“Durante séculos, muçulmanos e cristãos lutaram e aliaram-se. Era a 'realpolitik' da Península Ibérica”
Foto: Paulo Spranger

“Durante séculos, muçulmanos e cristãos lutaram e aliaram-se. Era a 'realpolitik' da Península Ibérica”

Doutorado em História pela Universidade de Oxford, Abdul Rahman Azzam regressa ao tema Portugal com o livro 'D. Afonso Henriques e o Rebelde Místico - Uma nova história sobre o Cerco de Lisboa'.
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No seu livro percebe-se que evita descrever D. Afonso Henriques como islamofóbico, mesmo que tenha fundado Portugal conquistando território muçulmano?

Afonso Henriques fundou Portugal conquistando território muçulmano, mas estaria igualmente preparado para o fazer conquistando território cristão. O seu principal objetivo era construir um reino e ser reconhecido como rei pelo Papa. É claro que não tinha qualquer amor pelo Islão. É de perguntar o quanto ele sabia sobre o Islão. A resposta é provavelmente muito pouco. Foi durante a sua vida que as primeiras traduções sérias do Alcorão foram feitas por homens como Roberto de Ketton. Mas, mesmo assim, terá Henriques pensado no Islão como uma religião diferente ou simplesmente como uma heresia cristã? Henriques pode não ter sabido muito sobre o Islão, mas certamente conhecia os muçulmanos, e o princípio fundamental da realpolitik do período na Península Ibérica era que os muçulmanos e os cristãos precisavam uns dos outros. Havia pouco amor perdido, mas havia um entendimento realista de que era necessário manter um equilíbrio de poder. Se a terra fosse tomada, era necessário que os muçulmanos ou os cristãos permanecessem para a manter, por exemplo. Não se tratava de uma convivência com as suas implicações sentimentais; era um modo de vida que existia em todo o mundo muçulmano, tanto no Oriente como no Ocidente. As Cruzadas mudaram esta visão drasticamente. Afonso Henriques reconheceu que precisava da ajuda dos Cruzados para tomar Lisboa, mas ficou horrorizado com o massacre desnecessário de muçulmanos, que não servia para nada. Era acima de tudo pragmático.

As alianças entre governantes cristãos e islâmicos eram mais uma regra do que uma exceção na Península Ibérica?

Sim. Durante centenas de anos, os governantes muçulmanos e cristãos lutaram e aliaram-se. Esta era a realpolitik da Península Ibérica. Há muitos exemplos de muçulmanos e cristãos a firmarem alianças. Foi uma era de pragmatismo egoísta. Prevalecia um estado de fluidez, onde a autopreservação e a conveniência exerciam mais força política do que qualquer ideologia expressa consciente ou inconscientemente. Muitos nobres cristãos procuravam emprego junto dos muçulmanos como mercenários. O mais famoso deles foi o nobre castelhano Rodrigo Díaz, mais conhecido por El Cid, que serviu como mercenário no exército do estado muçulmano de Saragoça antes de fundar um principado independente em Valência. Podemos oferecer muitos outros exemplos: no ano de 1010, três bispos, de Vic, Girona e Barcelona, morreram em batalha contra inimigos islâmicos. Certamente um exemplo heróico da Reconquista Cristã? De facto, todos morreram a lutar por muçulmanos contra outros muçulmanos. E o que dizer de Sancho I de Leão, que foi deposto pelos seus próprios súbditos por ser supostamente demasiado obeso até para montar a cavalo. Sancho viajou para Córdova em 958 na esperança de que os médicos do califa o ajudassem a perder os quilos a mais e a recuperar o trono. Foi, segundo nos contam, bem-sucedido em ambas as frentes.

Abdul Rahman Azzam é doutorado em História pela Universidade de Oxford.
Abdul Rahman Azzam é doutorado em História pela Universidade de Oxford.

“Afonso Henriques fundou Portugal conquistando território muçulmano, mas estaria igualmente preparado para o fazer conquistando território cristão.”

Os moçárabes eram realmente aceites nas sociedades de maioria muçulmana?

Os cristãos “árabes” foram aceites e conviveram com os muçulmanos durante séculos, tanto no Ocidente como no Oriente. Era-lhes permitido celebrar as suas liturgias em paz.

