Ministro admite objeção de consciência "à la carte" - que já existe e pode ser inconstitucional
Manuel Pizarro pondera mudar lei para permitir "objeção de consciência casuística". Mas desde 2007 que os profissionais de saúde podem declarar, por exemplo, objeção à interrupção de gravidez até às 10 semanas por opção da mulher e não ao aborto eugénico - até seis meses de gestação. O que, garante a constitucionalista Teresa Violante, "não é objeção de consciência".
"A objeção de consciência tem de ser absolutamente respeitada", e "não tem sido impedimento à organização dos serviços", certificou esta quarta-feira o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, na Assembleia da República.
Relacionados
Chamado à Comissão de Saúde do parlamento para responder às perguntas dos deputados sobre as dificuldades no acesso ao aborto legal no Serviço Nacional de Saúde (SNS), na sequência da investigação publicada por este jornal em fevereiro, o governante afirmou não ver "razão para modificação nessa matéria". Porém admitiu de seguida ser "um assunto que merece reflexão". Porque, explicou, "há opiniões de que temos uma solução na lei, que é a que aplicamos nos serviços, que é a de uma objeção de consciência genérica para a interrupção voluntária da gravidez (IVG), e pode-se admitir que haja profissionais que tivessem uma objeção de consciência com avaliação casuística. Isto é, um profissional pode ser objetor de consciência à IVG a pedido da mulher em certas circunstâncias, e não ser objetor se a gravidez resultar de uma violação, por exemplo. E talvez possamos aperfeiçoar o quadro em que a declaração da objeção é feita, porque admito que haja profissionais que tenham uma posição diferente consoante as circunstâncias concretas de cada mulher."
As "opiniões" a que o ministro se refere dizem respeito por exemplo à posição do obstetra Miguel Oliveira da Silva, ex presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que em declarações ao Observador, a 24 de fevereiro, defendeu uma alteração à lei no sentido de deixar de existir "um estatuto absoluto de objeção de consciência". O motivo, argumentou, é haver "mulheres que, por adotarem comportamentos displicentes e não praticarem contraceção, fazem vários abortos por ano". Alguns médicos, afirma, "prefeririam que o estatuto fosse seletivo, para selecionarem. Fariam a maioria das intervenções, mas não estes casos."
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
As afirmações do ministro causaram perplexidade à deputada Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda, um dos partidos que requereu a audição, juntamente com a Iniciativa Liberal, o PCP e o Livre. Dizendo esperar não ter percebido bem o que o ministro quis dizer, a parlamentar certificou: "Um médico ou é objetor ou não é objetor; não tem de julgar as razões das mulheres, e elas não têm de as dizer. Os médicos não podem decidir casuisticamente sobre as razões das mulheres para interromper a gravidez e não têm de as conhecer."
Ministro ignora a regulamentação da lei?
O ministro não chegou, na audição, a esclarecer exatamente o que considera digno de reflexão e de aperfeiçoamento na lei no que se refere à objeção de consciência, o que entende por "as circunstâncias concretas de cada mulher". Nem se admite que os médicos podem passar a ter, como defende Oliveira da Silva, o poder de decidir, "caso a caso", se objetam ou não, em face da história de vida ou das motivações de cada mulher para abortar - pretensão que à partida parece colidir com vários direitos constitucionais, como o direito à reserva da vida privada e a interdição da discriminação em função do género.
Mas o exemplo que deu - "Um profissional pode ser objetor de consciência à IVG a pedido da mulher em certas circunstâncias, e não ser objetor se a gravidez resultar de uma violação" - já é a realidade da aplicação da lei desde 2007, por via da portaria da Direção-Geral da Saúde que a regulamentou.
Trata-se da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de junho, que operacionaliza o disposto no artigo 6º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, no qual se reconhece o direito à objeção de consciência dos profissionais de saúde "relativamente a quaisquer atos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez". Essa objeção, prossegue o diploma, "é manifestada em documento assinado pelo objetor, o qual deve ser apresentado, conforme os casos, ao diretor clínico ou ao diretor de enfermagem de todos os estabelecimentos de saúde onde o objetor preste serviço e em que se pratique interrupção voluntária da gravidez".
Os termos da declaração são definidos na portaria, que estabelece dever cada objetor "especificar expressamente" quais os "tipos" de interrupção de gravidez cuja ilicitude é excluída, e que são enumerados no número 1 do artigo 142º do Código Penal ("Interrupção da gravidez não punível") aos quais objeta.
Assim, ao contrário do que afirmam quer o ministro quer o ex-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, não existe "objeção genérica" ou "um estatuto absoluto de objeção de consciência", mas, precisamente, objeção "casuística".
O objetor pode por exemplo optar por recusar qualquer IVG até às 10 semanas por vontade da mulher e aceitar fazer a interrupção em caso de crime contra a autodeterminação sexual (até às 16 semanas), a interrupção eugénica (até às 24 semanas) e a interrupção para remover risco de morte para a mulher (a todo o tempo). Ou vice-versa, ou qualquer combinação que entenda escolher - não existe qualquer obrigação de objetar em bloco.
