O Observatório de Mulheres Assassinadas divulgou a semana passada um relatório em que revela que um terço dos femicídios ocorridos em Portugal - 25 mulheres mortas de janeiro até 15 de novembro -, ocorreu no âmbito de relações de violência que já tinham levado à queixa na polícia. O estado está a falhar na proteção a estas mulheres? A celeridade é uma das grandes falhas do sistema de justiça. Quando falamos especificamente de violência doméstica, a celeridade da intervenção do sistema é extraordinariamente importante. É de reconhecer que tem havido um esforço dos diferentes grupos profissionais que contactam com esta realidade, e aqui estamos essencialmente a falar do Ministério Público e das polícias. Mas não chega. Em segundo lugar, há ainda um problema de articulação entre os vários intervenientes no processo, das polícias à Segurança Social. Por último, ainda que cada vez menos há casos em que o discurso da vítima não é levado a sério. Mas é importante dizer isto: desde que bem aplicado, o sistema funciona maioritariamente bem..A falta de formação ainda é um problema? Não digo que isso não seja verdade, mas antes de haver formação tem de haver procedimentos. E, na verdade, os procedimentos para a intervenção destes profissionais são recentes. Foram estruturados em 2021, com a elaboração de um manual sobre a intervenção da polícia nas 72 horas subsequentes à receção de uma denúncia por violência doméstica. Porque é nessas 72 horas que muito se joga. É aí que não se pode falhar. O próprio Ministério Público tem, desde 2019, uma diretiva específica na área da violência doméstica, que dá indicações aos magistrados sobre como intervir numa investigação criminal neste contexto..Os procedimentos estão a ser aplicados? A questão é mesmo essa - a execução dessas recomendações. Tardamos em ver resultados concretos. Não estou a dizer com isto que as recomendações caem todas em saco roto, mas há falha na articulação. O que tem sido mais patente na análise retrospetiva destes processos é que a articulação entre os vários agentes do Estado por vezes falha. Dito isto, é bom ter noção do número elevadíssimo de denúncias em contexto de violência doméstica, e refiro-me a denúncias que dão origem a um processo de crime. São cerca de 30 mil por ano, o que significa que o crime de violência doméstica é o crime contra pessoas mais participado em Portugal. Isto ajuda a compreender alguns atrasos, mas não os desculpa. 25 mortes são 25 mortes, aí não há outra leitura a fazer: em alguns desses casos, designadamente naqueles em que o crime já havia sido participado às autoridades, o sistema não atuou como devia, ou com a celeridade com que devia..Os homicídios, em contexto de violência doméstica, mantêm-se entre 20 e 25% dos homicídios dolosos por ano? Sim, são esses os números. Quando a polícia recebe uma denúncia de violência doméstica, há uma série de procedimentos específicos, procedimentos que não se aplicam a outras formas de criminalidade. Avaliação do risco, atribuição do estatuto de vítima especialmente vulnerável, encaminhamento para serviços de apoio, elaboração de um plano de segurança, etc. O mesmo se diga, por exemplo, para o Ministério Público. Tudo isto consome tempo e recursos. Perante isto, de que é que precisamos? Priorizar casos. As 30 mil denúncias não têm todas a mesma gravidade e, sobretudo, a mesma urgência..Quer dizer que a avaliação de risco está a falhar? A avaliação de risco está implementada, e não digo que a roda não esteja a andar. É preciso perceber que na violência doméstica estamos a falar muitas vezes de prazos muito curtos, de um dia, de dois dias, de horas, e o sistema ainda não consegue dar a resposta imediata que devia dar. O instrumento tem uma série de lacunas, foram já identificadas..Quais? Em primeiro lugar, é pouco abrangente, na medida em que apenas mede o risco de morte para uma mulher vítima em situação de relação íntima heterossexual, o que deixa de fora muitas outras situações de violência doméstica. Para além disso, o instrumento precisa de ser mais facilmente ajustável ao caráter dinâmico, permanentemente mutável, das situações, e