"Exigimos o nosso centro de saúde de volta.” É com esta frase que um grupo de 30 personalidades, que reúne nomes de antigos governantes e dirigentes da Saúde e da sociedade civil, termina o texto do “Manifesto sobre os serviços e cuidados de saúde a que temos direito”, que é hoje divulgado e que pretende ser um “grito de alerta” ao poder político e aos cidadãos sobre o que está a acontecer na Saúde. “Queremos que seja onde nos conhecem, onde criamos relações de confiança, que seja feita a gestão do acesso aos cuidados de que necessitamos. Especialmente em casos de aflição, na doença aguda. Não aceitamos que o nosso centro de saúde seja substituído por “postos de consultas”, presenciais ou à distância, públicas ou privadas, algures”.Ou seja, e resumindo, para este grupo o conceito de centro de saúde, criado há 50 anos, deixou de existir, desde que vem a ser substituído pelas chamadas Unidades de Saúde Familiar, (USF), as quais, dizem, “não dá as mesmas respostas que dava um centro de saúde”. E, como se não bastasse, a “centralização do acesso”, através da Linha SNS24, está a acabar com “os cuidados de proximidade”. Ao DN, um dos subscritores e médico de família, José Luís Biscaia, argumenta: “As medidas e políticas aplicadas estão a ter como consequência a desestruturação dos cuidados de saúde primários. E se não houver uma inversão vai ser difícil de recuperar o que se tinha.”O documento - que é assinado por Ana Advinha, Ana Escoval, Ana Paula Gato, Alcindo Maciel Barbosa, Alexandra Fernandes, António Leuschner, Carlos Cortes, Carlos Monjardino, Constantino Sakellarides, Eduardo Paz Ferreira, Filipe Alfaiate, Henrique Barros, Isabel Abreu, José Aranda da Silva, José Luís Biscaia, Júlio Machado Vaz, Manuel Lopes, Manuel Sobrinho Simões, Margarida Santos, Maria de Belém Roseira, Mirieme Ferreira, Patrícia Barbosa, Paula Santana, Pedro Lopes Ferreira, Pedro Maciel Barbosa, Ricardo Paes Mamede, Rui Monteiro, Rui Pato, Sofia Crisóstomo e Vítor Melícias - divide-se em quatro pontos e começa por afirmar que “o esvaimento da ideia de Centro de Saúde é real". "Há mais de 50 anos, o Centro de Saúde tornou-se a característica distintiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS) português. Outros seguiram-nos, mais tarde. Ao longo das últimas décadas, após sucessivas reformas, foi-se constituindo como o espaço de proximidade onde as pessoas encontram o seu SNS, aprendem a conhecê-lo, são ouvidas, cuidadas, orientadas, referenciadas, seguidas. Tanto na saúde - na sua proteção e promoção - como na doença. Isto através da ação convergente, articulada, das suas múltiplas unidades funcionais. Focadas em assegurar-nos bons resultados de saúde”.. USF que não atendem utentes e respondem a emails com "inaceitáveis demoras" Mais. Nos centros de saúde, refere ainda o documento, “a relação de confiança com a equipa de família - médicos, enfermeiros de família e outras competências relevantes - é essencial. É muito importante que as pessoas sintam que numa aflição, numa doença aguda - não necessariamente uma emergência médica - podem beneficiar daquela relação de confiança, de cuidados de saúde por profissionais que os conhecem, assim como de toda a informação de saúde a seu respeito”, mas não é isto que está a acontecer.Pelo contrário, sublinham, “subitamente, há centros de saúde no país - e as unidades funcionais que os compõem - que já não atendem os seus utentes ao telefone, que respondem ao correio eletrónico com inaceitáveis demoras, e os informam que agora também não os atenderão em caso de doença aguda”. Os proponentes do documento referem-se ao facto de os utentes, para terem atendimento, “terem de recorrer a uma chamada telefónica para a Linha SNS24. Chamada que, mesmo em período de baixa intensidade de doença aguda, pode demorar tempos insuportáveis para ser atendida. Onde um profissional, que não conhece a pessoa de todo, nem tem acesso à sua informação de saúde, perguntará o que o algoritmo precisa para 'tomar uma decisão” sobre o seu destino!'”Este grupo de personalidades lembra que “não foi para substituir a equipa de saúde familiar que a Linha SNS24 foi criada”, destacando também que, esta linha, pode ser “seguramente útil se atender a tempo nas semanas de alta incidência de doença aguda”. Nestas alturas, “pode ajudar a dar resposta aos que, infelizmente, ainda não têm equipa de saúde familiar. E pode prestar informação útil, em várias circunstâncias”. No entanto, esta centralização do acesso, que, hoje, está alargada a todo o país, através da