À medida que o país envelhece - e já é o terceiro mais velho da UE - está a aumentar o número de pessoas em situação de vulnerabilidade. Seja por idade avançada, fragilidade física, psicológica ou isolamento, a exposição ao risco de maus-tratos ou outras práticas criminosas é real e está a exigir um esforço cada vez maior às autoridades. Nos últimos dois anos e meio, a Guarda Nacional Republicana (GNR) registou 5267 crimes de violência doméstica contra idosos com mais de 65 anos..Em muitos dos casos, os maus-tratos partem dos filhos contra os pais e estão, regra geral, “associados a um padrão marcado por desemprego, problemas de saúde mental e consumo de substâncias”, disse ao DN Vitor Alquerque, do Núcleo de Investigação e Apoio a Vítimas Específicas (NIAVE), da GNR..O caso de Rosa e Joaquim (nomes fictícios), casal em torno dos 80 anos, encaixa naquele perfil. Foram vítimas continuadas de violência física, emocional e psicológica por parte do filho, de 50 anos, que morava com eles em Alcabideche, no concelho de Cascais, e que abusava de álcool e drogas. Para além de insultos e agressões regulares, o indivíduo apropriou-se do cartão multibanco dos pais, levantou perto de 5 mil euros em poupanças e deixou os pais na miséria. O caso chegou àquela unidade da GNR em 2021, por denúncia de uma vizinha, que se apercebeu do clima de terror em que viviam. Em desespero, o casal aceitou prestar declarações, “o que é algo raro, que é sempre muito difícil para os pais e que nem sempre conseguimos que façam”, salientou o militar. Tomadas as diligências adequadas, o Ministério Público deduziu acusação e o homem foi detido, mas quando chegou o dia do julgamento os pais não tiveram coragem de prestar declarações, porque sabiam que o filho incorria em pena de prisão efetiva. Perante a falta do seu testemunho, a juíza encarregue do processo acabou por decretar apenas medida de afastamento e a obrigatoriedade de fazer tratamento de desintoxicação..“Esta é, infelizmente, uma situção muito comum”, relata Vitor Albuquerque. “Dizem-nos sempre: eu falo, mas não quero que o meu filho vá para a cadeia”, relatam os guardas ouvidos pelo DN, admitindo, por vezes, uma certa frustração por não conseguirem endireitar vidas tão sinuosas..Na verdade, como refere Luís Silva, outro militar do NIAVE, “o que está por detrás deste tipo de casos, muitas das vezes, são vidas tristes, de filhos ou netos que nunca conseguiram autonomizar-se para sair da casa dos pais ou então que regressam muitos anos depois, desempregados, deprimidos, dependentes de substâncias ou com divórcios mal resolvidos, sem dinheiro para alugar uma casa”, com elevadas cargas de frustração. Acabam por descarregar nos pais, de quem deviam ser os primeiros cuidadores..Norte lidera maus-tratos.Segundo dados fornecidos por aquela força policial, os ilícitos contra idosos envolvem maioritariamente violência psicológica e física, mas também económica, patrimonial e sexual. Entre janeiro de 2022 e 15 de julho último, aqueles crimes ocorreram, sobretudo, nos distritos de Porto, Aveiro, Braga e Setúbal..No mesmo período temporal foram ainda abertos 304 inquéritos-crime por maus-tratos, sendo que a sua maioria é cometida nas residências dos próprios, por familiares ou assistentes, indica a análise estatística da GNR..E também ocorrem em lares de terceira idade. Em causa podem estar atos de negligência na prestação de cuidados e assistência e de abuso psicológico, por exemplo. O distrito do Porto é novamente aquele onde esta realidade é mais evidente, seguido pelos distritos de Lisboa, Setúbal e Aveiro..Um exemplo de negligência e violência psicológica acompanhado pelo NIAVE diz respeito a um idoso de 70 e poucos anos, com problemas sérios de mobilidade, a quem a mulher não prestava assistência para o ajudar a levantar da cama nem lhe dava comida. O problema é que a própria agressora também precisava de ajuda, pois sofria de graves problemas psiquiátricos. Após denúncia de vizinhos, a GNR chamou os bombeiros, que o levaram para o hospital, em grande debilidade, enquanto os serviços sociais do hospital o encaminharam para um lar de acolhimento de emergência e a Segurança Social ficou encarregue de lhe encontrar um lar definitivo. À agressora foi imposta consulta de psiquiatria hospitalar, mas não consta que tenha acatado a decisão judicial, dizem os militares que acompanharam o caso..