João Henriques é Presidente executivo do Observatório do Mundo Islâmico, investigador e professor.
João Henriques é Presidente executivo do Observatório do Mundo Islâmico, investigador e professor.Foto: Leonardo Negrão

Islamofobia. “Temos é de esclarecer, criar pontes, eliminar este veneno”, diz investigador

Presidente executivo do Observatório do Mundo Islâmico fala ao DN sobre como as comunidades muçulmanas são vistas em Portugal hoje.
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Qual o retrato da comunidade islâmica em Portugal?

A chegada da comunidade islâmica a Portugal acontece, sobretudo, após a independência das colónias portuguesas, nomeadamente Moçambique e Guiné-Bissau. Na altura, esta população chegou a rondar - e até há pouco tempo, 20 anos, chegou a rondar - os 65 mil, entre muçulmanos ou de seguidores do Islão. E não houve qualquer alarido em relação à natureza securitária. Muitos deles vinham com grandes capacidades de natureza financeira, alguns com qualificações, por isso é que viemos a verificar que muitos deles se dedicaram ao empresariado e ao comércio. Não houve uma integração perfeita, se assim se pode dizer, mas também não houve qualquer tipo de convulsões sociais que resultassem da vinda dessa massa populacional. As coisas mantiveram-se assim, com o equilíbrio entre os entrantes, entre as pessoas que regressavam ou que vinham para Portugal, e aquelas que entendiam que Portugal era o país deles e, portanto, faria todo o sentido que aqui estivessem.

E, hoje, vê este equilíbrio entre os novos cidadãos muçulmanos que aqui se estabelecem?

A Europa Ocidental foi-se mostrando um lugar do futuro, um lugar de promessas, um lugar onde se proporciona uma vida melhor, portanto, passaram a vir mais migrantes de natureza económica, muito também por alguns destes países estarem em convulsões. É o caso do Paquistão e do Bangladesh, por exemplo. Isso contribuiu para que houvesse um fluxo cada vez maior de entradas em Portugal de cidadãos oriundos desse espaço geográfico e também de outros, como muçulmanos da Índia, mas também de outras regiões com outros hábitos religiosos, como do Nepal e do Punjab. Cada um destes grupos tem as suas particularidades sociais e de relacionamento com os outros. Veio uma massa populacional muito grande para Portugal e alguns deles sim, mas outros, não para se fixarem e não há uma homogeneidade cultural.

Na visão da opinião pública, todas as pessoas da Rua do Benformoso, em Lisboa, são da mesma origem e religião.

Está tudo estigmatizado, absolutamente. É claro que houve também aproveitamento por parte de alguns proprietários que achavam que era um bom momento para ganharem dinheiro com rendas, vivendo no mesmo apartamento, 20, 30 cidadãos que procuravam melhores condições em Portugal. A Rua do Benformoso, o Martim Moniz, em particular, sempre teve essa particularidade de reunir gente que veio de outros países e que procuraram em Lisboa a tal estabilidade, ganhar dinheiro para enviar para a família, etc. E, contrariamente àquilo que se diz, os episódios que tiveram lugar - e é verdade que aconteceram alguns episódios de confrontação até de natureza política, porque se tratavam de grupos rivais, do ponto de vista político, nos países deles. Essas escaramuças foram imediatamente aproveitadas por quem sempre se mostrou contrário à vinda desses cidadãos. E é verdade que quase não se vê portugueses ali, assim como noutras zonas de tantas capitais no mundo, como Chinatown. As grandes cidades, as grandes metrópoles têm essa particularidade de ter um bairro que recebe maioritariamente oriundos de outras latitudes. Ou seja, não é um problema termos uma Rua do Benformoso, só começa a ser problema quando há um aproveitamento por parte de determinadas orientações ideológicas, porque - volto a dizer - as escaramuças ocasionais que têm lugar no Martim Moniz, acontecem com a população portuguesa todos os dias, em todos os lugares, a todo momento, não só em Portugal mas pelo mundo.

A que acha que se deve o aumento do preconceito contra estes cidadãos, tão visto nos últimos tempos?

