“Estava a trabalhar, sou eletricista, e passados dois meses o patrão não me pagou. Não tive forma de pagar a renda de casa e fiquei sem condições nem local para morar. Foi quando fiquei na rua”, começa por contar José da Silva Santos, 45 anos, imigrante brasileiro, que chegou a Portugal há ano e meio..Quando se viu sem nada começou a pernoitar na zona do Cais do Sodré ou no Chiado, no centro de Lisboa. “Era muito perigoso, há muitos traficantes de droga”. Dali, seguiu para a Gare do Oriente. “O pessoal, lá naquele sítio, falou-me da gare, disseram-me que aqui havia uma esquadra da PSP e que vinha pessoal entregar comida”..Durante dois meses e meio José da Silva Santos pernoitou na Gare do Oriente até ser abordado pela Equipa Técnica de Rua (ETR) da Associação Vida Autónoma (AVA), que trabalha em estreita articulação com a Câmara Municipal de Lisboa (CML). “Conheci as meninas, fizeram-me uma entrevista e claro que aceitei logo ir para um centro de acolhimento, em Alcântara, onde permaneci cerca de duas semanas. Isto aqui não é sítio para ninguém estar”, confessa o imigrante que acrescenta: “Durante o tempo que estive na rua foi muito difícil. Tinha de me deslocar até à Alameda Afonso Henriques, onde há balneários, para fazer a minha higiene, e aqui na Gare do Oriente roubaram-me tudo. Fui trabalhar e quando voltei as minhas malas tinham desaparecido. Fiquei sem roupa, sem produtos de higiene. Felizmente, tinha os documentos comigo”..José da Silva Santos foi um dos cerca de 60 sem-abrigo que foram saindo da Gare do Oriente onde, em março deste ano, pernoitava mais de 120 pessoas. À medida que os sem-abrigo foram saindo a Infraestruturas de Portugal (IP) foi colocando grades no longo banco de pedra que rodeia o átrio subterrâneo da gare e onde estes sobreviviam, para que outros não se instalem..O eletricista vive hoje numa casa cedida pela CML, em Chelas, partilhada com outras pessoas que também estavam em situação de sem-abrigo. “Estou a trabalhar nas obras do Plano Geral de Drenagem de Lisboa e, quando saio do trabalho e nas minhas folgas, venho aqui para a Gare do Oriente tocar saxofone e ganho mais algum dinheirinho”, orgulha-se. “Partilho o apartamento com cinco pessoas mas temos três quartos, estamos muito bem instalados. Sinto-me bem e aliviado com este apoio que me foi proporcionado”..O imigrante já põe os olhos no futuro. “Gostava muito de estabilizar a minha vida, ganhar para poder pagar uma casa só para mim e trazer a minha mulher e as minhas filhas para Portugal”..À semelhança de José da Silva Santos as restantes pessoas que estavam em situação de sem-abrigo e sairam do local foram todas acolhidas por diversas respostas sociais. “Algumas pessoas retomaram o contacto com a família e voltaram para casa, outras foram encaminhadas para centros de acolhimento ou para internamento, e algumas, na altura do verão, arranjaram emprego e acabaram por sair da Gare do Oriente”, explica Clarissa Ferreira, coordenadora da ETR da AVA..Mesmo assim, cerca de 60 pessoas continuam a pernoitar na Gare do Oriente. O DN acompanhou a ETR da AVA numa das visitas noturnas àquela estação intermodal de Lisboa. Os que restam são interpelados, com vista a sejam, também eles, encaminhados para uma resposta social de alojamento. “Infelizmente, há pessoas, sobretudo as que têm problemas de saúde mental, que não aceitam sair da rua, nem reconhecem que têm um problema”, explica Clarissa Ferreira que dá ainda conta de que a IP está a interditar o banco corrido de pedra porque “vão decorrer obras e será montado o estaleiro, embora não seja para já”..Paula Maia, 55 anos, vem com a cadela Fofinha pela trela. É uma das mulheres que continua a dormir na Gare do Oriente mas quer sair. “Estava a viver numa loja, na Serra da Estrela, mas correram comigo. Eu só queria uma casinha, para mim e para a minha cadelinha, que é a minha única amiga”, avança a mulher. Vai ao encontro da ETR da AVA. “Como é uma pessoa que já está a ter acompanhamento social noutra zona do país, terá de se deslocar até lá para completar o processo”, explica Maria Martins, uma das técnicas. .Paula implora por ajuda mas as técnicas já a conhecem há algum tempo. Reformada, a própria conta ao DN que recebe “à volta de 500 euros por mês”, o suficiente para comprar um bilhete de comboio e voltar à Beira Alta, para resolver o seu caso..