Os encerramentos de urgências de Ginecologia-Obstetrícia sucedem-se verão após verão e inverno após inverno, sobretudo em épocas de férias e de feriados. A falta de médicos para assegurar as escalas tem vindo num crescendo, bem como o número de partos em ambulâncias, segundo os bombeiros. A registar há ainda a morte de bebés logo à nascença - em julho registaram-se três. Na semana passada, ao jornal Público, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lançou um repto ao Governo para que resolva o problema até ao final do verão, dizendo mesmo que nesta altura fará a sua avaliação – e voltou a repetir o mesmo nesta terça-feira, após a notícia de que uma grávida tinha dado à luz na rua, no Carregado. Quem está no terreno, como administradores, médicos e enfermeiros, diz ao DN que não há soluções possíveis em tão pouco tempo. “São precisos mais médicos”, era referido num trabalho publicado pelo nosso jornal na edição desta quinta-feira, dia 14. Mas o coordenador da Comissão Nacional da Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, Caldas Afonso, contactado pelo DN nesta quinta-feira, assegura que o ministério está a ultimar legislação sobre um novo modelo de incentivos para os profissionais e serviços de Ginecologia-Obstetrícia, o qual “surge da proposta que apresentámos à Sr.ª ministra para a Rede de Referenciação, e sobre o qual tenho a forte convicção que vai ter efeitos imediatos”.Segundo apurou o DN, esta é uma das soluções que a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e o Governo se preparam para anunciar no regresso de férias, provavelmente ainda no final de agosto ou nos primeiros dias de setembro, como resposta ao pedido de Marcelo Rebelo de Sousa. O objetivo, disseram-nos, "é avançar com o novo modelo o mais rápido possível". O DN soube ainda que o modelo será aplicado nos hospitais que têm estado sob maior pressão e com mais encerramentos, e que servem áreas de influência elevada, nomeadamente Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra), Garcia de Orta, Vila Franca de Xira, na região de Lisboa e Vale do Tejo, e ainda Braga, no Norte. O Centro Materno Infantil do Hospital de Santa Maria e a Maternidade Alfredo da Costa deverão integrar também este grupo, para “se perceber como funciona o modelo em unidades de última linha – ou seja, de grande diferenciação”. Os serviços dos hospitais de Santarém e de Leiria, por exemplo, chegaram também a ser referenciados para integrarem este projeto piloto, mas o DN não conseguiu apurar se vão ser já contemplados com este novo modelo de gestão. Caldas Afonso refere ainda que o novo modelo deverá começar a ser testado “o mais rápido possível em cinco a seis hospitais do país e com vários níveis de diferenciação. Estou convicto que conseguirá atrair muitos dos médicos que se cansaram e saíram do SNS”, quer seja a tempo inteiro, nas 40 horas ou até em meio tempo, em 30 horas ou a 20.Centros de Responsabilidade Integrada não serão usados na área da Ginecologia-Obstetrícia O médico especifica que se trata de um modelo diferente do que é aplicado nos Centros de Responsabilidade Integrada (CRI) nos hospitais e já em várias especialidades, mas que para a área materno-infantil não se adequa, tendo sido, assim, necessário criar um novo modelo de incentivos e de financiamento para estes serviços. “É um modelo que se pode dizer que está mais próximo do que é feito, e tem sido bem conseguido na área da Medicina Geral e Familiar (MGF), nos Cuidados Primários, em que os profissionais se comprometem com determinada disponibilidade e com objetivos na sua produção, mas que, no meu entender, ainda é mais completo, por que é muito mais flexível”. E exemplifica: “Se tiver um médico especialista que só pode dar 20 horas ao SNS para fazer ecografias e diagnósticos perinatais, não o posso desperdiçar, tenho de atender a esta situação e ter um modelo de remuneração e contratação que o enquadre neste tempo, enquanto o modelo da MGF e os CRI impõe jornadas de 40 horas”.O coordenador da comissão para a saúde da mulher e da criança argumenta ainda que esta diferenciação do modelo tem também por base as características e o perfil da própria classe. “Temos uma escassez brutal de recursos, somos cerca de 700 médicos para todo o país, e uma boa parte não está no SNS e os que estão, muitos, já têm entre 50 e 60 anos e já podem não fazer atividade nas urgências. Por isso, é preciso atrair quem saiu do SNS e os mais jovens que se estão