“Há pessoas que vêm para aqui mentir descaradamente, outras estão na desportiva. A falar como se as coisas não tivessem importância nenhuma, mas têm. Estão num julgamento criminal com cinco arguidos acusados de crimes graves”; “Neste processo estamos a ver desfilar testemunhas a serem-lhes extraídas certidões de falsidade de depoimento a toda a hora.”.Estas advertências da juíza Hortense Marques, que preside ao segundo julgamento criminal do caso Ihor Homeniuk (o cidadão ucraniano cujo óbito foi declarado às 18H40 de 12 de março de 2020, em custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras/SEF no aeroporto de Lisboa), descrevem o que tem sido a maioria dos testemunhos neste caso. Grande parte deles dizendo respeito a polícias, ou seja, ex-inspetores do SEF - que atualmente integram os quadros da Polícia Judiciária (PJ) - incluindo a ex-diretora nacional da extinta polícia de fronteiras, Cristina Gatões, cujo depoimento, ocorrido a 27 de setembro, foi igualmente, como o DN noticiou, uma sucessão de não me lembro, não sei, não li, nao vi, não desconfiei..A testemunha Rui Marques, inspetor da PJ no ativo, é uma daquelas em relação às quais a magistrada ordenou a extração de certidão por falsas declarações - significando que as que fez no tribunal vão ser enviadas para o Ministério Público, para confronto com as efetuadas quer no anterior julgamento (o dos três inspetores condenados a nove anos de prisão por terem causado, por via de agressões e de algemamento que se prolongou por mais de oito horas, a morte do cidadão ucraniano) e com nas prestadas à PJ em sede de inquérito, para que se decida deve ser acusado por este crime. O qual, como Hortense Marques lembra no início de cada depoimento, tem uma moldura penal até cinco anos de prisão..Esta situação deverá ter consequências disciplinares para o agente da PJ, disse ao DN uma fonte desta polícia criminal, invocando o respetivo Regulamento Disciplinar (decreto-lei 196/94). Nos termos do qual Rui Marques, se pronunciado pelo crime de falsas declarações, deverá ser, por se tratar de um crime com moldura penal superior a três anos, suspenso de funções, com suspensão do vencimento, “até decisão final absolutória, ainda que não transitada, ou até ao trânsito em julgado da decisão final condenatória”..Em causa o facto de este inspetor da PJ ter agora afirmado ao tribunal que Ihor, quando o encontrou, perto das cinco da tarde do dia 12 de março de 2020, na chamada “sala dos médicos” do centro de detenção do SEF no aeroporto de Lisboa (a única divisão sem videovigilância daquele local, no qual era “instalados” os cidadãos estrangeiros não admitidos em território nacional), deitado de barriga para baixo num colchão azul, algemado de mãos atrás das costas, calças a meio das pernas e “molhado”, exalando um cheiro que outras testemunhas qualificaram como “nauseabundo”, não tinha os tornozelos unidos com fita adesiva e que não reparou que ostentasse marcas de violência (hematomas). O que entra em contradição com o que o mesmo Rui Marques dissera em março de 2021, quando depôs, também como testemunha, no julgamento anterior: aí afirmou ter visto equimoses na face de Ihor e fita adesiva a unir-lhe os tornozelos..Igualmente, ao ser ouvido a 1 de julho de 2021 pela PJ, no segundo inquérito criminal relativo ao caso (do qual resultaram as acusações em causa neste julgamento), disse ter observado “alguns hematomas e equimoses” nas zonas de pele que Ihor tinha expostas e que este “tinha a zona dos tornozelos unida com fita-cola de cor castanha” (facto muito relevante para a descoberta da verdade e a produção de prova neste julgamento, já que dois dos arguidos, funcionários da empresa de segurança privada Prestibel que desempenhavam funções de vigilantes no centro de detenção do SEF, estão acusados de sequestro precisamente porque teriam manietado Ihor com fita adesiva). .