No dia 29 de novembro, termina o processo de candidatura para o internato médico da especialidade que vai ter início a 1 de janeiro de 2026. E, a faltar poucos dias, a Ordem dos Médicos lança um alerta. “O cenário é preocupante”, confirma ao DN o presidente do Conselho Nacional do Médico Interno (CNMI), José Durão. “A este ritmo é óbvio que vai ser mais um ano em que haverá vagas que ficarão por preencher”, explica. E o grande problema é que as áreas mais afetadas são aquelas em que há mais carência de recursos humanos - nomeadamente Medicina Geral e Familiar (que forma médicos de família), que, no início da semana, tinha 520 vagas por preencher das 691 lançadas; e Medicina Interna (que forma os médicos que sustentam as urgências hospitalares) que tinha 164 vazias das 204 lançadas. Para já não falar da área de Saúde Pública, que tinha 49 vagas por preencher, e até da nova especialidade de Medicina de Urgência que tinha 26, tendo conseguido até ao momento só cinco candidatos. O cenário é também preocupante porque a poucos dias do fim do processo, que reunia 2317 vagas para 2375 candidatos, havia 1376 que ainda não tinham escolhido uma especialidade e quase 100 já tinham rescindido a candidatura, desistindo de entrar no internato no próximo ano.A agravar esta situação há o facto de as especialidades mais escolhidas, as primeiras a esgotar as vagas pelos melhores classificados na prova de acesso à formação específica, como Dermatologia, Oftalmologia, Otorrinolaringologia, serem aquelas em que os jovens médicos já sabem que terão “um internato relativamente tranquilo em termos da carga de trabalho e das exigências formativas”, admite o presidente do CNMI. José Durão reconhece também que a escolha destas especialidades - sobretudo de dermatologia, que tem sido muito referida nos últimos tempos pelo caso do médico do Hospital Santa Maria que conseguiu ganhar mais de 700 mil euros em dois anos com procedimentos simples e rápidos em atividade adicional -, distinguem-se das outras mais importantes para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), como Medicina Geral e Familiar (MGF) ou Medicina Interna (MI) por, “posteriormente ao internato, darem a possibilidade de uma atividade privada muito forte. O fator económico é, claramente, um dos que mais pesa nas escolhas dos internos. É o que se tem vindo a notar nos últimos anos”. Por outro lado, “não têm uma carga de urgência comparável à Medicina Interna ou a Cirurgia Geral ou Anestesiologia”. Segundo apurou o DN, logo no primeiro dia de candidaturas, lançadas a 19 de novembro, no top 25 dos melhores classificados, 14 tinham escolhido Dermatologia (só tinham sido lançadas 15 vagas), quatro Oftalmologia (das 21 lançadas), dois Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética, dois Gastrenterologia, um Otorrino, um Neurologia e um Cardiologia. Só a partir da posição 50 é que começam a aparecer outras especialidades como Endocrinologia/Nutrição, Psiquiatria, Ortopedia, Ginecologia-Obsterícia. Mas, a bem dizer, especialidades como Medicina Geral e Familiar só começaram a ser escolhidas a partir do candidato 180 e Medicina Interna a partir do candidato 400. Já a nova especialidade de Medicina de Urgência não tinha conseguido um único candidato até ao final da semana passada, embora nos dois primeiros dias desta semana já tenha cinco, ficando com 26 vagas por preencher das 31 lançadas.Vagas por preencher aumentam e devem ser alerta para governantesO cenário pode mudar até ao final da semana, mas o certo é que as vagas deixadas vazias têm aumentado nos últimos anos. De acordo com dados da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), organismo que gere este processo de candidaturas, em 2023 foram lançadas 2133 vagas, houve 1991 ocupadas, ficando vazias 142 vagas. Em 2024, foram lançadas 2187, preenchidas 1939 e ficaram vazias 248. Em 2025, foram lançadas 2190, com 1915 ocupadas e 275 vazias. Ao todo, nos últimos três anos ficaram por preencher 665 vagas. Em 2026, José Durão acredita que o cenário se repetirá. A grande incógnita, nesta altura, é se ficarão mais vagas por preencher do que nos anos anteriores, sobretudo nas especialidades que são as bases principais de todo o sistema de saúde, como MGF ou MI. “Se estas especialidades ficam com vagas por preencher quer dizer que há serviços inteiros nos hospitais e nos centros de saúde que vão ter falta de internos e isto é uma preocupação, não só para o CNMI como para a Ordem dos Médicos e para todas as instituições da Saúde”. .Ordem dos Médicos pede 2317 vagas para internatos da especialidade em 2026, “o maior número de sempre” . Até porque, argumenta, “os médicos internos são um motor de desenvolvimento dos serviços. Ou seja, não são necessários só por uma questão de formação e de produção de cuidados, mas também porque são um motor para a inovação e para novos