Por que motivo é que se foi escolhido o dia 23 de agosto como o Dia Internacional de Recordação do Tráfico de Escravos e da sua Abolição? No meu entender é uma “malandrice” da UNESCO. Em 1791, em plena época da Revolução Francesa, numa colónia francesa, que hoje em dia se chama Haiti, mas que na altura se chamava Saint-Domingue, estalou uma grande revolta escrava, que começou na noite de 22 para 23 de agosto. Foi um pandemónio durante imenso tempo no Haiti, que viria a tornar-se independente e a atribuir a si próprio o nome de Haiti, em 1804, 13 anos depois. O próprio Haiti e outros países africanos, sobretudo Senegal e por aí fora, gostam de dizer que foi esta revolta escrava que provocou a abolição do tráfico de escravos. Em minha opinião, é mentira. O tráfico de escravos foi abolido por países ocidentais tempos depois, muitos anos depois. Em Inglaterra em 1807, em Portugal em 1836, e por aí fora. Aliás, na minha opinião, esta data devia ser assinalada no dia 25 de março, porque foi nesse dia, em 1807, que os ingleses aboliram e levaram outros países a abolir a escravatura. Foi esse o momento essencial na luta contra o tráfico de escravos..A escravatura não é uma invenção portuguesa do século XV. A escravidão é uma velhíssima instituição, não foi inventada pelos europeus quando chegaram a África. Aliás, a escravidão é que é regra, não é a liberdade. Ao longo dos milénios a escravidão sempre existiu. Existiu no Oriente, na Coreia, na China, na América, antes de chegarem os descobridores, na Europa. No tempo do Império Romano, para ter uma ideia, calcula-se que o tráfico de escravos tenha andado, pelo menos, na ordem dos 100 milhões de pessoas. Pense que o tráfico, através do Atlântico, o tráfico de negros africanos para as Américas, foram 12 milhões e meio. No Império Romano a esmagadora a maioria eram brancos. Era difícil atravessar o deserto do Saara, os dromedários ainda não estavam domesticados e, portanto, não havia maneira de passar para chegar até à zona que os negros habitavam. Por outro lado, havia uma disponibilidade, logo ali, através das guerras, daquelas populações germânicas, depois eslavas. Repare que a palavra escravo vem de eslavo: são os russos, os polacos, os atuais lituanos e ucranianos. Eram os escravos..O que aconteceu no século XV? Deu-se ali uma coincidência de duas coisas dramáticas para os negros. Por um lado, os mercados que abasteciam de escravos toda a zona do Mediterrâneo e o mundo muçulmano, com a conquista de Constantinopla, com o avanço dos turcos para essa zona, para a zona do Bósforo, da Grécia, da Península Balcânica, cortaram o acesso ao Mar Negro, de onde vinham a maior parte desses escravos brancos. E, portanto, eles deixaram de chegar à Europa. E depois houve também a expansão marítima..Qual era o critério para escravizar uma pessoa? Muitos dos escravos eram crianças abandonadas. Era frequentíssimo. O abandono das crianças, na antiguidade, alimentava a escravidão, porque havia gente que tomava conta delas para depois as vender. [Havia] a guerra, o abandono, pessoas que, para não morrerem de fome, se entregavam como escravos de alguém para poderem comer. Isso em África, por exemplo, era comum. Nas zonas de seca, como Angola, isso não era invulgar. Em certas zonas também havia escravidão relacionada com crimes. E por dívidas, as pessoas entregavam-se a si próprias ou membros da sua família, um filho, por exemplo, como escravo. A escravidão teve várias fontes a alimentá-la. No século XV, para voltar à sua pergunta, ao mesmo tempo que os turcos otomanos cortam o abastecimento de cristãos e a passagem de cristãos para a zona do Mar Negro, e, portanto, cortam a chegada de escravos vindos nessa zona, os portugueses estão a avançar ao longo da costa da África..Com a expansão marítima? Exatamente. Estão a fazer o início dos Descobrimentos e vão encontrar em África gente disposta a vender. A terceira razão, que ainda estimula mais a escravização é a descoberta da América, que exige mão de obra. Portanto, já não chegam escravos brancos vindos do Mediterrâneo e vindos da zona do Mar Negro. Mas há disponibilidade em grande número de escravos negros e são muito necessários nas Américas. .Também foram escravizadas pessoas nas Américas, correto? Sim, mas o problema é que não resistiam e morriam massivamente. Coisas