Andreia Dias vive em Reading, cidade com cerca de 175 mil habitantes, a meia hora de carro de Londres. Trabalha como Senior Chemotherapy Nurse (enfermeira senior de quimioterapia) na King Edward Ward do Royal Berkshire Hospital. Tem 30 anos. Há dois, trocou o posto no Instituto de Oncologia de Lisboa por expetativas novas e alguma incerteza – emigrou. Por longos anos, é o mais certo. No Royal Berkshire Hospital, a enfermeira encontrou um salário duas vezes superior ao que recebia em Portugal. Progressão na carreira garantida, porque ali “a experiência é levada a sério, e tida em conta na ascensão profissional”. De resto, a portuguesa já subiu de escalão. Deparou-se, é certo, com turnos mais longos, porém, com mais dias de férias, tempo de lazer apurado à medida que os anos de serviço vão avançando. Sentiu o reconhecimento da profissão. Pelas chefias e pelos utentes. “Por uma população defensora dos enfermeiros e do sistema de saúde público.” O rol das vantagens elencadas fecha com um “objetivo essencial”, já atingido. “Vinte e quatro meses depois, pude comprar uma casa. Em Portugal, levaria anos.” Andreia trabalha com enfermeiros franceses, italianos, filipinos, do Zimbabué. Mas é aos portugueses, vários que ali encontrou, que reconhece maior “ambição”. “Noto uma cultura de querer fazer melhor. Mais em nós do que em outros”, diz. Está no país de Florence Nightingale (1820- 1910), inglesa nascida em Florença, Itália, filha de um milionário, aluna do prestigiado King’s College de Londres, a cidade onde cresceu, considerada a fundadora da enfermagem moderna num tempo em que era quase nula a assistência aos enfermos nos hospitais de campanha (estávamos na guerra da Crimeia) e a insalubridade aumentava ainda mais o número de mortes. Em homenagem, na data de aniversário da “Dama da Lanterna” – 12 de maio – celebra-se o Dia Internacional da Enfermagem. “Portugal continua a falhar-lhes” A contagem acumulada de 2010 até 26 de novembro de 2024 dá um total de 30990 enfermeiros emigrados. Em 2024, a Ordem registou 1444 saídas do país, menos 245 que em 2023(1689). Porém, foram mais os pedidos de certificados de carteira profissional europeia – de 113 em 2023, passaram para 130 em 2024. Distribuídos por Espanha (123), Luxemburgo (3), Bélgica (2), França (1) e Irlanda (1). De acordo com dados da Ordem dos Enfermeiros (OE), Suíça, Espanha, França, Bélgica e Reino Unido são os países europeus mais procurados. Mas destinos como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos recebem cada vez mais enfermeiros portugueses. .“Os enfermeiros continuam a sair do país porque Portugal continua a falhar naquilo que é essencial: criar condições para os manter cá”, acusa Luís Filipe Barreira. Lá fora, há oportunidades. Cá dentro, na opinião do bastonário da OE, “falta o reconhecimento, a estabilidade e a valorização real do trabalho que fazem”. Lembra “contextos de trabalho exigentes, poucas perspetivas de progressão, os contratos precários e salários desajustados à responsabilidade e à formação que têm”. Não esquecendo o que considera serem melhorias alcançadas nos dois últimos anos – “a criação do internato da especialidade, que está ainda em fase de implementação; e os aumentos e contagem de pontos aos enfermeiros do SNS, que nos dizem estamos a dar passos no caminho certo”–, tem a noção de que “ainda há muito por fazer”. Entende que a emigração não resulta de ambição mas da procura de sobrevivência profissional e que isso “deve envergonhar-nos enquanto país, porque quando não cuidamos de quem cuida, comprometemos todo o sistema de saúde”. Opinião partilhada por Gorete Pimentel , a presidente da direção do SITEU – Sindicato Independente de Todos os Enfermeiros Unidos, do Continente e Ilhas. Enfermeira obstetra, considera que, para quebrar e reverter a tendência, “é necessário respeito pelo trabalho dos enfermeiros e reconhecimento do valor do mesmo. É ainda indispensável que os anos de experiência sejam valorizados”. No entendimento da sindicalista, a organização do Serviço Nacional de Saúde é também um fator determinante. “Os enfermeiros não se sentem bem com a desorganização e promiscuidade nos financiamentos a que assistem diariamente. A fiscalização de procedimentos é um