À semelhança do que aconteceu na Gare do Oriente, também junto à Igreja dos Anjos, em Lisboa, desapareceram, na sexta-feira, 4 de outubro, as tendas que serviam de casa a cerca de 60 imigrantes, sobretudo de origem africana. Já antes, segundo a CML, “cerca de 30 pessoas em situação de sem-abrigo tinham sido encaminhadas para várias respostas de alojamento temporário existentes na cidade”..Mariana Carneiro, ativista da SOS Racismo e membro da associação Solidariedade Imigrante, assegura que todos os imigrantes que ali pernoitavam “estão alojados em três hostels, aqui na zona, em boas condições”. .Já nos hostels “foram as próprias pessoas que dormiam aqui junto à igreja que se dividiram e decidiram em que grupo queriam ficar. Dentro de cada hostel, foram elas que também se dividiram pelos quartos disponíveis. Não são quartos individuais mas o máximo de pessoas, por quarto, é de seis”. .Apesar do apoio no alojamento, só 23 destas pessoas recebem ajuda alimentar, fornecida pela Cozinha Migrante dos Anjos. São cidadãos originários do Senegal e da Gâmbia, que não recebem apoios sociais do Estado, uma vez que não obtiveram autorização de residência. Aguardam-na, agora, por “motivos humanitários”, explica Mariana Carneiro. Os restantes migrantes que sobreviviam junto à igreja dos Anjos “recebem apoios sociais ou trabalham, tratando da sua própria alimentação” . .À semelhança do que aconteceu na Gare do Oriente, muitas das pessoas que pernoitavam nos Anjos conseguiram emprego e sairam antes do realojamento. “Saíram dezenas de pessoas, antes deste realojamento nos hostels, para trabalharem na pesca, na agricultura e na construção civil”..Apesar disso, alguns dos realojados nos hostels trabalham mas não ganham o suficiente para poderem pagar uma renda de casa. “Saem de manhã e regressam ao hostel ao final do dia”, precisa Mariana Carneiro. “Há outras que arranjam trabalho de forma informal, por exemplo na construção civil, e não conseguem que os patrões sejam pessoas minimamente dignas e cumpridoras da lei portuguesa e lhes façam os contratos. Ganham mal, alguns só trabalham quando o patrão decide, e portanto entra-se num ciclo vicioso que os impede de se autonomizarem”. .A CML garante que todas estas pessoas terão apoio com vista à autonomização. “Em articulação com o Departamento para os Direitos Sociais e em conjunto com as entidades parceiras, a CML trabalha no desenvolvimento de planos de integração e reintegração, oferecendo acesso a serviços de saúde e de apoio psicológico. O processo inclui, igualmente, o encaminhamento para programas de formação e inserção profissional, com o objetivo de promover uma inclusão social duradoura. A título de exemplo, só no último ano, através do Projeto Municipal ‘Emprego Primeiro – Porta Aberta’, foram redirecionadas dezenas de pessoas em situação de sem-abrigo para postos de trabalho estáveis”..O DN avistou Carlos Moedas junto à Igreja dos Anjos. O presidente da CML foi verificar como estava a situação, no terreno, na quarta-feira, 9 de outubro. “Estou muito satisfeito e, aliás, já várias pessoas me vieram cumprimentar e agradecer, porque agora têm um teto. No entanto, o problema é difícil de resolver, porque todos os dias chegam mais pessoas, sobretudo imigrantes, de forma descontrolada".