O relatório da Direção-Geral da Saúde (DGS) indica uma tendência decrescente no número de novos casos de VIH/Sida, mas Portugal continua a ser dos países com a taxa mais elevada de novos casos da UE. O que significa esta realidade para o presidente do GAT e para quem vive com a doença?.Devo começar por dizer que raramente me indigno, mas este relatório indignou-me..Porquê?.Não há nada no relatório que esteja factualmente errado. O que me indigna foi o que se escolheu mostrar destes dados. Ou seja, escolheu-se comparar os últimos 25 anos, desde 2000, ano do pico da epidemia em Portugal. E é claro que houve uma descida no número de casos, melhor seria que não tivesse havido. Mas, na realidade, e quando se olha para os países da Europa Ocidental que estão à nossa volta e para uma boa parte de outros países do mundo, observamos que houve um decréscimo abrupto do número de novas infecções, e não é isso que se está a verificar em Portugal. Todos os anos temos entre 700, 800 ou 900 novas infeções. Não estou a colocar em causa os números, o que digo é que é preciso saber porque é que o nosso país não regista uma quebra abrupta como os restantes..Isso quer dizer que Portugal não está a atingir os objetivos definidos pela Organziação Mundial da Saúde (OMS)?.O relatório refere, embora com menos destaque, o que são os compromissos assumidos por Portugal e pelo resto do mundo com a OMS em relação aos objetivos de desenvolvimento sustentável para a eliminação do VIH/Sida enquanto problema sério e grave de saúde pública. Mas Portugal não está nesse caminho. As classificações europeias, por exemplo, mostram o país ainda no vermelho. Portugal é o país da Europa com o número mais elevado de doentes em tratamento por 100 mil habitantes. Nós podemos mudar isto, mas é importante que não se seja complacente. O meu problema com este relatório da DGS é que parece ter escolhido só os indicadores que são favoráveis, não realçando o tanto que ainda temos para fazer. Esta é uma das minhas maiores críticas à maneira como o relatório está apresentado..O que ainda há a fazer?.Em primeiro lugar é preciso que haja liderança. Estamos sem diretor do Programa Nacional para as Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST)e VIH/Sida há dois anos, não é aceitável que um problema desta dimensão não tenha um diretor nacional. Sem isto é absolutamente impossível saber-se para onde é que estamos a ir e que caminho nos falta percorrer. É preciso um compromisso político para resolver os problemas do VIH/Sida. Muito poucos o sabem, mas o VIH/Sida é a doença individual que consome mais dinheiro aos hospitais portugueses, o mesmo que todos os cancros. Não existe outro paralelo em termos de impacto na economia, no sistema de saúde e na sustentabilidade deste. Não estou a atirar culpas para ninguém. É verdade que Portugal não está ao nível da situação que existe na África do Sul ou em Moçambique, mas deveria haver condições para que as coisas fossem feitas de forma a que a abordagem e o tratamento do VIH tivessem outro impacto. As IST e o VIH/ida têm de ser um desafio para a Direção-Geral da Saúde e para a política de Saúde, porque a nossa situação é séria. Não estamos todos a morrer, mas é séria e complexa. É preciso um compromisso político do Ministério da Saúde de modo a sabermos com o que contamos, o que investimos, em que parte é que a academia e as instituições públicas de saúde são envolvidas na resposta às populações e o que é definido como apoio à resposta da comunidade, o que vai para os cuidados primários e o que fica nos hospitais. Sem isto, sem uma estratégia e sem medirmos o que está a acontecer, diria que Portugal, e tenho praticamente a certeza, não vai atingir os objetivos mínimos a que se comprometeu com a OMS para 2030..Poderemos ter em 2030 mais de 75 mil pessoas em tratamento.Se nada for feito, que cenário teremos em 2030?.Não sou o melhor a fazer estimativas, mas daqui a cinco anos poderemos ter mais de 75 mil doentes em tratamento. E se Portugal não negociar com a indústria farmacêutica o preço dos medicamentos o seu custo não será sustentável para o SNS. Vamos ter uma população a envelhecer, como eu envelheci, mais cedo que o resto da população, porque somos considerados velhos a partir dos 50 anos, com mais infecções e problemas de saúde que exigem muitos gastos ao sistema. Não estou a falar em erradicar-se o VIH, mas do