“Vai ter de decidir se é uma coisa ou outra - para afirmar coisas opostas o não se lembrar não chega como justificação”, advertiu, cortante, a juíza..“O senhor trabalha na PJ. É espantoso que alguém com a sua profissão não se lembre de uma coisa dessas”.Rui Marques também admitiu no seu depoimento que, na noite de dia 12, após a morte de Ihor (a qual decorreu na sua presença), quando preencheu a parte relativa à sua intervenção no relatório oficial da polícia de fronteiras sobre o cidadão ucraniano - denominado “relatório de ocorrência, ou RO -, deixou “um espaço em branco” nas páginas entre a entrada anterior, que dizia respeito a acontecimentos do dia 10, e a sua. Para, explicou, os seus camaradas que tinham intervindo antes - incluindo os três inspetores entretanto condenados, os quais tinham estado com Ihor nesse dia de manhã -, e não haviam preenchido o relatório descrevendo a respetiva atuação, poderem fazê-lo (como veio a acontecer) e tudo parecesse ter sido efetuado de forma correta, sequencial. Asseverou que o fez porque lhe deram essa indicação, mas que não se lembrava de quem a tinha dado..Na página do RO definitivo, está um traço a lápis acima da entrada de Marques. Questionado sobre quem tinha feito aquele traço, disse não saber, nem reconhecer a letra de quem preencheu o espaço que deixou em branco..Reproduzindo esta parte do depoimento:.“O que foi escrito por si no RO?”.“A partir das 16H40 [do dia 12 de março, quando Rui Marques chega junto de Ihor].”.“Significa que tudo o que está escrito antes da sua entrada no relatório foi escrito a 16 de março?”.Como não estava escrito, pediram-me para deixar espaço. Não me lembra quem.”.“O senhor escreve numa folha em branco para deixar espaço. É impossível o senhor não se lembrar quem lhe disse para fazer isso.”.“Não me recordo.”.Escandalizada, a juíza verberou o inspetor da PJ: “O senhor diz com o maior dos à-vontades que deixou espaço para as pessoas preencherem. Nem sabia qual era o espaço necessário, se cabia se não cabia. Tinha morrido uma pessoa. E isso é a forma de o SEF fazer as coisas como deve ser? Estavam a instruir um processo que ia para o Ministério Público, não era um processo simples. E o que o senhor me está a dizer é que fazer as coisas como deve ser é deixar uma folha em branco. O senhor trabalha na PJ, não é? Acha que isso é forma de fazer as coisas bem feitas?”.E, de seguida, Hortense Marques insistiu: “Pode ter sido um vigilante que lhe disse [para deixar o espaço]? Pode ter sido um colega inspetor? Anuamos com o seu consentimento que não podia ser um inferior hierárquico. É espantoso que uma pessoa com a sua profissão não se lembre de uma coisa dessas. Sobram as pessoas a quem reportava. Tinha de ser alguém a quem o senhor devesse obediência, não?”.Esta questão é tanto mais importante quando um dos cinco arguidos, o ex-diretor de Fronteira de Lisboa (DFL), responsável máximo do departamento do SEF no aeroporto de Lisboa, António Sérgio Henriques, está acusado do crime de denegação de justiça e prevaricação - vulgo encobrimento (conduta pela qual foi expulso da função pública em agosto de 2021, na sequência de um inquérito disciplinar da Inspeção Geral da Administração Interna) - por o Ministério Público considerar que “orquestrou” o preenchimento do referido RO, assim como outro relatório relevante, o dos vigilantes (os funcionários da empresa de segurança privada Prestibel)..Motivo pelo qual Filipa Correia Pinto, a advogada de defesa de Henriques (o ex-DFL), perguntou a Marques: “Está em condições de assegurar ao tribunal que não foi o Dr António Sérgio Henriques?”.“Não foi”, respondeu Marques. Ao que a magistrada voltou à carga: “Há bocado disse que não se lembrava quem foi, se não se lembra quem foi como sabe que não foi?”.“A mim não pediu.”.