João André: "A multiculturalidade, mais do que ser vista como uma fonte de conflitos, deve ser vista como uma riqueza potencial"

"Vulnerabilidade, hospitalidade e cuidado em contextos de diversidade cultural" é o título de mais uma palestra do ciclo Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. A conferência de João André, professor na Universidade de Coimbra, pode ser vista esta segunda-feira por Zoom às 18.00 horas.
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Portugal tem sido um bom exemplo na Europa em relação aos refugiados?

Penso que Portugal tem manifestado uma boa disponibilidade para o acolhimento de refugiados, nomeadamente nesta fase que envolve os refugiados ucranianos. Essa disponibilidade, parte, por um lado, de decisões políticas, mas prolonga-se, por outro lado, na mobilização ativa dos cidadãos para a receção dos refugiados. No entanto, esse é apenas o primeiro passo no acolhimento dos refugiados. Atendendo à vulnerabilidade que os caracteriza, resultante da sua deslocalização, da quebra das suas redes afetivas, do contacto com culturas diferentes, da necessidade de expressão numa outra língua, o espírito de abertura deve ser complementado por novas medidas que visem sobretudo a capacitação e o empowerment das pessoas para uma cidadania plena, marcada pela autonomia, pela liberdade e pelo exercício pleno dos seus direitos. E a esse nível talvez ainda haja um longo caminho a percorrer.

Sente diferenças no sentido de hospitalidade em função das origens dos refugiados?

Este é talvez o aspeto mais crítico da política europeia de acolhimento de refugiados. Porque tal acolhimento exige a capacidade de exercício de uma hospitalidade incondicional, que não pode ser marcada por discriminações em função da nacionalidade de origem, da cor da pele, de características étnicas ou de diferenças culturais. Pouco tempo antes de começar a guerra na Ucrânia, os refugiados provenientes de países árabes ou do continente africano ficavam suspensos entre dois mundos, aguardando, no Mediterrâneo, uma morte anunciada. Não podemos deixar de nos interrogar sobre as razões que justificam a abertura e a mobilização conseguida para acolher refugiados ucranianos e o modo como são tratados os migrantes que chegam em frágeis embarcações à costa europeia, morrendo em praias ou no alto-mar ou sendo muitas vezes recambiados para os seus países de origem. Todos são seres humanos e não há seres mais humanos do que outros em função das marcas de origem que transportam no rosto, na pele, nos olhos, no passaporte ou no cartão de identidade. Por vezes parece-me que nos encontramos perante uma hospitalidade que é profundamente hipócrita.

Surpreendeu-o a vontade de acolher refugiados ucranianos da parte da generalidade dos países europeus?

Surpreendeu apenas quando comparada com as portas que se foram fechando para acolher refugiados dos países africanos ou dos países do Médio Oriente. Mas como referi antes, a hospitalidade e a ética do cuidado que lhe é inerente não termina com a abertura de portas, antes exige um empenhamento mais forte no exercício da hospitalidade no dia a dia, transformando a esperança e a promessa de futuro numa realidade que não pode depois compaginar-se com condições frágeis e por vezes infra-humanas em que vivem muitas bolsas de imigrados na Europa e mesmo no nosso país, como o têm demonstrado as notícias que frequentemente enchem as páginas dos jornais e das emissões televisivas.

Da solidariedade inicial em relação aos refugiados até à sua plena integração na nova sociedade vai um longo caminho. É nesse caminho que se mede se a hospitalidade de um povo é sincera?

Sim, é nesse caminho e na forma como nele se desenham as políticas de diálogo intercultural que se afere o modo como se pratica a interculturalidade. Entre uma política integracionista e assimilacionista, que visa apenas a assunção e a interiorização dos valores da cultura dominante no país de receção, e uma política de respeito pela diferença, de reconhecimento dos valores inerentes às culturas dos migrantes e refugiados e das marcas da sua identidade, ou mesmo uma política de intercâmbio ou de convivialidade,há muitas diferenças. E se, no caso português, dispomos de um quadro legal definido, por exemplo, na estrutura e na missão do Alto Comissariado para as Migrações, que, mesmo podendo ser melhorado, é relativamente aberto, democrático e dialogante, nem sempre as práticas quotidianas confirmam essa abertura, e os próprios modelos educativos que depois são aplicados estão muitas vezes longe de ser modelos dialógicos e potenciadores de uma visão da diferença como riqueza e não como origem de conflitos.

Uma sociedade tem a ganhar com a multiculturalidade ou esta é somente o resultado indireto (nem bom, nem mau) da necessidade de contrariar o envelhecimento da população?

A multiculturalidade é uma realidade das sociedades atuais que tem várias causas, como os diversos movimentos de globalização, a sociedade-em-rede, a migração provocada por diversos fatores (económicos, sociais, políticos, artísticos e culturais, situações de pós-colonialismo, etc.), não resultando apenas da necessidade de contrariar o envelhecimento da população. Nenhuma cultura é, em si mesma, perfeita e completa. Todas as culturas têm algo que outras não têm, faltando-lhes também algo que outras têm. Assim, a multiculturalidade, mais do que ser vista como um problema ou uma fonte de conflitos, deve ser vista como uma riqueza potencial em que os diferentes povos, os grupos marcados por diversidade cultural, linguística, religiosa, de hábitos e costumes, de manifestações e expressões artísticas se completam e enriquecem no contacto de uns com os outros. A questão é encontrar e intensificar as modalidades de mediação, os chamados mediadores culturais, que têm a capacidade de estabelecer a ponte entre culturas diferentes, para que o que pode ser visto como fonte de conflito ou antagonismo se transforme em possibilidade de enriquecimento e de criação de novas identidades compósitas e novas formas de vida, num clima de paz e de harmonia

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