Alterações climáticas, aumento da temperatura, fome... Estes são temas que são recorrentemente mencionados nos media e que fazem parte de encontros tão importantes e emblemáticos como a recente COP26. Então e a água? A gestão da água potável? Afinal, o ser humano consegue sobreviver alguns dias sem comer, mas não o consegue, de todo, sem beber..E a grande questão é que as alterações globais - não apenas as climáticas - já estão a condicionar não populações, mas sim regiões inteiras. África, América do Sul e mesmo algumas partes da Ásia já enfrentam, neste momento, dificuldades na obtenção de água potável em segurança. E o facto de a população estar a aumentar exponencialmente - as previsões apontam para 10 mil milhões de pessoas em 2050 - não ajuda. "Precisamos de conseguir ter mais água", afirmou, numa entrevista exclusiva ao Diário de Notícias, Loïc Fauchon, presidente do World Water Council, que esteve em Portugal por ocasião do ENEG - Encontro Nacional de Entidades Gestoras de Água e Saneamento. Um encontro organizado, de dois em dois anos, pela APDA ◘- Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas, e onde se debateram as "Dificuldades na gestão da água e a emergência climática: mudanças necessárias"..O aumento da população não é o único fator de preocupação, explica o ambientalista, que fala também da necessidade de mudança da forma de vida e dos comportamentos humanos. Nos países mais desenvolvidos, as pessoas, por um lado, consomem mais alimentos - que necessitam de mais água para a sua produção e confeção -, mas também utilizam outros tipos de produtos e serviços que precisam de água. Os carros, por exemplo. Sem esquecer que nestes países a água é como que vista como um dado adquirido, e por isso não há o devido cuidado no que respeita ao desperdício, refere..A Índia é, para Loïc Fauchon, um bom exemplo disso mesmo. À medida que o seu estilo de vida aumenta, o mesmo acontece com o consumo de água. "Isso é um problema para o presente; o clima é um problema para o futuro", constata. Aliás, "o clima - ou mais precisamente as alterações climáticas - não é o culpado de tudo". Antes disso há a ação do homem. Já o clima é uma consequência (das nossas ações)..A grande questão (ou problema) é que a maioria da população dos países desenvolvidos não está consciente deste problema da água potável. E isto porquê? "Porque têm água. Têm água suficiente", refere, perentório, o presidente do World Water Council. "A água é um dado adquirido, e por isso as pessoas não se lembram de quem não tem essa benesse." Mas aqui entra a "veia otimista" de Loïc Fauchon, que reconhece que as pessoas estão cada vez mais conscientes disso. "A consciencialização sobre as questões da água está a aumentar." Um ponto que, em sua opinião, é positivo - embora não suficiente. "Precisamos de explicar com maior precisão qual é a verdadeira situação", afirma..A solução passa por conseguir produzir/entregar mais água e, ao mesmo tempo, consumir menos. E aqui entra uma situação recorrente dos países desenvolvidos (apesar de também ocorrer nos países pobres): o desperdício de água..A questão da água potável e das reservas hídricas é que está, literalmente, a ser atacada pelo homem. Seja pela concentração da população nas megacidades, onde se torna difícil disponibilizar água, seja pela concentração da população em áreas onde não há as mínimas condições de água ou saneamento - e isso depois tem impacto ao nível da contaminação do solo e... da água..A verdade é que hoje uma grande parte da população mundial vive em condições sub-humanas. Basta pensar em Lagos, na Nigéria, ou em Jacarta, na Indonésia. São duas cidades onde há escassez de água e de ar. Há locais onde o ar está tão poluído que as pessoas nem sequer saem de casa. E isso significa também que não podem beber água porque esta está igualmente poluída..E o que podemos fazer para ultrapassar esta situação? Tudo começa, para Loïc Fauchon, em criar a consciência de que é preciso poupar água. E isto mesmo que tenhamos água suficiente nas nossas torneiras..Aqui, o presidente do World Water Council elogiou o papel dos operadores portugueses, que estão a partilhar conhecimento com os seus congéneres luso-africanos..Mas não basta a consciencialização - embora seja um bom primeiro passo. Mais do que "palavras", os governos têm de passar à ação e assumir a água como topo das suas prioridades. E isso significa, entre