“E lembra-se se quem lhe disse para deixar a parte em branco lhe disse que estava a pedir-lhe por ordens superiores do DFL?”.“Não me lembro.”.“Ali não há indícios, foi uma pessoa que faleceu. Não era um local de crime”.Rui Marques foi ainda confrontado, por José Gastar Schwalbach, o advogado da assistente (Oksana Homeniuk, a viúva de Ihor), com o facto de, tendo-se dado conta de que o cidadão ucraniano estava algemado de barriga para baixo há muitas horas - foi informado pelos vigilantes/funcionários da Prestibel de que as algemas haviam sido colocadas de manhã - não o ter de imediato desalgemado totalmente (Ihor tinha nos pulsos algemas metálicas e ainda “algemas cirúrgicas”, ou de pano; Marques diz ter retirado as primeiras e deixado as segundas)..“Não perguntou desde quando ele estava com as algemas?”.“Perguntei.”.“Achou normal estar há nove horas algemado?.“Não.”.“Não pensou logo que era importante tirar as algemas?”.“Pu-lo em posição lateral de segurança.”.“Mas viu os hematomas, que tinha as calças em baixo.”.“Vi os hematomas mas não sabia do que era.”.“E você não salva o homem? Não chamou o INEM logo?”.“Não tinha nenhum indício.”.Logo no início do depoimento Rui Marques tinha afirmado que “em cinco anos de carreira nunca tinha visto alguém de mãos e pés algemados de barriga para baixo”, acrescentando: “É impensável colocar as pessoas de algemas atrás das costas e barriga para baixo - porque acontece uma asfixia lenta.”.Asfixia lenta: foi exatamente essa, de acordo com o relatório da autópsia, a causa da morte de Ihor Homeniuk. Porém Rui Marques e o inspetor-chefe Gabriel Pinto, que foi com ele buscar Ihor ao centro de detenção (para o levarem para o embarque de regresso à Ucrânia) levaram 26 minutos a chamar socorro. E nem aí, quando chegou uma equipa da Cruz Vermelha Portuguesa, que tem um posto no aeroporto, retiraram as algemas de pano que Ihor ainda tinha. Só o fizeram quando este entrou em convulsões e foi preciso fazer reanimação - ou seja, quando morreu..A justificação apresentada por Rui Marques para, a despeito de estar ciente do risco de “asfixia lenta”, não ter procedido logo ao desalgemamento é de que Ihor “podia estar a fingir”. O mesmo disse ao tribunal um ex-camarada seu do SEF, Ricardo Giriante, que desde 2022 está a desempenhar funções no FRONTEX (a agência de fronteiras da UE)..Giriante esteve com Rui Marques e Gabriel Pinto quando estes chegaram ao pé de Ihor, e explica que não tiraram logo as algemas porque “a convicção era de que ele iria resistir. Este tipo de passageiros [era assim que no SEF se referiam às pessoas que estavam no centro de detenção] que recusam embarcar de volta aos seus países costumam fazer-se de desmaiados, babarem-se, e quando nós aliviamos um bocado reagem violentamente. Urinam, defecam, fazem tudo para não serem embarcados.”.Ao contrário de Marques, Giriante admitiu ao tribunal que aquele detido exibia marcas de violência: “Tinha um hematoma na cara e também na grelha costal.” Facto que o levou, quando ligou para o MP a comunicar aquela morte em custódia (obrigação legal das polícias), a dizer à procuradora que o atendeu, Alexandra Catatau, “o homem está um bocado maltratado”..No entanto, se Marques admitiu ter perguntado há quanto tempo Ihor estava algemado, Giriante, que estava com ele, disse não saber. E que, malgrado as equimoses, não se deu conta de “nenhuma lesão assim grave”. Questionado pelo procurador Abel de Matos Rosa sobre se não considerou necessário preservar aquele local e quaisquer indícios existentes, Giriante respondeu: “Ali não há indícios, foi uma pessoa que faleceu. Não havia nada para preservar. Aquilo para mim não era nenhum crime, não havia indícios de crime, não era um local de crime.” Levando o procurador a concluir, sarcástico: “Então decidiu por si que não havia ali necessidade de recolher indícios de crime.”