que para nós, enfim, não eram mortais como certos vírus, por exemplo a gripe, para eles, que não tinham qualquer tipo de defesa imunológica, foi um desbaste enorme. Segundo, eram populações que não conheciam ainda a agricultura, nem o trabalho em metais, nem o próprio trabalho. Resistiam, trabalhavam mal, fugiam, morriam por recusa do trabalho. Além disso, conheciam bem o território, o que lhes permitia escapar. No caso dos africanos, ao princípio parece uma coisa ilógica, não é? Atravessar o Atlântico para ir buscar gente quando se tem gente ali na América. Mas, de facto, era essa a razão. Os africanos estavam disponíveis, já conheciam eles próprios a escravidão. Já existia em África e era largamente usada a compra e venda de pessoas e a exploração de pessoas para vários fins: para trabalhar na agricultura, para sacrifícios humanos, para serem sacrificados em festas. Isso foi uma prática que se manteve até praticamente ao século XX, até a época do colonialismo. E era mais barato. Eram comprados muitas vezes com coisas que na Europa tinham escasso valor, mas que em África tinham um valor muitíssimo alto..Como por exemplo? Os têxteis que os europeus disponibilizavam, que eram melhores do que os que conseguiam fabricar em África. O álcool, a aguardente, por exemplo, que era muitíssimo apreciado em África. O tabaco também, em certas zonas da África. As armas, a pólvora. Criou-se ali uma complementaridade. Era vantajoso para os ocidentais e era vantajoso para os chefes. Para os escravos não, claro. Mas era vantajoso para os chefes africanos porque aqueles produtos que vinham da Europa garantiam poder e prestígio social..E também houve um movimento de pessoas escravas vindas da rota da Índia, não foi? Houve, mas pouco. O Camões teve um escravo javanês, o Jau. Mas o grande movimento da escravatura portuguesa é realmente esta rota atlântica do século XV-XVI, que ficou até o século XIX..Mas antes disso já havia escravatura em Portugal. Já. Eram, por exemplo, os escravos mouros. A parte das populações que foram vencidas. Já tinha havido escravatura no tempo dos romanos. Para ter aqui uma perspectiva mais aproximada, quando Portugal se formou como nação, como Estado independente na Idade Média e que depois expandiu o seu território através da Reconquista de terras para o Sul, até ao Algarve, parte da população vencida, muçulmana, ficou escrava. Antes de os escravos negros terem chegado a Portugal, já cá estavam os escravos mouros..Ou seja, foi um movimento que nunca parou até ao século XIX, à abolição? Decretada pelos países ocidentais, sobretudo pela Inglaterra. E que, em minha opinião, para voltarmos ao princípio da conversa, nada tem a ver a revolta de escravos do Haiti. Pelo contrário, muitas vezes o que acontecia é que essas revoltas de escravos faziam endurecer a repressão. Aqui em Portugal, a abolição nada tem a ver com qualquer revolta escrava..É reconhecido o papel do Marquês de Pombal nas primeiras reformas em relação à escravatura. A pessoa importante, que é sempre esquecida, o abolicionista, é o Sá da Bandeira. O Marquês de Pombal é mais por razões de humanidade e porque no século XVIII já havia alguma contestação entre as pessoas educadas, porque aquilo era uma brutalidade enorme e as pessoas começavam a ter notícia do que se passava: as condições de transporte, as condições de exploração daqueles desgraçados nas plantações ou nas minas e, portanto, havia já um movimento de contestação do tráfico de escravos e da escravidão. E o Marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII, aboliu o tráfico de escravos, mas apenas aqui para o território metropolitano. E aqueles que vinham para o Portugal Europeu eram uma minoria..Mas aqui, pelo menos em Lisboa, as populações nobres ou mais abastadas tinham escravos. Tinham, mas não muitos. Era sobretudo gente que vinha das colónias, que vinha do Brasil ou que vinha de Angola e que trazia os seus escravos para a Europa. Não era comum, nessa altura, uma pessoa que nunca tinha saído daqui ter muitos escravos. A partir do Marquês de Pombal passou a ser impossível tê-los. Porquê? Porque, por um lado, passou a ser impossível trazê-los para cá e, por outro, para os que já cá estavam ele fez uma outra lei, em 1773, que vai libertar os filhos das mulheres escravas. Ao fim de uma geração, essas