massificação da mensagem “Ligue Antes, Salve Vidas”, está a permitir que, “sem qualquer orientação escrita das entidades da Saúde, as próprias USF assumam que um doente, em qualquer situação, tem de ligar para a Linha SNS24 para ser atendido, em vez de tratar do assunto diretamente com a sua unidade de saúde ou pelo telefone ou deslocando-se até ela”, explica o médico José Luís Biscaia, que também integra a Fundação Para a Saúde. Acrescentando: “O que partiu de uma boa ideia, que tinha virtualidade, para ser alternativa à excessiva pressão das urgências ou à sua utilização exagerada, e que começou por ser um projeto-piloto na Póvoa do Varzim, onde todos os utentes tinham equipa de saúde familiar, e, por isso mesmo, se tentava que em caso de episódios de doença não fossem todos às urgências hospitalares e ligassem para um número, como a Linha SNS24, acabou por se estender a todo o país. E, de forma muito rápida, o Ligue Antes Salve Vidas, através da Linha SNS24, passou a ser o primado da porta de entrada no SNS, para os utentes com ou sem médico de família e para qualquer questão que o utente tenha para colocar. Hoje, toda a população tem esta compostura e isto está a destruir completamente o acesso aos cuidados de saúde de proximidade”. José Luís Biscaia também reforça que a medida poderia “ser alternativa para utentes sem médico de família (que já são 1,8 milhões) e que não têm outra porta de acesso, ou para regiões que têm esta pressão, como Lisboa e Vale do Tejo e Algarve, mas para as outras regiões não faz sentido e nem deveria ter sido adotada”. Porque, justifica, assim, “mesmo os utentes que têm equipa familiar na sua unidade de saúde estão a ser travados neste contacto de proximidade, quando lhes dizem que têm de ligar também para a Linha SNS24 para poderem ter acesso à sua equipa para fazer apenas um pedido mais administrativo, como para exames, receituário ou apenas uma declaração”. Para dar mais expressão à indignação que os subscritores deste manifesto sentem perante o que está a acontecer nos cuidados primários - “é como se os cuidados primários e as USF não pudessem dar resposta em doença aguda” - o médico destaca que este tipo de medida está a fazer com que se “perca a vantagem da proximidade e da continuidade, quando há já uma forte evidência de que estas, quer a nível da gestão e da prestação de cuidados, tem imensos benefícios para os utentes”, defendendo: “A alternativa poderia ter sido, em vez de se estar a reforçar a Linha SNS24 com enfermeiros para se conseguir dar resposta em tempo útil, o que nem sempre acontece, aos utentes, porque não contratam estes enfermeiros para capacitar as unidades com mais utentes sem médico de família, para lhes fazem a triagem e encaminhá-los?”No final, este grupo de personalidades lembra e reforça que, e “como experiências internacionais sugerem, é possível e é preciso que o centro de saúde e as suas equipas profissionais, com aquilo que conhecem dos seus utentes e com a informação ao seu dispor sobre eles, na base da sua relação de confiança, orientem o seu acesso aos cuidados de saúde de que necessitam”.Nova organização: 39 Unidades Locais de Saúde e 937 Unidades de Saúde Familiar Unidades Locais de SaúdeDesde janeiro de 2024 que o SNS deixou para traz a organização em cinco Administrações Regionais de Saúde (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve) para passar a ter uma organização em Unidades Locais de Saúde (ULS). Ao todo, no país há 39 ULS que reúnem os cuidados hospitalares e os cuidados primários de uma região. Esta nova organização foi definida e aprovada ainda no tempo do ministro Manuel Pizarro, durante o último Governo de António Costa. Cuidados PrimáriosAntes, eram os centros de saúde que integravam os cuidados primários de saúde, mas, ao longo dos últimos anos estes têm vindo a dar lugar às Unidades de Saúde Familiar (USF), que se diferenciam, sobretudo, pelo modelo de gestão que incorporam, dando incentivos aos profissionais pelo número e tipo de atos praticados, e pelas Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP), cujo modelo de gestão é semelhante aos dos antigos centros de saúde. Unidades de Saúde FamiliarDe acordo com dados oficiais, atualmente existem em Portugal 937 USF, das quais 657 são do modelo B (com incentivos por atos praticados) e 280 são do modelo tradicional (UCSP). Em 2024, aquando da reorganização do SNS, o governo de então e com o objetivo de generalizar o acesso a um médico de família criou mais 222 USF modelo B. Foi o maior número de sempre.