controlo da situação, para que o custo-benefício e o direito à profilaxia de prevenção, aos diagnósticos mais cedo e ao tratamento de todos, seja um indicador que não se perca de vista, senão não vai ser sustentável para o sistema de saúde. O primeiro mecanismo tem de ser a aposta na prevenção, os preservativos são a prevenção mais barata, mas só em 2023 se conseguiu distribuir sete milhões. É ótimo, mas se pensarmos nisto dá quase um preservativo por ano a cada português. Não pode ser. É verdade que muita gente não precisa de preservativos grátis, mas tem de haver um esforço para se reforçar ainda mais uma série de medidas de prevenção, como a profilaxia preventiva PrEP e a de exposição (para depois de uma relação de risco). O relatório da DGS diz que hoje temos cerca de seis mil pessoas com PrEP, mas se esta não for reforçada, daqui a cinco anos teremos muitos mais pessoas em tratamento..Voltando ao relatório, o que considera que este não mostra?.O relatório não realça que nos últimos 25 anos, ou se quisermos na última década, tivemos duas reformas na política para o VIH, que foram cruciais, e que na maioria dos países do mundo levaram a uma descida muito relevante da incidência, e que em Portugal isso não aconteceu. Foi em 2015, a introdução do conceito de que tratar é prevenir e, portanto, todas as pessoas beneficiam do direito de serem tratadas assim que tiverem o diagnóstico, e quanto mais cedo o tiverem, melhor - porque a sua esperança média de vida fica muito semelhante à da população geral, mas também, porque, enquanto tratado com sucesso, essa pessoa não transmite a infecção. Portanto, esta foi uma mudança 'major' para o mundo inteiro, mas em Portugal não vemos os seus reflexos, e deveríamos estar a vê-los. A outra mudança política foi em, 2018, quando chegou ao país, finalmente, a profilaxia de prevenção. Nos EUA isto aconteceu em 2014, em França em 2016, mas aqui chegou anos depois e num programa muito restrito e com um número muito limitado de pessoas. Esta medida para a prevenção do VIH em pessoas de alto risco, que devem tomar um comprimido por dia, como se fosse verdadeiramente uma pílula contraceptiva, levou nos países europeus, pelo menos naqueles que servem de referência, a um decréscimo ainda mais abrupto da incidência, de novos casos, em Portugal, até agora, isso não aconteceu. E o relatório não diz que o país ainda vive uma epidemia..Mas, concretamente, o que 'esconde'?.Alguns fatos. Os portugueses conhecem pouco e, às vezes, até quem está no próprio sistema de saúde, que Portugal ainda tem a epidemia mais grave da Europa Ocidental e Central. A maior, a mais grave e a mais complexa, e por muitos motivos, que vão desde a terrível situação das pessoas que injetavam drogas nos anos 90 até à nossa ligação à África Subsaariana, quer pelos portugueses que lá estiveram quer pelas pessoas destes países que vieram para Portugal. E isto porque na África Subsaariana temos um tipo de epidemia completamente diferente de VIH. É pandémica, sobretudo a nível da transmissão heterossexual. E em Portugal, este grupo de infetados é maior do que na maioria dos países europeus, mesmo em relação àqueles que também têm muita migração desta zona de África..Essa situação que ligou os portugueses à África Subsaariana ainda tem efeitos hoje? .Portugal teve centenas de milhares de pessoas a viver em África e a trabalhar lá. Esses milhares regressaram e ainda hoje estão a ser diagnosticados, tardiamente, sobretudo os homens. Por exemplo, no relatório esta epidemia não é identificada como tal, com esta relação a África, mas apesar de a transmissão não ser altíssima entre esta população heterossexual a questão é que tem levado muitos anos até que as pessoas sejam diagnosticadas, mantendo assim durante muito tempo oportunidades de transmissão, pelo menos até enquanto não foram diagnosticadas e tratadas. Felizmente que, depois, há acesso aos tratamentos, que em Portugal, em regra geral, são de boa qualidade..Todas as pessoas diagnosticadas têm acesso fácil aos tratamentos?.Às vezes, esperamos anos para ter acesso a um novo medicamento que nos faz falta e também isto poderia ser corrigido, se houvesse maior capacidade de negociação dos preços. Mas o balanço em relação às terapêuticas é extremamente positivo. E tratamos pessoas migrantes, mesmo as que estão em situação irregular, e, finalmente, já estamos a tratar pessoas que usam drogas. Portanto, há acesso universal aos tratamentos, desde que a pessoa passe todas as barreiras burocráticas e consiga chegar ao médico prescritor de um hospital..