desejo dos enfermeiros: que haja seriedade nos procedimentos que se fazem em saúde e no que se paga a cada profissional pelos mesmos”, diz, pedindo “igualdade de exigência no serviço privado como há no público; que o público tenha conhecimento dos números do privado, dos salários que são pagos e do atendimento que é feito”. Luís Filipe Barreira olha para a situação portuguesa: “O país precisa de um verdadeiro consenso político em torno da saúde. Um compromisso para além de ciclos eleitorais, que coloque as pessoas no centro e que valorize quem cuida. A saúde não pode ser objeto permanente de combate político”, defende. No Dia Internacional da Enfermagem, quer dizer aos enfermeiros que o país já os vê. “Neste dia, mais do que flores ou palavras bonitas, importa deixar a certeza de que o futuro da saúde em Portugal precisa dos enfermeiros. Precisa da sua ciência, da sua proximidade e da sua visão. E é com eles que deve ser construído. Com mais justiça, mais valorização e mais respeito”. SNS: faltam cerca de 20 mil enfermeiros Em 2023, estavam inscritos na Ordem dos Enfermeiros 83.500 profissionais. Em março de 2025, estão registados no SNS 51826, mais 962 enfermeiros do que no período homólogo, traduzido num aumento de 1,89% (olhando para a década, de março de 2015 a março de 2025, passaram de 37.668 para 51.826). Guadalupe Simões, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, diz que “para além da questão da valorização da carreira, é mesmo importante que exista um sistema harmonioso de carreiras no SNS”. Recorde-se que o SEP recusou as propostas da ministra da tutela, Ana Paula Martins, não chegando a acordo com o ministério da saúde. “É inaceitável que o Governo tenha consagrado para os médicos e farmacêuticos que, no final da especialidade, comecem logo a ganhar pelo valor da categoria de especialista, e o mesmo não esteja consagrado para os enfermeiros”, diz a sindicalista. Para Gorete Pimentel, do SITEU – um dos sindicatos que chegaram a acordo com a ministra –, “não é difícil fixar enfermeiros”. Uma política de salários que valorize o trabalho dos enfermeiros, o cumprimento das leis, poria fim “à sensação de estarmos a ser explorados”. De acordo com a sindicalista, para além dos salários e dos horários sem folgas, a principal queixa dos enfermeiros “é a ausência de agradecimento e de reconhecimento, até por parte das chefias. O ‘salário emocional’ é muito importante”. Nos últimos dois anos, aumentaram os pedidos de escusa de responsabilidade. Em causa, a falta de enfermeiros para preencher as escalas de horários. Gorete Pimentel garante que os serviços de internamento ou de urgência estão com as dotações muito abaixo das necessárias para a segurança do utente e para a prestação de cuidados de saúde de qualidade”. De acordo com o SEP, faltam cerca de 20.000 enfermeiros ao SNS. Guadalupe Simões explica assim os pedidos de escusa de responsabilidade: “Desregulação dos horários aliado à falta de enfermeiros, equipas reduzidas e na sua maioria em burn out”. Mais responsabilidade clínica: “Falta de coragem política”No Reino Unido, Andreia Dias pode chegar ao topo de carreira sonhado. No país onde nasceu, não: “Em Portugal, o topo da carreira é ser enfermeiro-gestor, basicamente trabalho administrativo. Eu quero ser enfermeira prescritora”. O hospital onde trabalha paga-lhe as formações necessárias. “Na área da oncologia podemos ver doentes em consulta, podemos prescrever, pedir análises. Em Portugal temos de esperar pela requisição do médico”. Andreia Dias está a falar de doentes “muito estáveis, muitos deles a fazer quimioterapia há muitos anos, que podem perfeitamente ser seguidos por enfermeiros em clínicas semanais ou de 15 em 15 dias”, libertando os médicos. Luís Filipe Barreira concorda. “Os enfermeiros podem, e devem, assumir muito mais funções na prática clínica do que aquelas que hoje lhes são atribuídas. Em países como o Reino Unido, os Estados Unidos, o Canadá ou os nórdicos, os enfermeiros especialistas têm funções autónomas em áreas como a saúde comunitária, a gestão de doenças crónicas, a saúde mental, os cuidados paliativos ou a saúde materna e obstétrica. Têm competência para prescrever, para diagnosticar em áreas específicas e para