A formação de depósitos tóxicos de proteínas no cérebro é a fonte das principais doenças neurodegenerativas, de Alzheimer a Parkinson, passando por vários tipos de demência. Em duas dessas doenças cognitivas, a demência por corpos de Lewy e a demência associada à Doença de Parkinson, a proteína identificada como agente indesejado é a sinucleína, cuja acumulação anormal dentro dos neurónios causa degeneração e morte das células nervosas do cérebro. Agora, uma equipa do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto descobriu uma forma de bloquear os efeitos dessa proteína nos neurónios, abrindo caminho a novas terapias para estas doenças que afetam cada vez mais pessoas, cada vez mais cedo..A demência por corpos de Lewy é o terceiro tipo mais comum de demência, enquanto a perda cognitiva associada à Doença de Parkinson atinge cerca de 80 por cento destes doentes. Ambas se caracterizam pela formação no cérebro desses depósitos arredondados anormais de sinucleína, também conhecidos por corpos de Lewy - assim batizados devido ao médico que os descobriu, o alemão Frietz Heirinch Lewy, no início do século XX..A maioria das abordagens terapêuticas para estas doenças passa atualmente por “tentar evitar esses agregados de proteínas e limpá-los”, mas, aponta a investigadora Márcia Liz, “isso não impede que os neurónios fiquem afetados nas suas funções”..O que a equipa do i3S fez, neste projeto, foi “estudar o que fazem estes aglomerados de sinucleína aos neurónios do hipocampo, que é a zona do cérebro que coordena as nossas memórias e aprendizagens”, fatores que ficam comprometidos em quadros de demência. E nesse estudo descobriu que “a sinucleína altera o funcionamento dos neurónios através de uma estrutura que cria no neurónio e que leva à perda da sua função”, refere ao DN a coordenadora da investigação..Márcia Liz (à direita, de branco), do i3S, coordenou investigação em que participou também Mariana Oliveira da Silva.A equipa de Márcia Liz identificou que o mecanismo que a proteína usa para alterar a função dos neurónios é um recetor identificado como CCR5, “que já tem sido associado a doenças do sistema nervoso central e também está associado como recetor na infeção por HIV”. Para isso, recorreram a amostras disponibilizadas pelo Banco Português de Cérebros, que funciona no Centro Hospitalar Universitário de Santo António..“Foi importante para validar a importância deste recetor em modelos humanos”, sublinha a investigadora. “Analisámos amostras de pessoas com demência e percebemos que este recetor específico aparece aumentado nestas doenças e está envolvido na disfunção das sinapses e perda de memória”, acrescenta, explicando que um recetor é uma espécie de porteiro que gere a comunicação entre o exterior e o interior da célula, “uma proteína transmembranar que permite enviar sinais para induzir uma resposta dentro da célula”..Ou seja, a sinucleína liga-se a este recetor para criar no neurónio (célula do sistema nervoso) uma estrutura que vai danificar o seu normal funcionamento..Identificada a importância desse recetor (CCR5), a investigadora do i3S decidiu então “testar moléculas que atuassem no recetor e bloqueassem a ação da sinucleína, revertendo a disfunção das sinapses e, consequentemente, dos neurónios”. E foi assim que, através de ensaios celulares em ratinhos, a equipa de Márcia Liz descobriu um péptido capaz de bloquear os efeitos nefastos da sinucleína nas células nervosas. Esse péptido - um conjunto de aminoácidos que formam um fragmento de uma proteína - “inibe a ação do recetor, é um antagonista”, explica a investigadora, pelo que impede a sinucleína de usar essa porta de entrada para corromper a atividade dos neurónios. .Os resultados desta investigação foram publicados na revista Cell Death & Disease e abrem caminho para novas terapias para estas doenças neurológicas..Uma empresa americana que desenvolve outros péptidos para bloquear o recetor em estudo já “confirmou o grande potencial clínico” da solução encontrada pelos cientistas do i3S. “Este péptido é muito mais potente do que a droga aprovada pela FDA para travar o HIV e tem a vantagem de entrar rapidamente no cérebro e de ser administrado oralmente”, refere Márcia Liz, que espera agora financiamento para avançar com ensaios pré-clínicos em “modelos animais com demência” e que testar o potencial deste péptido também para as doenças de Alzheimer e Parkinson.