também por essa razão está atualmente a ser revisto..Os prazos estão na lei: 72 horas para a polícia recolher indícios probatórios e enviar para o Ministério Público, devendo depois o Juiz de Instrução, em 48 horas, ponderar a aplicação de medidas de coação. São estes os prazos que resvalam? São esses. E esses são momentos cruciais..Voltando aos dados do Observatório de Mulheres Assassinadas: dois terços das que perderam a vida não entraram em contacto com o sistema. Muito preocupante. Significa que ainda é preciso fazer muito trabalho, quer com as próprias vítimas, quer com todos nós enquanto cidadãos, que temos conhecimento disso, no sentido de sensibilizar para a denúncia..Referiu há pouco a questão da credibilidade da vítima. O que se tem avançado nesta matéria? Acredita-se que cada vez mais. Só acreditando e reconhecendo a vítima como tal e na sua narrativa se pode passar às fases seguintes e a avaliação do risco..Há falhas na aplicação da legislação, porém, a legislação em si é suficiente? Podendo precisar de algumas afinações, a legislação tem vindo a tornar-se cada vez mais robusta. A lei da violência doméstica é de 2009, é uma lei relativamente recente, mas já teve várias alterações. E apesar de terem surgido algumas sobreposições, tem sido melhorada..Estão agora em debate na AR propostas de melhoramento. O acesso ao apoio judiciário é uma dessas sobreposições? A lei já facilita esse acesso, e se compararmos com vítimas de outros crimes, porventura até crimes mais graves, podemos falar numa certa injustiça relativa. As vítimas de violência doméstica, neste momento, já beneficiam de isenção de custas e de uma presunção de insuficiência económica para efeito de nomeação de advogado. Portanto, até aí estamos a andar bem..Aquilo que se pretende agora é que esta presunção não possa ser elidida.Que a vítima de violência doméstica seja sempre elegível para apoio judiciário gratuito. Porém haverá aspetos onde a lei apresenta mais lacunas. Nomeadamente, quando se trata de um processo cível. Sabemos que estas vítimas, na sequência da rotura da relação, vão normalmente passar por um divórcio, pela regulação das responsabilidades parentais, eventualmente por uma partilha judicial de bens, e para isto não têm este apoio judiciário gratuito. E os critérios de candidaturas a esses apoios são muito restritivos. Uma decisão recente no Tribunal Constitucional sobre esta matéria diz-nos basicamente que só acedem à Justiça os ricos ou os indigentes..Falta mais intervenção da sociedade civil em fóruns de decisão? Têm menos intervenção do que deveriam ter. Ainda assim, a parceria entre Estado e sociedade civil na área da violência doméstica funciona. Se há uma continuidade de políticas públicas, na área do crime, é com certeza na das vítimas de violência doméstica. As polícias estão cada vez mais no terreno, em conexão com a comunidade, com as organizações, com o Ministério Público. O Ministério Público tem sido, e deve continuar a ser, um motor importantíssimo numa resposta cada vez mais eficaz, mais esclarecida. Porque, repito, se continuam a morrer mulheres, incluindo depois de contactar o sistema, alguma coisa está a falhar..A legislação portuguesa está alinhada com as mais avançadas? No âmbito da violência doméstica, diria que estamos alinhados com as exigências europeias. .O mesmo não se pode dizer se falarmos do crime de violação. É urgente reforçar legalmente a relevância do consentimento na classificação do crime? Falamos de um crime com cifras negras elevadíssimas. Aí, sim, a legislação portuguesa não está ainda devidamente alinhada com as exigências designadamente da Convenção de Istambul. Alguns países já deram esse passo, considerando que para o cometimento do crime de violação deve bastar a exigência do elemento típico falta de consentimento. A lei portuguesa ainda obriga à existência de constrangimento. Ora para muita jurisprudência nacional, o constrangimento ainda é entendido como algo que passa apenas pela utilização da força. O que é muito redutor e penalizador para a vítima..Em contexto de intimidade, as vítimas identificam hoje melhor o crime de violação? Essa