a formar”. Para o médico, esta é uma solução diferente que acredita que se adequa mais aos interesses e expectativas e das novas gerações, que querem “mais tempo para conciliar a sua vida profissional e a pessoal”, sublinhando: “Não tenho dúvidas nenhumas do que lhe estou a dizer. Este modelo vai ser extremamente atrativo e as pessoas vão reconhecer que vale a pena trabalhar no SNS”.No entanto, destaca Caldas Afonso, pediatra de formação e que em na década dos anos de 1990, participou na abertura do modelo de urgências metropolitanas na região norte, este projeto só funciona integrado numa estratégia de referenciação e articulação, precisamente o que foi proposto por esta comissão à ministra já em maio e que cujo documento esteve em discussão pública de 31 de julho a 14 de agosto. Recorde-se que, no início, a própria Direção Executiva do SNS lançou um apelo à sociedade civil para que participasse nesta discussão, embora, e segundo percebeu o DN, após consulta ao documento no site da DE-SNS, o novo modelo de incentivos e financiamento não esteja aqui divulgado. O documento em consulta integra vários pontos, que vão desde o enquadramento legislativo e histórico à caracterização da especialidade e à definição dos diferentes níveis de cuidados a prestar por cada unidade existente no país. Mas não só. Define ainda a rede de articulação entre cada uma das unidades por regiões e a nível nacional. O texto estabelece também a criação das equipas, recursos humanos por unidade de acordo com a sua diferenciação, bem como a metodologia e monitorização, para que o funcionamento em rede possa ser avaliado e adequado - segundo é referido, a cada cinco anos o documento final com esta reforma para a área da Ginecologia-Obstetrícia deve ser revisto. O DN pediu nesta quinta-feira, dia 14, à DE-SNS e ao Ministério da Saúde informações sobre quantas participações registou a discussão pública, bem como o seu teor, mas foi-nos dito que ainda era cedo para tal. “Esse material será recolhido e analisado nos próximos tempos”, disseram-nos. “Se quisermos uma solução para a Península de Setúbal, temos todos de colaborar”A estratégia de referenciação é para todo o país, estando definido que nem todos os serviços podem ter o mesmo papel e funções, nomeadamente nas urgências, por mais que “autarcas e população queiram”. Caldas Afonso é taxativo: “Temos 39 Unidades Locais de Saúde (ULS) e todas têm serviços de Ginecologia-Obstetrícia, mas, do ponto de vista técnico, não há recursos para que todos desempenhem o mesmo papel, nomeadamente na área da urgência. Podem ser todos necessários, mas o que está em causa são os cuidados dados às utentes, não só às mulheres, mas também às crianças. O que adianta mantermos, por exemplo, na Península de Setúbal, três serviços de urgência que não têm recursos suficientes para manterem portas abertas todos os dias. E o que está a acontecer é que em vez de estarem todos a funcionar, acabam por ter de encerrar todos quase nos mesmos dias por falta de recursos”. Assumindo mesmo que “a posição que temos vindo a defender do ponto de vista técnico para a região de Setúbal é conhecida e muito clara". Ou seja, "os serviços da Península de Setúbal têm de oferecer à população, neste caso mais grávidas, uma resposta com a mesma qualidade e segurança que qualquer outro serviço no país. Para isso, tem de haver uma partilha de recursos e uma co-responsabilização entre as diversas instituições. Não podemos continuar a funcionar de costas voltadas. Não é obrigar as pessoas a funcionarem desta maneira, se quisermos uma solução para esta região todos, mas todos, profissionais, autarcas e população, têm de colaborar. Os próprios hospitais incluídos nesta rede têm de ser solidários, porque fazem parte de um mesmo objetivo. E há condições para que isso aconteça. O Hospital Garcia de Orta tem condições para que ali seja instalado um centro materno-infantil”. Aliás, esta medida foi já anunciada pela ministra Ana Paula Martins, com início previsto em setembro, mas fontes que estão no terreno e contactadas pelo DN nesta região dizem “nada saber do assunto”. Caldas Afonso concorda que o “problema não se resolve num dia para o outro, mas temos de começar por alguma lado e este é o caminho”.O médico diz acreditar que a rede de reorganização e referenciação delineada pela equipa que liderou irá “criar um espírito de compromisso mais coletivo e de responsabilização interinstitucional para se dar outra resposta”.