade que não podem ir à escola. É devastador. Ficaram sem opções a não ser casar – não podem sequer sair sozinhas à rua. Tenho colegas a dizer ‘se não arranjas maneira de me tirar daqui, vou-me matar’. Não veem nenhuma esperança. Para os rapazes é difícil também, mas pelo menos podem ir à escola. Tenho um primo que vai agora entrar na universidade. Dei-lhe os parabéns e ele disse: ‘Sinto-me culpado porque posso ir e a minha irmã não’.”.Há pequenos focos de esperança, diz Mahdiya. “Descobri que há escolas que através da net educam as raparigas, há afegãs que estão a fazer isso. Mas não chega a todas – são milhões de raparigas que de repente foram impedidas de fazer seja o que for. E para derrotar os talibãs precisamos de pessoas educadas. Vê-se o resultado de 20 anos de educação, de permitir às mulheres acreditarem em si próprias: todos os dias saem à rua a protestar, a exigir os seus direitos. Talvez os talibãs não durem 10 anos.”.Há esperança? Mahdiya hesita. “Não sei. Às vezes tenho muita, outras nenhuma. Mas a resistência das mulheres emociona-me, encoraja-me. E quero muito voltar ao meu país, não me imagino a viver longe a vida toda.”.De que têm saudades? “Da paisagem, é um país tão bonito. Da comida, do clima. Do cheiro da chuva na terra, da beleza de Cabul na primavera. Do ano novo, quando toda a gente sai com roupas novas. Das caminhadas nas montanhas com o meu pai. Da verdadeira cultura afegã, que é muito colorida, os nossos trajes tradicionais, já os viu? E nas aldeias, antes dos talibãs, os homens e as mulheres andavam lado a lado. Há etnias em que as mulheres ficam mais em casa, mas noutras não.”.O Afeganistão como um país alegre e culturalmente diverso, o avesso da homogeneidade soturna, brutal, de um regime em guerra com a liberdade. Um regime que decretou a inexistência das mulheres e nos homens dita até o tamanho da barba; um regime que, frisa a quase médica Mahdiya, não permite que as mulheres sejam tratadas por um profissional de saúde se “o homem que toma conta delas” não estiver presente. Um inferno absoluto para o qual é difícil vislumbrar saída – tanto mais que, acham as irmãs, “talvez uma das razões pelas quais a república afegã falhou é que as pessoas não acreditavam na democracia”..“Que haja um terramoto e as ditaduras caiam umas atrás das outras”.No país de Nahid Sanganian, em contraste, a crença na democracia parece cada vez mais forte. Nesse outro inferno para as mulheres que é o Irão, a revolta suscitada pela morte de Mahsa Amini, de 22 anos, em 2022, sob custódia da polícia da moralidade, demonstrou que uma parte muito considerável dos iranianos, sobretudo os mais jovens, está farta da ditadura..Nahid vê no movimento que, sob o nome Mulher, Vida, Liberdade, levou, nas palavras dela, “todas as gerações para a rua”, “a rebelião mais importante dos últimos 45 anos”. Mas não pôde participar dele: aos 36 anos, conta 10 longe do seu país..“É muito difícil ter lá a minha família, tenho muitas saudades. Também sinto muito a falta dos meus amigos e de viajar dentro do Irão, e às vezes tenho saudades de falar na minha língua materna. Mas tenho o direito de viver à minha maneira, tenho direito à liberdade. Só vivemos uma vida. Não queria viver a minha numa ditadura. Por isso, para deixar de fingir ser quem não sou, escolhi fazer um caminho mais difícil, o da emigração.”.Começou pela Noruega, mas sentiu “um choque cultural”. “Não gostei nada. Do clima, muito frio, e da forma como as pessoas se relacionam. São simpáticas, mas exprimem a simpatia de uma forma diferente. Comecei a pensar em ir para o sul e Portugal foi o país em que consegui admissão.” E descobriu, diz, muitas semelhanças entre a sua cultura e a portuguesa. “Desde logo, pela importância da família, e por as pessoas gostarem de conviver, de fazer conversa nas ruas e cafés, não passarem com indiferença umas pelas outras. Fizeram-me sentir em casa. Também achei o clima parecido – a única coisa que falta é uma semana de neve – e a comida boa, apesar de não ser parecida com a iraniana.” E – faz uma pausa – “O vinho é incrível”..Não que no Irão não houvesse vinho; “há tudo o que se possa imaginar”, garante Nahid. “Festas underground, bebidas alcoólicas, drogas. Há um circuito ilegal como o das drogas em Portugal, mas o vinho não presta porque as pessoas o fazem em casa. Só conheci o vinho bom em Portugal”.."Só temos uma vida. Não queria viver a minha numa ditadura", diz a iraniana Nahid Sanganian..A dupla vida – a que se representa para fora e a verdadeira, às escondidas – que muitos iranianos vivem fazia Nahid sentir-se “duas pessoas diferentes”. “Sou de uma família pouco religiosa e pouco tradicional. As mulheres nunca cobriram a cabeça nas reuniões de família, fui criada a beijar e cumprimentar da mesma forma mulheres e homens [os xiitas, no poder no Irão, não permitem que homens toquem mulheres que não da família imediata] e não podia fazer o mesmo fora de casa.”.Malgrado considerar que grande parte das pessoas está mais que farta – “Os iranianos não são religiosos como os árabes, a maioria não liga e não pratica o Islão” – não crê num fim pacífico para o regime: “Não temos a sorte dos portugueses, de conseguir derrubar uma ditadura sem mortes. Não vamos lá pelas eleições, que não são livres nem justas, porque a escolha é sempre entre um mau e um pior; para não ficarem com o pior, as pessoas votam no mau. E parlamento, presidente, são marionetas, porque acima dos eleitos está o líder islâmico.” .Resta então, conclui, “a desobediência civil: as meninas andam sem lenço, despem-se na rua. Uma cantora iraniana faz um concerto sem hijab e transmite-o na net. É a revolta das camadas cultas da sociedade.”.O desalento fá-la temer pela Síria. “Acho os sírios muito parecidos com os iranianos, muito avançados. Os que conheço ficaram felizes com a queda de Assad. Mas estes rebeldes que tomaram a Síria são islâmicos. Espero de todo o coração que não suceda ali o que aconteceu no Irão há 45 anos –a transformação de uma revolução que as pessoas desejavam que implantasse a democracia na imposição de uma ditadura religiosa. Porém duvido que um movimento islâmico esteja apostado em criar uma democracia laica”. Ainda assim, faz figas: “Estão a acontecer muitas coisas no Médio Oriente. As pessoas estão cansadas, desesperadas, fartas. Espero que haja um terramoto – que as ditaduras caiam umas atrás das outras.” .E espera também, faz questão de dizer, que se perceba em Portugal que os movimentos contra a imigração que viu aqui surgir - “Quando cheguei, não havia nada disto” - e que, nas suas palavras, querem separar os imigrantes dos locais, impedem a integração. “Os imigrantes se não se sentirem bem acolhidos, integrados, não vão sentir a responsabilidade de querer integrar-se. Porque quem emigra, emigra para viver melhor, ninguém gosta de emigrar. Os portugueses também emigram para outros países para viver melhor. O que senti, quando cheguei e me senti tão bem acolhida, foi que queria integrar-me, aprender português, ser portuguesa. E é o que sinto: que este é o meu país também.”