Durante a pandemia, os internamentos sociais eram um problema. Faltavam camas para doentes graves. Nessa altura, a Segurança Social (SS) teve de disponibilizar mais verbas para conseguir camas em lares e em unidades de cuidados continuados para encaixar estes doentes – pessoas que do ponto de vista da Saúde estão estáveis, mas do ponto de vista social não têm para onde ir - e, diga-se, que o conseguiu. Os hospitais tiveram mais camas para tratar mais doentes com covid. Agora, mais de três anos depois de a Organização Mundial da Saúde ter decretado o fim da pandemia, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) volta a registar um crescimento exponencial dos ditos casos sociais.Segundo o Relatório de Avaliação de Desempenho e Impacto do Sistema de Saúde (RADIS), divulgado na manhã desta quarta-feira, 12 de novembro, durante a Convenção Nacional da Saúde, “a taxa de internamentos sociais inapropriados cresceu quase 20% nos últimos dois anos, entre 2023 e 2025, e os custos dispararam 83%, num crescimento quatro vezes superior”.De acordo com os dados recolhidos nesta avaliação, a taxa de internamentos sociais era de 10,5%, em março de 2023, e, em março de 2025, era de 11,7%. Ou seja, detalha ainda o documento, em número de episódios classificados como inapropriados passou-se de 1955 internamentos para 2164 (em 2024) e 2342 internamentos (em 2025, mais 8%).Paralelamente, e em número de camas ocupadas, os internamentos sociais cresceram de 9,8% em março de 2023 para 10,7%, em março de 2024, e 11,5%, em março de 2025, “o que indica também uma pressão crescente relativa à capacidade instalada”. Em relação aos custos, o relatório refere que se registou “um aumento considerável, quatro vezes superior, para um patamar de 95 milhões de euros em março de 2025 (face aos 51,9 milhões de 2023). A distribuição territorial é concentrada: Lisboa e Vale do Tejo e Norte representam 80% do total deste tipo de internamento”.O relatório alerta mesmo para o facto de os internamentos sociais serem um “desafio na articulação entre cuidados hospitalares e outros níveis de cuidados, nomeadamente, de carácter social”, porque para este fenómeno contribuem “fatores como insuficiência de respostas na comunidade, envelhecimento populacional e carência de recursos sociais”, sendo que o impacto financeiro no SNS “é significativo, um crescimento de 83%”. Mas para o SNS as perdas traduzem-se ainda na "perda de eficiência (camas agudas ocupadas por doentes clinicamente estáveis), nos custos crescentes sem ganho proporcional em resultados de saúde, em aumento dos tempos de espera e impacto sobre a acessibilidade a cirurgias, urgências, internamentos programados e nos desequilíbrios regionais que penalizam a equidade”.Por isso mesmo, refere o RADIS, “sem uma resposta integrada, a tendência sugere maior pressão orçamental continuada e maior redução da capacidade efetiva para tratar a patologia aguda”, recomendando que “o reforço da integração de cuidados e o desenvolvimento de alternativas ao internamento são essenciais para reduzir esta desadequação e otimizar os recursos”.Mais de 100 camas dos grandes hospitais são ocupadas por doentes sociais, diz APAHO presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto, confirma ao DN que, atualmente, “a situação dos internamentos sociais é gravíssima para os hospitais, e a tendência é para agravar ainda mais, se tivermos em conta o envelhecimento da população portuguesa”.Segundo argumenta “tais camas são essenciais para as urgências, que constantemente ficam sobrelotadas com doentes que não podem ser internados, e até para se cumprir a atividade cirúrgica programada, a qual, muitas vezes, não é cumprida porque cerca de 11% das camas dos hospitais estão ocupadas com doentes que não deviam lá estar”, reforçando: “Por exemplo, para um hospital central, 11% das suas camas é muito. São mais de 100 camas e milhares de dias de internamento, porque todos os doentes ficam internados à espera de uma resposta social, o que tem um custo de centenas de milhões de euros para o SNS”.Mas para Xavier Barreto há ainda um custo maior, que é o da própria saúde das pessoas que têm de ficar internadas em ambiente