MAI suspende pena disciplinar a polícia que agrediu cidadão em tribunal

O subcomissário Hugo Correia foi condenado por agredir, em 2017, um cidadão no tribunal da Amadora. Alvo de um louvor por "lealdade e espírito de sacrifício" enquanto o processo criminal corria, viu agora a pena disciplinar de suspensão suspensa por despacho do ministro da Administração Interna.
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"Com a sua conduta, o arguido infringiu os deveres de zelo, correção e aprumo, previstos no Estatuto Disciplinar da PSP (...) porquanto, e em síntese, no dia 13-7-2017, no interior das instalações do Tribunal da Amadora, com mais dois elementos policiais, ter molestado fisicamente um cidadão que aguardava chamada para diligência judicial."

O texto citado faz parte de uma ordem de serviço da Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública e refere-se a Hugo Marcos Paula Correia que, com 27 anos à data dos factos, era subcomissário e dirigia a esquadra da Brandoa, tendo sido em 2019 condenado pelo Tribunal de Sintra, juntamente com dois subordinados, por ofensa à integridade física qualificada do dito cidadão. Este polícia, que em 2018, enquanto o processo criminal decorria, foi louvado por proposta do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP pela "lealdade e capacidade de sacrifício no desempenho das suas funções", viu agora o ministro da Administração Interna, em despacho de 12 de maio - após o trânsito em julgado da condenação por ofensa à integridade física qualificada de que foi alvo pelo Tribunal de Sintra em 2019, confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 2020 - suspender-lhe a pena disciplinar de 10 dias de suspensão.

A justificação desta suspensão, proposta pelo instrutor do processo disciplinar da Inspeção Geral da Administração Interna, segundo esclareceu entretanto ao DN o gabinete de Eduardo Cabrita, não é adiantada na ordem de serviço que dela dá notícia, na qual se lê apenas: "(...) no âmbito do processo disciplinar (...), por despacho de 12-5-2021, Sua Exa o ministro da Administração Interna aplicou a pena disciplinar de suspensão, graduada em 10 dias, suspensa na sua execução, pelo período de um ano, ao Subcomissário Hugo Marcos Paula Correia, à data dos factos do COMETLIS, atualmente do COMETPOR [ou seja, passou do Comando Metropolitano de Lisboa para o do Porto]".

Certo é que neste processo disciplinar se terá considerado que Hugo Correia não cometeu uma infração disciplinar "muito grave" que, nos termos do Estatuto Disciplinar da PSP, ponha em causa "o prestígio e o bom nome da instituição, inviabilizando, dessa forma, a manutenção da relação funcional" - ou seja, implicando a sua saída desta polícia.

Entre os comportamentos que devem ser considerados "infração disciplinar muito grave", o Estatuto Disciplinar aponta o de "abusar dos poderes inerentes às suas funções, tratando de forma cruel, degradante ou desumana quem se encontre sob a sua guarda ou vigilância, ou atentar, de forma grave, contra a integridade física ou outros direitos fundamentais das pessoas" e "agredir, injuriar ou desrespeitar gravemente outro polícia ou terceiro, em local de serviço ou em público".

Mentir em tribunal não figura na lista das infrações disciplinares "muito graves" elencadas no Estatuto Disciplinar da PSP. Porém durante o julgamento na primeira instância os juízes do Tribunal de Sintra, de acordo com o relato feito pelo Público, demonstraram não acreditar no que diziam os agentes policiais arguidos, avisando-os: "Apanhamos muito mais polícias a mentir do que devíamos".

Hugo Correia estava aliás acusado, pelo Ministério Público, de denúncia caluniosa - o processo iniciou-se por ter imputado à vítima a frase, dirigida aos agentes: "Palhaços do caralho, falem mas é para a parede" - e falsificação de documento (ou seja, de falsear o auto de notícia, relatando nele factos que não tinham ocorrido), crimes dos quais foi absolvido, embora no acórdão se tenha estabelecido que a versão contada pelos agentes em audiência, negando tudo aquilo de que vinham acusados, "não tinha merecido qualquer credibilidade".