Aparentemente, o ministro da Saúde, que admitiu na audição que até à publicação da investigação do DN sobre a violação da lei do aborto no SNS desconhecia situações como as descritas por este jornal - violações que a Entidade Reguladora da Saúde confirmou, em audição, existirem e terem sido objeto de várias das suas deliberações nos últimos anos - ignora o conteúdo da portaria em causa e portanto a regulamentação existente há quase 16 anos sobre objeção de consciência.
Há "falsas objeções de consciência"?
O texto exato da portaria é o seguinte: "O objetor deve especificar expressamente quais as alíneas do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal a que concretamente se refere a objeção, ou seja, deve explicitar se se refere à alínea a) ("Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida"), à alínea b) ("Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez"), à alínea c) ("Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excecionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo"), à alínea d) ("A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas") ou à alínea e) ("For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez"), ou a várias, especificando sempre a quais."
O DN enviou, a 10 de março, um questionário para o ministério da Saúde sobre, precisamente, a objeção de consciência à IVG, no qual, além de perguntar se a tutela possui uma contabilidade atualizada dos médicos objetores de consciência ou se já teve alguma, e datada de quando, ou uma estimativa da percentagem existente, se mencionavam os termos da portaria e o facto de esta permitir objetar "alínea a alínea".
Queria igualmente o jornal, na sequência das afirmações de Miguel Oliveira da Silva e de outros clínicos ouvidos pelo Observador, que assumiram - caso da dirigente da Federação Nacional dos Médicos, Sara Proença - que "há quem [não sendo contra a IVG] se declare objetor porque não quer fazer uma atividade tão pouco diferenciada, não quer fazer essas consultas [de IVG], senão só faziam isso e horas extra", saber se o ministério considera que a regulamentação existente para a objeção, e que permite situações qualificadas pelo artigo do Observador como "falsas objeções de consciência", é suficiente.
O DN também perguntava quais considera o governo poderem ser os motivos filosóficos, éticos ou religiosos legítimos (e não discriminatórios em função do género) a subjazer a uma declaração de objeção de consciência, por hipótese, à interrupção da gravidez até às 10 semanas por vontade da mulher e não às IG com outros motivos.
O ministério não deu qualquer resposta a estas questões, que no entanto parecem estar a merecer o interesse da Entidade Reguladora da Saúde. Cujo presidente, António Pimenta Marinho, manifestou, em audição na mesma comissão, estranheza perante a possibilidade de que a objeção de consciência possa abarcar todos os atos médicos necessários ao atendimento das mulheres que querem fazer uma IVG: "Parece-nos que os médicos não podem ser objetores de consciência para todas as atividades, como as ecografias, etc".
"Mais do que objetores ao aborto, são objetores à autonomia da mulher"
Essa é, no que respeita ao tema objeção de consciência, uma das questões levantadas pela obstetra Maria José Alves, coordenadora de uma consulta de gravidez indesejada: "Quais são os atos suscetíveis de objeção dentro do procedimento da IVG?"
Para esta histórica da luta pela legalização do aborto por vontade da mulher, "é imprescindível que haja uma regulamentação da objeção" - algo que considera não ter existido até agora.
E que no seu entender não deverá de modo nenhum suceder no sentido, admitido por Manuel Pizarro, de uma objeção de consciência "consoante as circunstâncias concretas da mulher".
A lei não dá o direito de julgar, declara. "Os obstetras existem para tratar de mulheres grávidas. As que estão e não querem continuar grávidas merecem o mesmo cuidado que as que querem. Se uma mulher vier ter connosco a dizer que quer ter um filho ninguém pergunta porquê. Por que haveríamos de perguntar porque quer abortar?" O problema, prossegue, "é que há profissionais de saúde que são objetores a que as mulheres decidam, e pretendem ser juízes das razões das mulheres. Mais do que objetores ao aborto, são objetores à autonomia da mulher."
Também defensora de uma regulamentação é a constitucionalista Teresa Violante, que considera ser necessário começar por clarificar o que é - e não é - a objeção de consciência. "É para o ato e não para os motivos que fundamentam o ato", sublinha ao DN. "Permitir ao médico recusar o ato em função dos motivos da mulher retira-o do âmbito de proteção do direito fundamental".
No Expresso, semanário do qual é colunista, escreveu em fevereiro dois textos sobre o assunto. "Deferir para o profissional de saúde o direito de emitir juízos sobre o acesso da pessoa ao ato médico em questão e, na verdade, sobre as suas opções de vida" constituiria "uma verdadeira discriminação em função do género", lê-se num deles. Ou seja, conclui, é inconstitucional.
Embora, adverte, a objeção de consciência seletiva "seja discutida no âmbito do serviço militar obrigatório, na prestação de serviços de saúde dificilmente a mesma deixa de se reconduzir à possibilidade de conceder ao profissional a capacidade para proferir juízos sobre a situação concreta e sobre a concordância ou discordância com um regime jurídico democraticamente estabelecido. Não é por isso de admirar que tenha sido liminarmente rejeitada pelo Tribunal Constitucional da Colômbia."