Grande parte dessa aversão, desse sentimento islamofóbico, é importado do Norte da Europa. E essas modas foram entrando, foi alimentada a retórica, sempre no sentido da segurança, a retórica de que vinham roubar os nossos empregos, para violar as nossas mulheres, para beneficiar do nosso Estado Social, que vinham para criar insegurança. Entre 2015 e 2016, num único ano, veio para a Europa um milhão de refugiados, houve o medo de recebermos combatentes do Estado Islâmico entre os muitos que vieram para a Europa.

O medo do terrorismo é sempre um dos motivos apontados.

Nós pomos o rótulo terrorista a qualquer pessoa, somos muito ligeiros a fazê-lo. Terrorista é aquele que recorre à violência. Há os fundamentalistas, que defendem o rigor do Islão, dos seus preceitos. E há outros que recorrem à violência física para impor a sua retórica, mas isso é uma ínfima parte. E há episódios que são divisores de águas, como o 11 de Setembro, em Nova Iorque, e mesmo ataques na Europa, como em 2004, na Estação de Atocha, em Madrid. E acontece o mesmo depois com outro tipo de iniciativa, estou a falar dos atos solitários, os chamados lobos solitários, que vão de modo disperso.

Como vê a preocupação da sociedade na interferência da cultura islâmica na portuguesa? Há grupos políticos que dizem que daqui a 50 anos todas as mulheres em Portugal serão obrigadas a andar de burca caso não se trave a “invasão”.

Isto não faz sentido nenhum. Há uma coisa que é inevitável que se diga. Eles não vieram para um país de maioria muçulmana, eles vieram para um país de matriz cristã. Portanto, isto agora já parece um bocado a retórica dos grupos de extrema-direita. Temos de respeitar, naturalmente, respeitar a lei que eles têm e a cultura e os princípios, o que é muitas vezes esquecido por muita gente que está na área política e que ainda não entendeu isso. As mulheres, quando vêm para o Ocidente, se querem usar, porque faz parte dos hábitos culturais deles, delas, das mulheres, se querem usar o hijab e até outras vestes mais rigorosas, fazem-no. Se nós recorrermos ao passado português, as mulheres na província usavam lenço na cabeça. Agora, coisa diferente é que eles têm um determinado entendimento sobre aquilo que deve ser o comportamento da mulher fora de casa, embora alguns países já estejam a aliviar isso. O que é certo é que as mulheres, quando chegam a Portugal, eu não vejo pessoalmente qualquer tipo de impedimento ou de contrariedade para que uma mulher muçulmana use o hijab. É da sua livre vontade. Agora, não pode ser estigmatizada, e são esses os sinais exteriores, porque muitos muçulmanos têm sinais exteriores, das suas vestes, estou a falar dos homens, e alguns, eu sei que alguns já começam a sentir-se ameaçados, porque ostentam símbolos muçulmanos. Eu entendo que é perfeitamente aceitável. Agora, também não é aceitável que eles venham impor as suas regras. Portugal é um país laico, é um país em que a religião está separada do Governo. Eles não podem querer impor isso. E também nós não podemos impor o cristianismo aos muçulmanos, não podemos também fazer com que os muçulmanos convertam os cristãos.

Mas estes cidadãos, em Portugal, têm alguma força para impor isto ao Estado português?

É verdade que não. No entanto, faz parte da retórica, também da ideologia de extrema-direita, que se não houver regras na Europa para a entrada de imigrantes ou para a fixação de imigrantes com residência e, mais tarde até com a naturalidade, essa coisa toda, a comunidade muçulmana na Europa vai sendo cada vez maior. E o número de muçulmanos no Ocidente em geral, porque estas pessoas vêm em busca de melhores condições de vida, também resultado de conflitos e guerras nestas zonas geográficas.

O Governo de Portugal tem vindo a dizer claramente que tem preferência por imigrantes que falem português e sejam cristãos, ou seja, que os demais não são bem-vindos. Como vê esta escolha?

Algumas dessas populações são bem-vindas porque elas vêm para contribuir, para a economia e não só, a tal retórica humanista. Objetivamente é assim: em todo lado há os bons e há os maus. Os portugueses também não andam com asas brancas, não são anjinhos, e nos outros países a mesma coisa. E rejeições de pedidos de regularização vão existir sempre. E claro que Portugal é um país que se recomenda pela segurança, é evidente que isto não implica que não haja, por parte das autoridades portuguesas, um maior rigor. E depois de, com a passagem do SEF para a AIMA, entrarmos num descalabro, não fazia o mínimo sentido que a AIMA viesse a substituir o SEF. Foi um erro político que teve consequências. E isto alimenta as retóricas da extrema-direita e vão-se aproveitando da falta de informação.

