"No primeiro semestre de 2025 foram registadas 11 445 ocorrências relacionadas com violência doméstica. (…) Registaram-se 3734 casos de violência filioparental, tendo sido esta a relação mais frequente entre agressor e vítima nos dados apurados no primeiro semestre deste ano.” Segundo esta informação, prestada pela PSP ao DN, sublinhando tratar-se ainda de dados provisórios, a violência doméstica (VD) reportada a esta polícia como advindo de filhos contra pais terá passado de 5,6% (881) do total de ocorrências de VD em todo o ano de 2024 para 32,6% no primeiro semestre deste ano. Caso esta proporção se mantenha no segundo semestre de 2025, observar-se-ia um aparatoso aumento, de um ano para o outro, de 493% na categoria a que a PSP denomina de “filioparental”. E que, a confirmar-se, não se verificará apenas em relação a 2024; ainda segundo os dados da PSP, também em 2022 e 2023 a percentagem de ocorrências de VD em que descendentes foram os perpetradores denunciados não chegou a 7% (variando, em valores reais, entre 894 e 1091) do total. Aliás, desde que em 2007 a violência doméstica passou a ser um tipo criminal autónomo, nunca, de acordo com os Relatórios Anuais de Segurança Interna (RASI, que agregam as denúncias de VD a esta polícia e à Guarda Nacional Republicana), a categoria em que os agressores são os filhos e as vítimas os pais chegou sequer a 10%. É certo que nos últimos anos se vinha a observar um ligeiro aumento, com a percentagem mais elevada respeitante a estas ocorrências dizendo respeito a 2022 e 2023, com 7,4% do total. Em termos reais, 2022 fora até agora o ano “recordista” , com 2609 ocorrências, seguido de 2023 (2547) e de 2019 (2460). De relevar que, se se agregarem as denúncias de VD relativas a cônjuges e análogos às que respeitam a ex-cônjuges e análogos e namorados (atuais e ex), numa só categoria — a que se costuma dar o nome de “relações de intimidade” —, esta continua a ser a percentualmente dominante: na primeira metade de 2025, a PSP contabilizou 3521 ocorrências de VD entre cônjuges ou análogos, mais 1699 entre ex-cônjuges ou análogos. Registou também 1717 situações de violência no namoro, das quais 787 dizendo respeito a relações “no ativo”. Somando, temos 6937 casos, ou seja, mais de 60% das ocorrências.Curioso é notar que se assiste, na primeira metade de 2025, ao que se poderá considerar, face aos anos anteriores, uma inversão entre categorias. Em 2024, das 15782 ocorrências de VD reportadas à PSP 6554 respeitaram a relações “de intimidade”, mas a categoria com mais denúncias/vítimas foi a da VD praticada contra descendentes (7503). Esta categoria vem aliás a evidenciar, também nos dados do RASI, um acréscimo importante nos últimos anos, o que poderá relacionar-se com a alteração legal, efetuada em 2021, que define as crianças e jovens expostos a VD como vítimas desse crime: em 2023 a PSP contabilizou 7394 “casos de violência doméstica praticadas contra descendentes” num total de 15499 ocorrências de VD; em 2022 foram 6760 (em 15783).Mas na primeira metade de 2025, de acordo com os dados transmitidos ao DN, esta polícia só registou 619 casos em que “os suspeitos eram os pais ou padrasto/madrasta das vítimas”. Mais violência ou “desocultação do fenómeno”?Estamos ante uma súbita epidemia de violência contra ascendentes? Após um mês de outubro no qual, numa mesma semana, foram notícia um “destaque” da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) sobre, precisamente, um aumento de 27%, entre 2022 e 2024, do reporte, a esta associação, de casos em que filhos agridem pais, um matricídio alegadamente cometido por um adolescente de 14 anos e uma alegada tentativa de homicídio perpetrada por uma filha, por esfaqueamento, sobre o respetivo pai idoso, talvez estejamos predispostos a acreditar nisso.Mas o intendente da PSP Hugo Guinote, chefe da divisão de Prevenção Pública e Policiamento de Proximidade da PSP, nega: “Temos estado a registar cada vez mais denúncias de ano para ano, e estamos a acompanhar de uma forma mais próxima, de há cinco anos para cá, aquilo que é a violência filioparental”, diz este responsável policial ao DN. “Mas isso não quer dizer, atenção, que tenhamos mais violência. A nossa firme convicção é que, sendo cada vez mais falada a violência de filhos contra pais, estamos a assistir a uma desocultação do fenómeno, com os reportes a chegarem