Qual a importância dos Cruzados na conquista de Lisboa em 1147?

Lisboa não teria caído sem os Cruzados, e Henriques sabia-o. Mas trouxeram consigo uma violência ideológica contra muçulmanos e judeus que não existia anteriormente. Esta visão não é hoje reconhecida, pois a narrativa que conhecemos é a que é imposta pelo Estado Novo. A realidade era muito mais subtil.

A morte do bispo de Lisboa pelos Cruzados foi um acidente?

Possivelmente. Não nos podemos esquecer que, nas suas maneiras e nas suas vestes, os cristãos árabes eram idênticos aos muçulmanos. Mas também não nos podemos esquecer que um dos pilares da política de Henrique era impor uma liturgia católica em Portugal e que os moçárabes tiveram de ser postos de parte. Pode não ter sido responsável pelo assassinato do bispo, mas para Henrique foi um incidente feliz. No entanto, é um reflexo da violência que foi desencadeada.

Será Ibn Qasi, o místico, apenas mais um dos muçulmanos famosos nascidos no território que é hoje Portugal ou foi realmente uma figura histórica importante?

Era bem conhecido e, como reflexo disso, foi mencionado por um dos maiores místicos e escritores islâmicos, Ibn Arabi (nascido em Múrcia). Talvez não muito famoso, mas certamente bem conhecido. A questão de Ibn Qasi era que era português. Tão português como Afonso Henriques. Ele nasceu e morreu nesse país. Era também muçulmano e falava árabe. De muitas formas, ele simboliza uma história não contada da História de Portugal.

A Idade de Ouro de Córdova, no século X, foi um momento único na civilização muçulmana? Pode Córdova ser comparada a Bagdad sob o califa abássida?

Não foi um momento único. Foi um grande momento, mas não único. A riqueza da civilização islâmica tem-se refletido repetidamente - pode-se mencionar Bagdad, com certeza, mas também Samarcanda, Timbuktu, Cairo, Nishapur e assim por diante.

Conheço outros livros seus sobre a história portuguesa. Porquê este interesse por Portugal? Está relacionado com a sua formação pessoal?

Uma personagem atraiu-me para Portugal. O herói desconhecido Fernão Lopes, sobre quem escrevi em O Outro Exílio - um homem que viveu na ilha de Santa Helena em total isolamento no século XVI. É uma história obscura, mas que me comoveu consideravelmente. Fernão Lopes fez-me apaixonar por Portugal. O que me fascina em Portugal é como - enquanto historiador islâmico - durante séculos o passado islâmico de Portugal não recebeu o crédito que merece. Reconhecemos as razões políticas para tal e, felizmente, agora cada vez mais historiadores e arqueólogos estão a contribuir, mas, ainda assim, permanece um facto que, durante centenas de anos, Portugal (Gharb al Andalus - o oeste de Andalus) foi uma terra muçulmana. O árabe era a língua franca. Igualmente importante de perceber é que não estamos a falar de árabes muçulmanos a viver em Portugal. Estamos a falar de conversões ao islão em larga escala. Esta é uma História de Portugal que permanece desconhecida. Todos conhecemos a Idade de Ouro de Portugal e a sua história. Mas Portugal tem também uma outra história que foi escrita.

Como é que os muçulmanos, e sobretudo os árabes, veem hoje Portugal e Espanha? Como uma espécie de primos perdidos?

Há um fascínio romântico ligado à Península Ibérica que continua a ressoar no Oriente. Mas é acompanhado por uma sensação de perda e tragédia. Bem como uma sensação de exílio. É importante notar que isto não se aplica apenas aos muçulmanos, mas também aos judeus. Também foram expulsos pela Reconquista. Também nunca devemos esquecer que, quando os judeus foram expulsos, escolheram viver sob o domínio muçulmano no Império Otomano. Sentiam-se mais seguros ali do que sob o domínio cristão na Europa.

Qual é a herança islâmica mais visível em Portugal?

A questão é: porque é que Portugal não tem uma herança muçulmana mais visível, dada a sua história? Há razões históricas pelas quais Granada, Sevilha e Córdoba mantiveram o que Portugal perdeu, mas, ainda assim, esta continua a ser uma questão preocupante.

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