pessoas tornaram-se livres. Foi a chamada Lei do Ventre Livre. No século XIX, Sá da Bandeira, que é o grande abolicionista português, vai decretar o fim do tráfico de escravos em 1836. Depois, com várias leis sucessivas, entre 1853 e 1875, foi-se abolindo a escravidão nas colónias, mas o Brasil já era independente..Mas o número de escravos transacionados, o total, inclui Brasil e Portugal. Foram os americanos e um inglês que fizeram essa tabela. E tiveram a infeliz ideia de juntar os números do Brasil e de Portugal. Também juntaram os números do Uruguai e Espanha. Mas, em contrapartida, não juntaram os números dos Estados Unidos e Inglaterra. Isto é enganador para quem lê. Quem olha para aquela tabela vê 5,8 milhões de escravos transportados… Depois os ativistas começaram a dizer que Portugal tinha enviado para o Novo Mundo mais de seis milhões de pessoas. Mas aquilo é um número que junta Portugal ao Brasil..É um número enviesado, até porque a escravatura continua no Brasil já depois da independência. Muito enviesado! E o Brasil independente continuou a fazer tráfico de escravos, até aos anos de 1850. Mas nesses 30 anos, em que se separou de Portugal até proibir a entrada de escravos no seu território, o Brasil importou 1,3 milhões de escravos. E esse número entra nos dados de Portugal. Portugal, de facto, é responsável por 4,5 milhões..Qual é a data oficial da abolição da escravatura em Portugal? Sá da Bandeira fez a coisa às prestações. Os escravos tornavam-se libertos mas ainda obrigados a trabalhar durante alguns anos. Portanto, a data em que a escravatura acabou foi 1869 mas alguns desses escravos ainda ficaram obrigados a trabalhar até 1875..Porque é que não ficaram logo livres? Havia dois métodos para libertar os escravos. O método que seguiram os franceses, ingleses, holandeses, que era indemnizar os proprietários. Depois, a segunda modalidade, era fazer a coisa de forma gradual para que os donos dos escravos pudessem continuar a usar o seu trabalho até eles se tornarem maiores, aos 20, 25 anos..Quando ficavam livres eram entregues à sua sorte? Como é que se inseriam na sociedade? Não, não ficavam entregues à sua sorte. Os que eram capturados, por exemplo, num navio negreiro, não iam de novo para África porque isso seria reintroduzi-los no circuito. O que é que se fazia a essa gente? Passavam por um período de aprendizagem, normalmente de sete anos, durante o qual aprendiam um ofício, como carpinteiro, marceneiro. Findo esse período de aprendizagem eram livres mas com uma possibilidade de puderem ganhar a vida..Fiz uma visita em Lisboa [ver página 14] onde nos foi dito que as escravas eram sobretudo domésticas e que os escravos eram aguadeiros ou faziam os despejos de excrementos. Era assim que sucedia. Aqui não se produzia açúcar nem tabaco. Por exemplo, no Brasil, em que se produzia açúcar, o escravo tinha um trabalho duríssimo. Era um trabalho contínuo porque no momento em que a cana é cortada tem de ser processada no máximo em dois dias, senão o suco azeda e deixa de ter interesse. Era um trabalho exaustivo, trabalhavam o dia todo, em turnos. Nas cidades os escravos usavam-se de outra forma: como domésticos, tratavam das famílias. E havia os escravos de ganho, que eram os escravos que as pessoas alugavam para fazerem trabalho. As mulheres muitas vezes para prostituição e os homens para carregarem coisas. Em algumas situações, o escravo podia ficar com uma parte do que ganhava. Isso dava-lhes, por acumulação, adiante, a possibilidade de puderem comprar a sua liberdade..Qual foi o primeiro país a abolir a escravatura? No mundo colonial foi a França, mas foi uma abolição intermitente. Foi em 1794, mas depois Napoleão, em 1802, restaurou a escravatura..A escravatura foi abolida mas no século XX, no Ultramar português, por exemplo, havia pessoas que não sendo escravas trabalham num regime de quase escravatura. Sim, sem dúvida. A escravatura é que é o vulgar. A escravização dos outros é o comum ao longo da história. A sua supressão e ilegalização é recente. E se, por qualquer razão, o Estado amaina a sua posição, ressurge. Nós até vemos aqui, de vez em quando, que há notícias, em Portugal de gente escravizada. .Qual foi o último país do mundo a acabar com a escravatura? Mauritânia, a acabar legalmente, já em pleno século XX [1981].