não só das vítimas mas também dos familiares e filhos.” Tem havido, prossegue, “um trabalho meritório de sensibilização à comunidade, não apenas da justiça e da administração interna mas também de várias áreas de apoio à vítima — caso da APAV, e de outras organizações que prestam esse tipo de apoio. E também operações de prevenção criminal dirigidas à terceira idade, quer pela PSP quer a GNR, que têm, desde há uns anos, o objetivo de detetar situações de VD não só no contexto de conjugalidade como de filioparentalidade, e promover a adoção de medidas de autoproteção.”Esta maior atenção é simbolizada na alteração recente da ficha de avaliação de risco de VD: em vigor desde 1 de julho deste ano, inclui a “violência de filhas/os contra pais e violência contra pessoas idosas” entre as tipologias de VD identificadas. Uma mudança que enche Hugo Guinote de orgulho: “Portugal é um país pioneiro na alteração da ficha de VD para aferir o risco de violência filioparental. Pedimos que a avaliação de risco efetuada num contexto de VD não se restringisse a indicadores que avaliam a violência conjugal mas incluísse igualmente a violência filioparental neste novo formulário.”A propósito de classificações, será útil, antes de prosseguirmos, fazer algumas advertências quanto aos conceitos. Desde já, convém ter em conta que a violência de filhos contra pais só entra na categoria “violência doméstica” quando existe coabitação de vítima e perpetrador ou dependência da vítima em relação ao segundo. Quaisquer agressões de filhos a pais fora dessas circunstâncias serão inscritas ou no tipo criminal “maus-tratos” ou no relativo ao ato em questão (ofensa à integridade física, por exemplo). Outro aspeto a ter sempre em conta é, como lembra o intendente da PSP, que VD inclui vários tipos de violência, e não apenas a violência física. O que significa que é difícil fazer comparações com realidades anteriores, nomeadamente para perceber se a violência de filhos sobre pais está a “piorar”. Será, por exemplo, que não existiu uma situação muito mais dramática quando, no final do século XX, Portugal passou por aquilo a que se pode dar o nome de “epidemia de heroína”? Hugo Guinote corrobora a dúvida: “Hoje reporta-se violência económica, psicológica — são diferentes formas de violência e todas elas caem no tipo criminal VD, o que faz aumentar o número de participações e nos permite uma atuação num estádio inicial, ou pelo menos num momento não tão gravoso do conflito.”Poderá assim estar em causa, como sustenta este especialista, não tanto um aumento da violência mas um aumento da sensibilidade, quer das vítimas quer de quem as rodeia e da sociedade em geral, à violência, e uma alteração qualitativa naquilo que é considerado aceitável ou “normal”, ou seja, do que é sentido e visto como violência.“Estamos a pôr tudo no mesmo saco”?Se recorremos ao olhar académico sobre esta realidade, concluiremos que este complexifica ainda mais, demonstrando que existe nos números, tanto nos das polícias como nos da APAV, um cruzamento de situações no qual a violência contra idosos se encontra com a violência intrafamiliar. E que a própria definição do conceito de violência filioparental, que a PSP usa, e que parece de simples compreensão, está longe de ser consensual.Vejamos por exemplo uma ficha de informação da APAV de 2020 sobre este conceito — o qual, de resto, esta associação não usou na recente divulgação de números sobre “filhos que agridem pais”. “A Violência Filioparental (VFP) é identificada e definida, em 1979, como Síndrome dos Progenitores Maltratados. A designação adotada em 2006 — Violência Filioparental (tradução de child-to-parent violence) — reporta-se à violência de filhos/as contra os/as seus/suas progenitores/as ou pessoas adultas que ocupem o seu lugar”, lê-se na ficha. Que prossegue com a definição apresentada em 2017 pela Sociedade Espanhola para o Estudo da Violência Filioparental: “Comportamentos repetidos de violência física, psicológica (verbal ou não verbal) ou económica, dirigida às e aos progenitores, ou àqueles que ocupem o seu lugar”. Definição que exclui “agressões pontuais, que ocorram num estado de consciência diminuída e que desapareçam quando se recupera (intoxicações, síndromes de abstinência, estados delirantes ou alucinações)”; “agressões causadas por perturbações psicológicas”; “parricídio sem histórico