E como se combate esta retórica?

Temos é de esclarecer, criar pontes. A população portuguesa tem de entender o que é que significam as outras populações, o que é que significam os outros países. Tem de se desmontar, de se eliminar este veneno que está a ser alimentado. E volto a dizer, voltamos ao Norte da Europa, os países do Norte da Europa, a Escandinávia, Alemanha, França, e Portugal está a importar isso, como já referi. O combate faz-se, precisamente, com a intervenção das organizações não-governamentais, que vão esclarecendo. Tem de haver ações no terreno, tem de haver, a população em geral tem de ser convidada. Alguns vão oferecer resistência, porque acham que eles é que têm razão, mas tem de haver uma parte. Nós no Observatório do Mundo Islâmico, embora sejamos académicos, mas também temos uma obrigação social como académicos. Tem de haver uma ação de esclarecimento, tem de se desmontar, de se desenvenenar aquilo que a sociedade portuguesa está a fazer, e o mesmo acontece aqui ao lado, nos outros países - são programas de esclarecimento, mas têm de ser massivos. Nessa altura, tem de ser massivo, senão não vai resultar. Parece-me que não há esta preocupação nas autoridades portuguesas, de estabelecer parcerias com estas organizações que promovem o diálogo. Diálogo, diálogo, diálogo, permita-me que sublinhe esta palavra. O diálogo é uma coisa que está a ser perdida.

E como considera o aspetoda importância da integração destas comunidades?

A integração faz-se de uma interação cada vez maior entre as instituições e as comunidades que estão no terreno. A CPLP, por exemplo, já disse que iria avançar com cursos de português para estrangeiros. Tem de haver locais e logística para esses cursos acontecerem. As populações vindas desses países encapsularam-se, metem-se em guetos, fecham-se, porque não lhes são abertas as portas para essa interação. Não é porque elas não querem, é porque isso é-lhes imposto. E depois acabam por dizer que não vale a pena remar contra a maré, como se diz em linguagem popular, porque ninguém os ouve. Tem de haver o esforço institucional. As instituições privadas são aquelas que se estão a chegar à frente. Isso é um trabalho que tem de dizer respeito não só à sociedade civil, como também à componente política. Os políticos têm de estabelecer parcerias com as diferentes instituições que estão orientadas para a ajuda e para o acolhimento, tem de haver o sentimento de pertença. E o sentimento de pertença dessas sociedades só existe quando elas se sentem integradas e têm de ser ajudadas a integrar-se, porque senão fecham-se mesmo, refugiam-se.

Uma última questão, que está na ordem do dia, é sobre a construção de mesquitas. No Porto, a autarquia voltou atrás após sofrer alguma pressão. Como vê a construção de mesquitas? E com recursos públicos?

Eu tenho algumas reservas em relação a isso, devo confessar, porque as mesquitas, num país declaradamente cristão, na verdade são mal aceites. Mas a Constituição não proíbe o culto de outros credos, portanto, do ponto de vista constitucional, agora que se fala tanto em alterações à Constituição, não vejo razões para não autorizar. E estas pessoas vão ter de rezar nalgum lugar. Vejo a presença de focos cada vez maiores de aglomeração nos jardins, por exemplo. Do ponto de vista do acolhimento, como eu disse, é importante que essas pessoas tenham esse espaço, elas estão a morar cá, é importante que elas tenham esse espaço. Nós podemos discutir se deve existir um investimento público para se construir ou não. Eu não estou de acordo com investimento público, porque nós estamos, nós contribuintes, estamos a contribuir, passa a redundância, para uma situação que não é nossa. Mas também podemos dizer assim: ‘Ah, mas os muçulmanos também estão a contribuir para o erário público com os seus impostos.’ Eu, pessoalmente, não tenho dúvidas de que se possa ir tão longe. Mas estas pessoas precisam de ter um lugar de culto.

amanda.lima@dn.pt

João Henriques é Presidente executivo do Observatório do Mundo Islâmico, investigador e professor.
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