“As famílias disfuncionais são situações muito complexas e são um terreno difícil de trabalhar que, às vezes, também nos causa grande desgaste psicológico”, admite Luís Silva, para o qual a GNR disponibiliza apoio psicológico regular..Outro exemplo de família disfuncional acompanhado pela unidade é o de um casal que acolheu o neto de 30 anos, porque o pai o expulsou devido ao consumo de drogas. Apesar de não haver sinais de violência física, era bastante evidente a coação psicológica que ele exercia para obter dinheiro e “quando o dinheiro da pensão de reforma dos avós acabava, eles tinham de ir pedir emprestado aos vizinhos para dar ao neto”. A prova recolhida não era suficiente, porque enquanto o avô se queixava à GNR, a avó protegia-o, contando a versão inversa..Há uma década no terreno.Desde março de 2023, por despacho da Procuradoria Geral da República, a Guarda passou a centralizar a distribuição deste tipo de inquéritos-crime pelas suas unidades territoriais. Mas “já há mais de uma década que realizam ações regulares de policiamento de proximidade junto dos idosos mais vulneráveis em todo o país”, disse ao DN o major Ricardo Guimarães da Silva, chefe do departamento de prevenção criminal e policiamento comunitário..No âmbito do Censo Sénior, que a GNR realiza regularmente, estão sinalizados 44114 idosos em situação vulnerável, desde outubro de 2023. A nível regional, o distrito da Guarda lidera neste indicador (5477 idosos), seguido por Vila Real (5360) e Viseu (3.528)..Os números mostram que a vulnerabilidade dos idosos é mais expressiva nas regiões rurais e do interior, mas também é bastante palpável nos grandes centros urbanos. “A diferença é que o grau de isolamento é menor em comparação a quem vive geograficamente isolado num monte”, explica o militar..É por isso que é sobretudo naquelas regiões, mas não só, que a iniciativa da GNR ‘Apoio 65+, Idosos em Segurança’ faz a diferença no dia-a-dia de quem vive, só, em situação de fragilidade ou isolado..“O objetivo principal desta iniciativa, no âmbito dos programas especiais de policiamento de proximidade, é prevenir a violência contra idosos, dando-lhes ferramentas para se protegerem e sentirem mais seguros”, disse ao DN o major Guimarães da Silva..400 militares para prevenir violência.A GNR aloca atualmente 400 militares que estão exclusivamente afetos a este tipo de policiamento a nível nacional, naquilo que tem sido um reforço contínuo, desde que há mais de uma década foi criado. “É o maior contingente de sempre”, disse o responsável. E o efetivo alocado àquelas funções “vai continuar a ser reforçado, uma vez que está previsto o início de mais um curso de formação de militares para esta área já em outubro”, avançou..“É uma área em que estamos a apostar muito, também para acompanhar o envelhecimento da população e à qual também há mais militares a quererem aderir”. Os militares candidatam-se a esta especialidade, têm uma formação de três meses sobre prevenção criminal e direitos humanos e submetem-se a provas de aptidão psicológica, médicas, entre outras, para poderem ser selecionados para trabalhar com pessoas vulneráveis, explicou aquele responsável..Os idosos sinalizados como vulneráveis constam de uma mapa onde a sua localização geográfica está indicada e são visitados numa base regular. No ano passado realizaram-se em todo o país uma média de 293 visitas por dia num total de 107 mil ações, adiantou Guimarães Silva..“Criar laços de confiança com as pessoas é um trabalho que não se faz de um dia para o outro e, às vezes, exige várias visitas e um conhecimento, até que o idoso possa confiar e denunciar os maus-tratos de que é vítima, que acontecem dentro da sua própria casa”. Com efeito, em “mais de 50% dos casos as ameaças estão no seio do agregado familiar”..Mas nos crimes contra idosos o lugar cimeiro vai para as burlas. Sempre existiram, mas com a digitalização e, sobretudo, desde a pandemia, quando muitos idosos começaram a ter os seus primeiros contactos com o mundo digital para resvolver assuntos, estas aumentaram, explica o major..Por isso, das ações de prevenção da criminalidade contra idosos também fazem parte pequenas formações para ensinar alguns passos básicos de como usar um smartphone ou um computador, em parcerias com empresas de comunicações. É o caso do MUDA, movimento de utilização digital ativo..Mas a base da prevenção – nunca é demais sublinhar - é “não abrir a porta a estranhos e ter cuidado com pessoas muito bem falantes, que aparentam grande simpatia”. Na dúvida, os idosos sinalizados dispõem de um número de telefone personalizado a quem podem ligar na GNR. Ainda há quem consiga enganar idosos com a conversa de trocar notas e ouro, entre vários expedientes imaginativos. Na era cibernética há também que aprender a não abrir as redes sociais, telefones e e-mails a estranhos..Apesar dos mais de 5200 crimes assinalados nos últimos dois anos e meio, não é conhecida a percentagem de casos com desfecho judicial, com lugar a condenação, disse a GNR em resposta ao DN..“Quando isso acontece por nossa intervenção, sentimos que o nosso trabalho faz ainda mais sentido”, conclui Guimarães da Silva.