projetos. Sem eles, a qualidade da formação dos serviços desequilibra-se e degrada-se, com consequências óbvias, depois, na prestação de cuidados”.Para o presidente do CNMI, a situação que se vier a registar no final desta semana deve servir de alerta aos governantes. Aliás, reforça José Durão, “o assunto foi discutido recentemente numa reunião entre a tutela e a Ordem dos Médicos”, o que o leva a dizer que “a Ordem tem feito o seu papel”. “Se há mais vagas lançadas é porque a Ordem tem promovido isso junto de muitos serviços. A questão é que são os próprios candidatos que não querem concorrer às vagas que existem”. Detalha ainda que “há dois anos a Ordem reuniu com todos os colegas que não quiseram escolher uma especialidade para saber o que os levava a não escolherem uma única especialidade” e o resultado aponta para o facto de os “internatos não serem atrativos”. “Há questões formais de estrutura e de arquitetura que levam os colegas a considerarem os internatos muito rígidos, desde a entrada, ao seu percurso e até à saída e avaliação final. Há muito burocracia associada, prazos restritivos e pouca flexibilidade”, sublinha José Durão. E exemplifica: “Uma pessoa que entra numa especialidade e que depois quer mudar pode ter pela frente um processo de dois a três anos ou até ter de repetir o exame de acesso”. Para o médico, “a própria estrutura da formação específica continua a obedecer a padrões rígidos, já que há só um único modelo. E, hoje em dia, os colegas mais jovens já não procuram isto. Preferem modelos ou percursos personalizados onde podem conjugar a formação com a atividade clínica e até com a investigação. Um modelo que lhes permita fazer o internato em menos tempo ou até em mais tempo para se dedicarem, por exemplo, à atividade académica”, defende o representante dos médicos internos na Ordem, relembrando: “A medicina de hoje faz-se de muitas formas e não apenas de uma só”. Jovens médicos fogem de especialidades com muita urgência ou horas de bloco O perfil do que querem as novas gerações nos internatos das especialidades está traçado. Até para os próximos anos, se não houver mudanças estruturais. A questão, como relembra José Durão, é o que será do SNS se os novos médicos recusarem sistematicamente as tais especialidades base dos cuidados hospitalares e primários, como MI ou MGF, ou até outras como “cirurgia geral”, que no final da semana tinha 30 vagas por preencher, embora agora já só tenha 17. A explicação para a fuga desta especialidade cirúrgica, segundo José Durão, “é precisamente porque tem um internato muito pesado, seis anos, e sofre muito com a questão do trabalho na urgência e muitas horas em bloco”, destacando que “normalmente, quando se chega ao candidato 1500 as vagas para cirurgia geral esgotam e, este ano, isso ainda não aconteceu”. .Ordem vai mudar regras do internato médico para travar fugas às especialidades. Reconhece, todavia, que “de todas as especialidades cirúrgicas esta é sempre a última a fechar as vagas por ter um tronco comum muito pesado”. Por exemplo, Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética, apesar de ter um internato de seis anos e de ser muito intenso, tem depois uma componente que é mais atrativa - “a prática privada após o internato e fator financeiro são muito fortes”, o que já não acontece em cirurgia geral. Outra especialidade que está a preocupar este ano é a de Ginecologia-Obstetrícia. “Só esta semana é que a especialidade conseguiu fechar todas as vagas. E isto deve ter a haver com o facto de a especialidade estar a ser muito mediatizada pelo trabalho nas urgências”. Ou seja, “é uma área com forte componente no setor privado, mas que tem muito trabalho na urgência e em bloco, o que, associado à mediatização, pode estar a afastar os colegas”.José Durão assume ainda não estar surpreendido com o facto de a nova especialidade de Medicina de Urgência ter ainda 26 vagas por preencher. “É um internato sobre o qual pouco se sabe e logicamente os jovens médicos têm um certo receio. Sobretudo, numa altura em que os cuidados em serviço de urgência também são mediatizados”. No entanto, ressalva, “a forma como correr o internato este ano vai ser fundamental para a escolha da especialidade no futuro”. Por tudo isto, o presidente do CNMI diz “ser urgente tornar o internato médico mais atrativo” e que é preciso “convencer os colegas que a especialização é necessária”, considerando mesmo que o quadro atual é uma das razões que tem levado muitos a preferirem ficar como prestadores de serviço, cujo número passou de 400 em 2021 para 4000 em 2025, ou até a emigrarem para fazer formação em países que têm internatos mais flexíveis. Até dia 29 de novembro, os jovens médicos ainda se podem candidatar e o alerta do CNMI vai precisamente para aqueles que estão a tempo de escolher as especialidades que “são basilares para o SNS”.