Mas os magistrados optaram por não punir aquilo que assim descrevem como o ato, por parte dos arguidos, de faltar à verdade, ao narrarem em audiência a sua versão do ocorrido naquela manhã no tribunal da Amadora. No qual, deu-se como provado, agrediram, aparentemente por motivo algum, o cidadão Eugénio Silva, que ali se encontrava no âmbito de um processo de regulação do poder paternal.

O subcomissário Hugo Correia, que estava à paisana, terá, quando se cruzaram, perguntado à vítima, usando o tratamento por tu, "estás a olhar para mim porquê?" De seguida, o agente Diogo Ribeiro, o único que estava fardado, de acordo com o que foi dado como provado, empurrou Eugénio contra a parede perto da casa de banho e o agente Tiago Pereira deu-lhe um pontapé no peito. A cena foi testemunhada por dois advogados que, não tendo qualquer relação com Eugénio, acabaram por ir fazer queixa ao gabinete do Procurador da República naquele tribunal e vieram depois a depor pela acusação.

Foi assim dado como provado que os três polícias agrediram Eugénio Silva, e foram condenados por isso.

Mas, segundo foi narrado pelo Público, o procurador que representou o Ministério Público em tribunal, José Ramos, apesar de defender a condenação e de certificar que as declarações dos arguidos "não mereciam muita credibilidade", desconsiderou a gravidade dos crimes cometidos, alegando que as agressões "não foram muito graves" porque "o ofendido nem sequer precisou de assistência hospitalar" e que a força usada "esteve no limite mínimo de um agressão física".

Quanto a Hugo Correia, o procurador assumiu que o subcomissário tinha falsificado o auto de notícia, ou seja, acusado uma pessoa de ter cometido um crime que não cometeu, o que qualificou como "censurável" mas também "compreensível" por se tratar de "autodefesa". Autodefesa na forma de acusação falsa por parte de um polícia que no entender deste representante do MP implica "diminuição de culpa".

Assim, apesar de frisar que os três polícias foram "agentes de insegurança" num tribunal, que deve ser "um santuário de segurança", afastou a necessidade de "penas exemplares". Aliás, pelo contrário: pediu que as penas aplicadas fossem convertidas em multa e se suspendesse a pena ao subcomissário.

Já o coletivo de juízes presidido por Cláudia Martins Alves qualificou os factos em causa como "graves". Mas não viu necessidade da pena acessória de suspensão, não só porque os três arguidos não tinham antecedentes criminais como por ver os crimes cometidos como "um comportamento isolado e infeliz".

A posição do MP na acusação, exarada a 4 de outubro de 2017 pelo punho do procurador Hélder Cordeiro (o mesmo a acusar 17 agentes da esquadra de Alfragide, no caso Cova da Moura), tinha sido bem diferente. Pedia-se a suspensão imediata do subcomissário, por se considerar que a sua conduta "ao elaborar um auto de notícia descrevendo factos que não tinham ocorrido, pretendendo, por essa via, que fosse instaurado procedimento criminal contra pessoa determinada (...) põe em crise toda a relação de confiança que o Estado deve manter com particulares num domínio tão sensível como a justiça e a segurança. Nada garante que não venha a fazer uso desse expediente (...) e, deste modo, perfilhamos o entendimento de que existe o perigo de continuação da atividade criminosa."

Toda a acusação viria no entanto a ser posta em causa quando Hugo Correia pediu a abertura de instrução: o juiz de instrução criminal Pedro Faria de Brito decidiu não pronunciar nem o subcomissário nem os dois agentes, alegando que existia "uma clara incongruência entre o que as testemunhas tinham dito no inquérito e disseram em tribunal", e "narrativas divergentes relativamente ao mesmo aspeto essencial do acontecimento", o diálogo prévio às agressões.