outras coisas, definir e estabelecer medidas que protejam a água..Quanto às pessoas, individualmente, tudo começa com "aprender a não desperdiçar". E aqui as crianças têm um papel importante a desempenhar, reconhece Loïc Fauchon, dado que "muitas vezes as crianças aprendem mais rapidamente do que nós". E atenção, que o desperdiçar não é apenas em casa, alerta. "É também nos campos de desporto, nos campos agrícolas... em todo o lado.".Por outro lado, há que investir na redução das perdas. Aquela água que passa despercebida e que, ao final do mês, representa vários litros que não foram aproveitados. Só para se ter uma ideia, estudos indicam que há cerca de 40% de perdas no sistema de água. "Por vezes esse valor é ainda mais elevado", afirma o ambientalista. Só a diminuição destes números já seria uma grande vitória. Portugal está muito à frente nesta matéria, com as perdas a rondarem os 25%, reconhece o presidente do World Water Council, comparando o nosso país com Nova Iorque, onde as perdas chegam a ser de 50%. Mas os Estados Unidos, constata, têm uma abordagem algo religiosa à gestão da água. "Dizem que vem do céu e que ao céu retorna. Embora agora estejam a alterar essa filosofia.".A questão da diminuição das perdas é da responsabilidade dos operadores. Que, afirma mais uma vez Loïc Fauchon, em Portugal são muito proativos. "Talvez não saibam, mas Portugal é bem conhecido pela sua gestão da água.".É claro que há sempre pontos a melhorar. A agricultura, por exemplo, que é responsável por cerca de 75% do consumo de água mundial. É preciso que haja uma evolução no uso mais racional da água, mas isso vai levar tempo. "Não estou preocupado com Portugal", afirma Loïc Fauchon, acrescentando que o nosso país não só tem suficientes recursos hídricos como está a usar a inovação na gestão da água..Ainda quanto ao futuro - e o que é preciso fazer -, o presidente do World Water Council aponta a tecnologia de dessalinização e a reutilização da água. Ou seja, purificar a água por forma a reinjetá-la na rede, "primeiro para a agricultura, e depois, passo a passo, para uso doméstico". Esta será, para o ambientalista, uma das revoluções deste século: a reutilização da água. Que permitirá facultar mais e mais água a mais e mais pessoas..Embora haja, de ano para ano, de COP para COP, um aumento da consciencialização da importância de tratar o tema da água, Loïc Fauchon reconhece que o último encontro - no mês passado - não foi muito positivo. Isto porque a água não entrou no âmbito da COP. "Não têm como missão propor soluções para a questão da água. Mas deviam, porque tudo está interligado." Ao fim de mais de uma década de participação em várias COP, o ambientalista diz que, apesar de tudo, "agora reconhecem que falar de água é falar de clima". E só essa "ligação" levou 10 anos. Isso significa que a água entrou nas medidas de adaptação - mas não foi colocada no centro do problema. Esse protagonismo pertence às emissões de carbono, ao metano.....E o que é que isto significa na prática? Dinheiro doado aos países pobres para terem um maior desenvolvimento ao enfrentarem as evoluções climatéricas..E esse é talvez um dos principais erros de todas estas medidas, diz Fauchon. "A água (a par do ar) deveria ser colocada no centro, no topo de todas as medidas de combate às alterações climáticas." E porque é que isso não acontece? Porque a água "é política". "É tudo uma questão política. Porque não se trata de uma questão técnica ou mesmo tecnológica. Essas soluções já existem (ou estão muito perto de entrarem no mercado). O problema da água é não ser uma prioridade política. Precisamos da vontade política para tornar a água numa prioridade.".É certo que, ao longo dos tempos, já houve guerras à volta da posse de reservas hídricas. Mas esse não é um tema que preocupe em demasia Loïc Fauchon, porque, refere, em todos os conflitos houve o cuidado de proteger a água..Mesmo assim, reconhece, a zona do rio Nilo, que abarca o Iraque, Síria, Turquia e Egito, é hoje talvez das zonas mais sensíveis, embora haja tensões em mais partes do globo..Aqui a única solução, reconhece, passa pelo diálogo. "Não podemos permitir guerras por causa da água", afirma, acrescentando que não acredita que isso de facto possa ocorrer. Porque, mesmo no passado, "quando houve a guerra entre a Índia e o Paquistão, por exemplo, houve sempre o cuidado de preservar os recursos hídricos"..dnot@dn.pt