é muitas vezes e compreensivelmente a esfera da violência que a vítima de violência doméstica tem mais dificuldade em descrever. É a que referem em último lugar..Instituições como as polícias e Justiça são de alguma forma mais tolerantes com o agressor do que deveriam? Não temos dados estatísticos sólidos que nos permitam fazer uma avaliação a esse nível. Porém, estou a pensar, por exemplo, na demasiado elevada quantidade de penas suspensas. Ainda que dessa suspensão resultem certas obrigações da pessoa agressora e um controlo apertado, pode ser um indicador objetivo de alguma tolerância do sistema de Justiça. Outro dado tem a ver com o flagrante delito. Com uma detenção em flagrante delito o processo pode ser tramitado sob a forma sumária. Ora em 2023, foram detidas cerca de 2500 pessoas agressoras por crime de violência doméstica. Dessas, 40% foram em flagrante delito. Teríamos aqui à volta de mil e poucas situações que poderiam, pelo menos em tese, tramitar de imediato. Nada. São raríssimos os casos em que isso acontece. Não há explicação para isto..A perceção de que os processos de palavra contra palavra acabam em nada é correta? É um mito que importa desconstruir: temos jurisprudência , em contexto de violência doméstica, em que o testemunho da vítima foi considerado suficientemente credível para fundamentar uma condenação..Quais são as principais barreiras que as vítimas ainda enfrentam para denunciar crimes e procurar ajuda? Um dos grandes obstáculos à denúncia é o medo. O medo da retaliação, o medo das repercussões. O medo de ser desacreditada, de ser estigmatizada. Nós ajudamos a desconstruir esse medo..As vítimas ainda denunciam tarde demais? Cada vez mais cedo. As mulheres - e digo mulheres porque dados do relatório de segurança interna de 2023, do bolo todo de violência doméstica, mais de 80% dos casos são violência sobre mulheres - viviam 20, 30 anos em contexto de violência. Já não é assim. Devo até dizer que os filhos têm aqui um papel motivador para a queixa..Estudo Nacional Violência no Namoro (UMAR 2024): em relação a 2023 nota-se um aumento na legitimação de comportamento de controlo, perseguição e violência física. Chegam a APAV denúncias no âmbito de namoro? Chegam algumas. Mas a perceção ainda não a que deveria ser. Há uma legitimação latente. Esse é um problema grave que está a intensificar-se..O aumento da imigração e das migrações em contexto de vulnerabilidade traz desafios acrescidos no apoio a vítimas? A APAV trabalha com vítimas de várias nacionalidades a que temos de dar resposta. Trata-se sobretudo da comunidade brasileira, até pela facilidade de comunicação, no entanto chegam-nos vítimas de todas as nacionalidades, religiões e culturas. Já recebemos mulheres de hijab..Tem havido aumento dos crimes de ódio e discriminação? A constatação é de que o discurso de ódio e violento tem alargado a sua presença e é objetivo da sua normalização num quadro de divisão das sociedades e de ataque a direitos fundamentais e humanos. Não se verifica ainda esse aumento, mas muitas das suas vítimas não se queixam, nem procuram ajuda por não confiarem e acreditarem nas respostas institucionais..Que iniciativas de sensibilização social têm sido mais eficazes para a APAV? O crime de violência doméstica é um caso a reter. A consciência social é grande, há uma intolerância crescente face ao fenómeno, traduzida no número de denúncias..Quais são as principais prioridades da APAV atualmente? Um dos focos da nossa intervenção imediata é motivar para a denúncia. As vítimas encontram-se em estado de grande fragilidade. A pior coisa que pode acontecer a uma vítima neste estado de fragilidade é sentir que feita a denúncia está de novo sozinha, sem saber o que fazer. A APAV está lá..A associação está preparada para enfrentar novos desafios na área de apoio às vítimas de crime?Em 2020, atendemos 66.408 pessoas. Em 2023, 93.254, consolidando uma subida gradual. Assistimos 16.185 vítimas, com a enorme relevância da violência doméstica - cerca de 75,8 por cento do total. Temos 18.540 utentes. Fizemos 1.566 atividades formativas. E este é um trabalho contínuo.