O MP recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação, que a 29 de maio de 2018 lhe deu razão e pronunciou os três arguidos, estabelecendo que "da prova produzida no inquérito resulta claramente que existe uma muito maior probabilidade de os factos terem ocorrido como descrito na acusação formulada pelo MP do que como descrito pelos arguidos. Ou seja, há um elevado grau de probabilidade de terem sido cometidos os crimes imputados e deles terem sido autores os arguidos contra os quais foi deduzida a acusação, sendo maior a probabilidade de aqueles serem condenados, do que serem absolvidos."

No momento desta decisão da Relação, Hugo Coreia estava, segundo o Público, a dirigir outra esquadra - a da Mina, na Amadora; depois do julgamento, que se iniciou em outubro de 2018, passou para a zona do Porto, desconhecendo-se se continua a comandar esquadras.

"A violência policial contra cidadãos detidos, sobretudo afrodescendentes e imigrantes, é algo que acontece frequentemente em Portugal. Não foi feito o suficiente para reconhecer e atacar o real e persistente problema dos maus-tratos pelas forças de segurança que existe em Portugal", lê-se no relatório de 2020 do Comité para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa, que como o Comité Contra a Tortura da ONU e organizações como a Amnistia Internacional tem vindo a alertar repetidamente para a impunidade da violência policial em Portugal.

Na sequência da morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e da comoção internacional com o filme da morte do afro-americano George Floyd às mãos da polícia de Minneapolis, pela primeira vez em Portugal as prioridades da investigação criminal decretadas para o biénio 2020/2022 incluem os "crimes contra a vida e integridade física cometidos por agentes da autoridade", especificando o despacho da PGR que dá corpo a esta determinação que deve, se possível, existir "secção especializada" para esta investigação, que "não deve ser delegada no órgão de polícia criminal em causa".

Apesar de ser o único agente da PSP a dar entrada na prisão no âmbito deste processo, Machado está longe de ser aquele com a pena mais gravosa: o então chefe da esquadra de Alfragide, Luís da Anunciação, foi condenado a cinco anos; os agentes João Nunes e André Silva, respetivamente, a quatro e três anos e nove meses; dois outros, Fábio Moura e André Quesado, a dois anos e seis meses.

Machado cumpre pena por ter uma anterior condenação, em 2013, por um crime da mesma natureza; na altura a pena, de dois anos, foi suspensa por igual período.

Tendo decidido fazer os processos disciplinares relativos a estes agentes, que continuavam até agora todos ao serviço, esperar pelo trânsito em julgado - como sucedeu com Hugo Correia - a PSP terá agora de os concluir. De acordo com o Estatuto Disciplinar da corporação, uma pena de mais de três anos é uma infração muito grave, que implica demissão ou aposentação compulsiva - situação em que estão Luís da Anunciação, João Nunes e André Silva.

Pelo seu lado, a Inspeção Geral da Administração Interna já adiantou ao DN, pela voz da respetiva dirigente, a juíza desembargadora Anabela Cabral Ferreira, que vai avaliar a reabertura dos procedimentos disciplinares que tinha arquivado quanto a seis dos oito polícias condenados.

Após publicação deste artigo o Ministério da Administração Interna enviou ao DN o seguinte esclarecimento:

"Na sequência da notícia publicada na edição de hoje do Diário de Notícias, com o título "MAI suspende pena disciplinar a polícia que agrediu cidadão em tribunal", importa clarificar que o Ministro da Administração Interna determinou, por proposta da Inspeção Geral da Administração Interna, aplicar - e não suspender - uma pena disciplinar de 10 dias de suspensão, suspensa na sua execução por 1 ano.

A notícia induz, assim, a uma interpretação errada da decisão, uma vez que não existia uma pena aplicada que o Ministro viria a suspender por despacho. Pelo contrário, é o despacho do Ministro que aplica a pena, sob proposta de IGAI, ainda que suspensa na sua execução por um período de um ano."

Atualizado às 18h38 com o esclarecimento do MAI

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