É preciso que medicação preventiva chegue à maioria das pessoas.Outra questão referida no relatório da DGS é o elevado número de diagnósticos tardios nos homens com mais de 50 anos e na população migrante. Como é que se pode chegar a estas pessoas mais cedo? .Há um grande trabalho que tem de ser feito nos cuidados primários de saúde. Isto é, quando aparece um utente que teve percurso na África Subsaariana ou em outros países endémicos, como na Ucrânia, que hoje em dia tem uma prevalência altíssima de infeções, deve ser proposto um rastreio ao VIH e às hepatites. Os cuidados primários devem organizar-se de forma a fazerem um esforço para termos estes diagnósticos. Costumo dizer que não há mulheres infectadas sem homens infectantes. Normalmente são mais as mulheres que vão aos cuidados de saúde, portanto há que fazer este esforço de diagnóstico para depois se trazer os homens ao rastreio, que tem de ser aumentado. No fundo, é implementar uma coisa que nos outros países é feito há muito tempo e que é recomendada como boa prática clínica, o rastreio para o VIH e às hepatites C, B e E, até através da despistagem de outras doenças como o Herpes Zóster a pessoas entre os 18 e os 50 anos, que não são consideradas de grupos de risco. Ou através da despistagem das IST a alguém que tem candidíases difíceis de tratar. A estas pessoas deveria ser feito rastreio..Assim seria possível detetar mais cedo as situações?.Isto faria com que encontrássemos este grupo de homens, acima dos 50 e heterossexuais, de que fala o relatório, mais cedo do que são agora. Basicamente são encontrados nas urgências hospitalares e praticamente a morrer. Para esta população e para a migrante que está regularizada era importante que estes rastreios fossem feitos logo nos cuidados primários. O segundo ponto, e penso que aqui deve haver pressão da própria sociedade civil e das organizações de imigrantes, é o conseguir-se que as pessoas que não estão em situação regular, que são algumas dezenas de milhares, tenham acesso aos rastreios, ao diagnóstico e ao tratamento. Os tratamentos são fantásticos porque evitam que as pessoas, depois de tratadas, transmitam as infecções, quando se fala da população migrante não estamos só a falar da que vem de África, da Ásia, mas também da Europa de Leste e da América Latina..Há grupos de risco que ainda estão fora do acesso aos rastreios e prevenção?.É essencial que os grupos de homens que têm sexo com homens (HSH) e o grupo de trans tenham a maioria da sua população coberta com a oferta de testes gratuitos para diagnóstico e da profilaxia preventiva, o que não está a acontecer. Temos uma geração mais velha que viveu a experiência devastadora da mortalidade, quase 100%, entre as pessoas com Sida, nos anos de 1980 e 1990. Mas ao longo destes 40 anos temos gerações que forma entrando na sua atividade sexual sem terem sequer acesso a campanhas informativas, essenciais para os grupos de risco. Por exemplo, um jovem que tem sexo com homens, embora com o mesmo índice de comportamento preventivo do que um jovem heterossexual – ou seja, usando preservativo e tendo o mesmo número de parceiros, etc - tem 40 vezes mais possibilidades de ser infetado com o VIH. Todos têm direito à prevenção e à informação, mas é óbvio que tem de haver uma prevenção intensa dirigida para estes grupos..Deixou-se de investir em campanhas de informação?.Quando é que viu numa televisão generalista a última campanha para a prevenção do VIH ou para a prevenção das IST? A última que vimos foi há muito tempo, passou na RTP2 e às duas da manhã. Logo aqui há algo que é preciso fazer. São precisas campanhas que se dirijam às mulheres imigrantes africanas, aos HSH e às pessoas trans, às pessoas que estão envolvidas no sexo comercial e às que usam drogas, etc. Todas estas pessoas têm necessidades e características muito diferentes e precisam de mais informação. O GAT tem criado centros e unidades móveis que são desenhados para apoio às necessidades de uma determinada população. Aceitamos toda a gente, especializámos médicos, enfermeiros, mediadores de saúde, técnicos comunitários de saúde, a dar respostas e a não serem moralistas, porque queremos espaços onde as pessoas se sintam