Direito à objeção não goza de proteção absoluta
Correspondendo embora ao exercício de um direito "com guarida constitucional", a objeção de consciência não goza de uma proteção absoluta. "Em situações de conflito com outros direitos e valores constitucionais, os valores em presença carecem de conciliação, podendo até o direito à objeção de consciência ceder", sustenta Teresa Violante.
Referindo o trabalho académico de Miguel Areosa Feio sobre acesso à IVG no SNS (O Silêncio das Inocentes Objeção de Consciência e Outras Barreiras na Implementação da Interrupção Voluntária de Gravidez, 2019) no qual este comprova, "a partir de entrevistas, existirem casos de profissionais que manifestam objeção de consciência apenas em relação ao aborto por opção da mulher, estando disponíveis para o realizar noutras situações", esta investigadora da Universidade Friedrich-Alexander de Erlangen-Nürnberg fala de "objetores de consciência obstrutivos" - "os que discordam da decisão das mulheres e visam impedi-las de exercer o seu direito".
A propósito, invoca a certificação do Comité Europeu dos Direitos Sociais de que, no caso da Itália, "a falta de médicos e outro pessoal de saúde não objetor de consciência em vários estabelecimentos de saúde, forçando as mulheres a deslocarem-se dentro do país ou mesmo a viajar para o estrangeiro, constitui um fator de discriminação das mesmas".
A constitucionalista refere também uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) em relação à Suécia: "A legislação sueca exige que todas as parteiras estejam disponíveis para realizar os atos inerentes à sua função, inclusive abortos, permitindo-se à unidades de saúde recusar contratar trabalhadores objetores de consciência com base em fundamentos religiosos e éticos. Uma vez que o Estado sueco tem a seu cargo a obrigação positiva de organizar o sistema nacional de saúde de tal forma que o exercício da liberdade de consciência pelos profissionais de saúde não impeça a prestação efetiva dos serviços de aborto, a exigência de que todas as parteiras na Suécia estejam dispostas a desempenhar os deveres inerentes à sua posição, incluindo a realização de abortos, foi considerada justificada e proporcional não só pelos tribunais nacionais mas também pelo TEDH, por considerar que a interferência com o direito à liberdade de consciência é justificada e necessária numa sociedade democrática."
E conclui: "Numa sociedade democrática e plural, a objeção de consciência não pode servir de fundamento para privar as mulheres de acesso a cuidados de saúde cuja privação ou atraso pode colocar as suas vidas em risco."
Portaria permite objetar quando IVG é único meio de "remover perigo para a vida"
Jorge Reis Novais, igualmente constitucionalista, discorda de Teresa Violante quanto ao facto de a portaria da DGS que permite a objeção casuística enfermar de inconstitucionalidade.
"É verdade que a objeção tem de ser uma decisão geral - por isso é que a lei obriga que seja comunicado formalmente, por escrito", diz este professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que foi consultor para assuntos constitucionais do Presidente da República Jorge Sampaio. "Mas não me parece que permitir que os profissionais de saúde possam escolher a que alíneas da lei objetam, fazendo umas interrupções e não outras, seja inconstitucional."
A cedência do direito à objeção face a outro - o do direito à saúde e à vida da grávida - é reconhecida no Código Deontológico dos Médicos portugueses, no artigo 12º ("Objeção de Consciência"), número 3: "A objeção de consciência não pode ser invocada em situação urgente e que implique perigo de vida ou grave dano para a saúde, se não houver outro médico disponível a quem o doente possa recorrer."
Aqui, porém, a cedência perante o direito à saúde e à vida da mulher só é concedida em caso de "urgência" - o que se coaduna com o facto de uma das "alíneas" de objeção previstas na declaração definida na citada portaria da DGS, dizer respeito à interrupção da gravidez que constitua "o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida". Querendo assim dizer que mesmo quando exista perigo de morte a regulamentação portuguesa permite que os profissionais de saúde se furtem a proceder a uma interrupção de gravidez - a não ser que a situação seja desesperada.
Um caso recente em Itália, país no qual 70% dos obstetras declaram objeção ao aborto, deixa dúvidas sobre se os objetores estão sempre disponíveis para reconhecer o momento em que é mesmo preciso fazer um.
Trata-se da morte de Valentina Milluzzo, de 32 anos. Tendo dado em setembro de 2016 entrada no hospital de Cannizzaro, na Catania (Sicília), grávida de gémeos e de 19 semanas, devido a perigo de aborto espontâneo, Valentina acabaria por perecer de septicémia duas semanas depois. O marido acusou os médicos do hospital - todos objetores - de, após Valentina ter perdido um dos fetos, se terem recusado a retirar o segundo por considerarem que ainda apresentava batimento cardíaco.
Sete médicos, incluindo o então presidente da Sociedade de Ginecologistas e Obstetras de Itália, foram constituídos arguidos; em outubro de 2022, o tribunal, tendo considerado provado que houve vários erros graves na forma como os clínicos agiram, nomeadamente ao não retirarem atempadamente o feto, condenou quatro deles por homicídio culposo (por negligência), a penas a seis meses de prisão (suspensa) e ao pagamento de uma indemnização de 30 mil euros. Não ficou assente, porém, que o motivo da morte tivesse sido a objeção.