de agressões anteriores”. Há ainda um último critério: “É consensual que, independentemente da idade, pode existir VFP sempre que vítima e agressor/a exerçam os papéis de cuidador/a e dependente, respetivamente.” A VFP, conclui esta informação, “emerge como sintoma de uma relação familiar perturbada, em que se regista uma inversão da hierarquia familiar, na qual o controlo é conquistado e assumido pelos/as filhos/as, através de ameaças, chantagens e/ou agressões.”Torna-se assim clara a razão pela qual a APAV não fala nem de VD nem de VFP a propósito do aumento que reporta nas queixas de pais agredidos pelos filhos: a maioria das vítimas, quase 80% das quais mulheres, tem mais de 65 anos (58,3%), e a maioria dos agressores, 89% do sexo masculino, tem entre 18 e 64 anos. Ou seja, muitos destes agressores não viverão com os pais (excluindo estes casos do crime de violência doméstica) nem são deles “dependentes”, no sentido de alvo de cuidados (portanto não classificáveis como violência filioparental); a maioria das vítimas são idosas.Mas, em paralelo, garante Neusa Patuleia, psicóloga e uma das especialistas portuguesas em VFP, assiste-se, tanto no que respeita à realidade internacional como à nacional, a um aumento do reporte de violência filioparental. Um aumento que, admite, poderá também advir do facto de se falar mais no assunto. “É uma questão transversal a todas as situações de violência: quanto mais falamos das situações mais denúncias existem. Quanto maior é a nossa sensibilidade para uma dada questão, mais conseguimos identificá-la. Mas também é muito importante percebermos que a VFP decorre dos estilos parentais que se foram desenvolvendo. Passámos de uma autoridade muito autoritária para uma parentalidade muito permissiva.” E alerta: “Nos dados que estão a surgir não está tipificada a violência filioparental, estamos a pôr tudo no mesmo saco.”“Os pais protelam muito a denúncia”Isto porque, explica a psicóloga, “quando se fala em dependência, não é apenas de dependência financeira que se trata, que ocorre por exemplo quando um filho adulto, de 30 ou mais anos, depende economicamente dos pais. Para preencher o conceito, os pais têm de ser responsáveis por aqueles filhos.” É essa responsabilidade “natural”, chamemos-lhe assim, que permite falar de uma inversão da hierarquia na VFP, inversão que ocorre “quando os pais não conseguem exercer a sua autoridade parental, definir as regras e limites aos filhos. Dizem: ‘Não consigo ter mão nele’”. Daí que a maioria dos trabalhos académicos sobre VFP delimite a idade dos agressores: têm de ser jovens, ter no máximo 25 anos. O que significa que a PSP não segue a definição “científica” (chamemos-lhe assim) de VFP, como reconhece Hugo Guinote: “Para a PSP a idade do agressor não é critério”. Aliás, adianta, “de acordo com a nossa perceção, os casos mais graves são os dos filhos ou filhas com mais de 40 anos. São pessoas que têm dificuldade em organizar a sua vida, vivem num contexto de dependência dos pais, económica e de certa forma social, muitas vezes com processos de dependência (substâncias, jogo, etc, normalmente com associação a contextos de saúde mental) e não conseguem ser autónomos.” Pessoas de quem, paradoxalmente, os pais idosos poderão estar dependentes para cuidados de vária ordem, tornando ainda mais difícil a denúncia às autoridades. Na amostra da APAV, 48% dos pais agredidos não a fizeram. São, reflete Hugo Guinote, “situações emocionalmente muito complexas. Nas vítimas de violência doméstica, e esta é a percepção que a maioria dos profissionais que trabalham na área da violência, não apenas dos órgãos de polícia criminal, têm, é que, e sobretudo na tipologia de violência filioparental, o momento de denúncia é muito tardio. Os pais protelam muito, porque, primeiro, procuram proteger os filhos, e depois porque eles próprios se sentem culpados, sentem que falharam no processo de apoio e de educação dos seus descendentes. E como tal vão prolongando as situações, e só quando temos situações mais gravosas é que denunciam. Por isso é tão importante que tenhamos cada vez mais estas denúncias a chegar-nos por outros familiares e também por vizinhos, por exemplo, o que tem permitido que se melhore este trabalho de prevenção criminal.” .Todos os dias um pai ou uma mãe é agredido pelo filho.Casos de filhos que agridem os pais aumentam no Minho