liderar equipas. Em Portugal, apesar da formação altamente qualificada, continuam muitas vezes limitados por modelos organizativos ultrapassados.Dá o caso da saúde materna e obstétrica. Os enfermeiros especialistas em enfermagem de saúde materna e obstétrica têm formação específica, “reconhecida a nível europeu”, para acompanhar mulheres durante toda a gravidez, o parto e o pós-parto. “No entanto, continuam subaproveitados, muitas vezes sem autonomia para atuar de acordo com as suas competências devido à ausência de coragem para reorganizar os cuidados e à resistência de alguns setores da saúde, que continuam a defender uma visão hierarquizada e centralizada”. Da falta de coragem “para mudar o paradigma” resulta o desperdício “de recursos humanos altamente qualificados, a sobrecarregar outros profissionais e a não dar às pessoas os cuidados mais adequados e próximos que poderiam ter”.Para Gorete Pimentel, os acordos celebrados em 2024 com Ana Paula Martins permitiram “a valorização das grelhas salariais dos enfermeiros. “Este foi o primeiro DL que trouxe uma valorização a todas as categorias das carreiras de enfermagem dos últimos 30 anos”, defende a sindicalista. Para Guadalupe Simões, do SEP, “a melhoria foi bastante insuficiente”. “Importa não esquecer que o acordo é para ser aplicado em três anos e, entretanto, continua a compressão dos salários, comparativamente ao salário mínimo”, diz, identificando os problemas maiores da profissão: “Os salários são um problema, assim como a falta de perspetiva de desenvolvimento na carreira, seja na promoção (concursos) como referi anteriormente, seja na progressão, devido a um sistema de avaliação do desempenho completamente injusto e que, ao contrário do propósito para que foi criado, não diferencia o mérito. O absurdo do sistema vê-se no facto de as instituições nunca orçamentarem verba para as progressões meritórias. Uma falácia”. Relativamente à compensação do risco e à penosidade, o SEP “continua a defender como prioritária a alteração dos critérios que retirem os enfermeiros do regime geral”. Profissão de risco “Nenhum enfermeiro deveria ser obrigado a aposentar-se após os 60 anos”, defende Gorete Pimentel do SITEU. Explica: “Os enfermeiros estão no meio do furacão. Estão à cabeceira dos doentes. Poucas são as possibilidades de proteção de infeções bacterianas e víricas, cada vez mais resistentes”. Enumera os riscos: “São os enfermeiros que aspiram as secreções, os fluidos, as eliminações fisiológicas, que fazem tratamentos a feridas infetadas. Para além das doenças que adquirem, têm ainda o trabalho por turnos, no atendimento à pessoa doente”. Uma tarefa desgastante a nível físico e emocional: “Lidamos com a doença, com a morte, com os familiares dos doentes e dos falecidos, prestando o apoio emocional possível”. Luís Filipe Barreira acompanha a reivindicação sindical. “Não há reconhecimento da enfermagem como profissão de risco porque, infelizmente, ainda prevalece uma visão burocrática e desajustada da realidade do que é cuidar em saúde. Os enfermeiros lidam diariamente com contextos de elevado desgaste físico e emocional, exposição a agentes biológicos, turnos noturnos prolongados, situações de violência – e muitas vezes com decisões críticas em ambientes sob enorme pressão. Esta é, objetivamente, uma profissão de risco. E no entanto, esse estatuto continua a ser negado”.Recentemente, o bastonário levou o tema ao Ministério do Trabalho. “Preocupa-me muito. Há anos que os enfermeiros aguardam uma avaliação oficial. Porque reconhecer a enfermagem como profissão de risco não é simbólico, é um passo fundamental para proteger quem protege os outros. A razão pela qual isso ainda não aconteceu prende-se, acima de tudo, com a falta de vontade política. Porque assumir esse reconhecimento implica encargos orçamentais e sociais. Mas continuaremos a insistir”. Para Guadalupe Simões, do SEP, “só falta mesmo regulamentar as formas de compensação, porque desde 1996 que está na lei – Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros – que a profissão é de risco e penosidade, estabelecendo-se que a entidade empregadora, pública, social e privada, é responsável pelo especial risco a que os enfermeiros estão sujeitos.”