seguras e onde tenham cuidados, mas sabemos que o que estamos a fazer não é suficiente. É preciso fazer mais para dar cobertura a todas estas populações..Em Lisboa ainda se espera seis meses a um ano por uma consulta para a PrEP.Lisboa é a região do país com mais diagnósticos, algo está a correr mal?.Lisboa é o centro da epidemia. Tem mais de 50% dos novos diagnósticos e o tempo médio de espera para uma consulta de PrEP é de seis meses, se a pessoa tiver muita sorte, ou de um ano, no caso de a agenda para a consulta só abrir no início do ano seguinte. Portanto, em Lisboa, o acesso às consultas nos hospitais por médicos altamente diferenciados. que tratam pessoas como eu, com VIH e muitas comorbilidades, é praticamente um funil, eu vejo o meu médico uma a duas vezes por ano. A complicar tudo isto há o facto de se ter que ir ao hospital fazer análises de três em três meses (para se saber se está infetado), levantar a medicação à farmácia hospitalar de dois em dois meses, se se tiver sorte. Imagine isto para pessoas que não estão doentes. Costumo dizer às pessoas para imaginarem, se uma mulher que quer ter acesso à pílula gratuita tivesse que ir ao hospital de três em três meses, fazer consultas e mais análises. Repare, uma pessoa com 20,22 25 ou 30 anos, que é saudável, mas porque tem uma vida sexual que o põe em risco, ter de fazer isto tudo. É impossível..Mas a PrEP só é dada nos hospitais?.A PrEP rebentou nos hospitais. Houve alguns, como o Curry Cabral, que tentou verdadeiramente dar resposta a todas as pessoas, mas atingiu um limite, porque também não tem recursos humanos..E os cuidados primários e as associações no terreno? .Finalmente parece que vamos ter luz ao fundo do túnel, fruto do trabalho da anterior Secretária de Estado da Promoção da Saúde, Margarida Tavares (e ex-diretora do Programa Nacional para as Doenças Sexualmente Transmissíveis e VIH/Sida). Estamos em negociações para que haja PrEP nas estruturas comunitárias que tenham capacidade para a fazer e vamos ter PrEP também nos cuidados primários de saúde, onde haja disponibilidade também para a fazer. Espero que isto nos faça passar dos tais cerca de seis mil, que refere o relatório, que tiveram pelo menos uma vez acesso à PrEP, no último ano, para aquilo que são as estimativas de pessoas que necessitam dela consistentemente, pelo menos 25 mil pessoas, para pararmos a transmissão. Mas, em termos de prevenção e de saúde pública, se há 43 mil doentes em tratamento, o número de pessoas a receber PREP deveria ser pelo menos o dobro. Isto não está no relatório e é uma lacuna em termos de trabalho na prevenção..Eram doentes e mortes até que poderiam ser evitadas?.O relatório diz que 40% das pessoas que morreram em 2023 estavam diagnosticadas há mais de 20 anos. É este o foco que coloca, mas não diz quantos dos outros 60%, morreram no primeiro ano a seguir a serem diagnosticados ou morreram nos primeiros cinco anos, o que seriam mortes completamente prevenidas se o diagnóstico fosse feito mais cedo. É nestas escolhas que digo que não se pode ser complacente, porque ainda há tanto para fazer em Portugal em relação à infeção VIH/Sida. Estamos piores que os outros países europeus à nossa volta, temos de ser rigorosos e mostrar a realidade. Mostrar o que foi feito, ter orgulho no que se fez bem e ver o que nos falta fazer..O que é importante dizer à população neste dia 1 de Dezembro?.É preciso dizer a toda a toda a população, sobretudo aos jovens, mas também às mulheres e aos homens menos jovens, que a sexualidade segura previne o VIH e as IST. Que é preciso reforçar a Educação Sexual nas escolas, que é prometida há 40 anos. O acesso à educação sexual deveria ser universal, quem não quiser tem a liberdade de não a estas aulas ou de não deixar ir os filhos, mas não podemos deixar que isso afete todos, porque a sexualidade é crucial para a vida da humanidade, e deve ser algo que traz prazer e felicidade, vivendo cada um como a entende. Ainda há estigma e precisamos todos que de saber o que é necessário para se ter uma vida sexual saudável e com menor carga de doença..Números.Em 2023, foram registados 924 novo casos de infeções de VIH/Sida, menos 65 que no ano anterior. E houve 111 óbitos devido à doença. Mas nos últimos 40 anos Portugal já registou 68 627 casos de VIH, dos quais 23 955 atingiram o estadio de sida. Neste período, opaís perdeu 15 918 pessoas.