hospitalar. “Estas pessoas acabam por desenvolver outra doenças e até infeções hospitalares, algumas acabam por morrer, quando na verdade nem deveriam sequer estar internados. E isto é gravíssimo”.Quando confrontado com a questão sobre se é a Segurança Social que não dá resposta atempada, o presidente da APAH diz acreditar que “a própria SS também tem enorme dificuldade em dar respostas mais rápidas, porque não tem camas de retaguarda. Faltam camas em lares e na rede de cuidados continuados e, por muito boa vontade que a SS tenha, isto faz com que não seja possível dar uma resposta”. O administrador manifesta ainda preocupação em relação ao futuro, sublinhando que “não se vai conseguir resolver este problema tão depressa", pois destaca que "uma das metas do PRR era construir-se mais cinco mil camas na rede de cuidados continuados, para dar resposta às necessidades, e com a revisão do PRR há 15 dias esta meta caiu, vamos construir cerca de 800 camas. Quando para o SNS este aspeto é central e deveria ser uma prioridade”. Xavier Barreto diz mesmo que “estas camas de retaguarda são necessárias. Senão, a nossa sociedade continua a não estar preparada para a nova circunstância demográfica, de cada vez mais pessoas idosas e dependentes”.Nesta perspetiva, o administrador defende que se “não houver reforma profundas, que incluam também mais apoio aos cuidadores informais, mais apoio em equipas domiciliárias e centros de dia, a tendência é para que este problema se agrave ainda mais nos próximos anos”.Portugueses pagam do seu bolso cerca do dobro dos outros europeus em SaúdeO RADIS - que, segundo é referido na sua introdução, avaliou 35 indicadores para traçar “uma fotografia abrangente do desempenho do sistema de saúde em Portugal, cruzando dimensões essenciais: recursos disponíveis, resultados alcançados e a perspectiva do doente”, articulando saúde com bem-estar social e económico – confirma ainda uma tendência de há muito: os portugueses são dos povos que mais pagam do seu bolso para a Saúde – cerca de 30%, o dobro da média europeia.O documento refere que o facto de “os pagamentos diretos serem o dobro da média europeia evidencia uma pressão financeira sobre as famílias portuguesas, que enfrentam barreiras económicas para aceder a cuidados essenciais, especialmente em áreas como medicina dentária, dispositivos médicos e medicamentos”.Em termos de resultados assistenciais, os dados revelam que há ganhos seletivos: “o número de utentes sem médico de família diminuiu 2 p.p. em 2024, a mortalidade evitável antes dos 75 anos diminui e mantém-se abaixo da média da União Europeia, e a taxa de cirurgias realizadas em regime ambulatório estabiliza em níveis elevados, demonstrando maturidade e eficiência do sistema”. Por outro lado, é salientado que a atividade operacional do SNS24 tem vindo a crescer 71% ao ano, desde 2023, ultrapassando já os níveis pré-pandemia, ao mesmo tempo que aumentou também a atividade da hospitalização domiciliária, crescimento da ordem dos 62% desde 2020 com ganhos para o sistema”.Mas se há ganhos, também há perdas e o relatório demonstra que houve uma queda de 4,9% nas primeiras consultas feitas dentro do Tempo Máximo de Resposta Garantido (TMRG) - de 54,6% em 2023 para 49,7% em 2024. “Esta tendência negativa indica um agravamento na capacidade de resposta do sistema de saúde, com impacto direto na acessibilidade aos cuidados”, é referido.Na área oncológica, desde o final de 2023 que o número de cirurgias oncológicas realizadas pelo SNS vinha a evoluir favoravelmente, mas quebrou abruptamente no último trimestre de 2025. E apesar do compromisso no Plano Europeu de Luta contra o Cancro, apenas 25% dos portugueses inquiridos recebeu a convocatória para a realização do rastreio do cancro colorretal e do colo do útero.No plano social, os salários médios mantêm-se entre os mais baixos da Europa: Portugal tem o 10º salário médio mais baixo da Europa e com grandes assimetrias regionais agravando vulnerabilidades socioeconómicas e condicionando determinantes de saúde, como a capacidade de suportar despesas diretas.A carga de doença revela desafios acrescidos em áreas como doenças respiratórias, diabetes e saúde mental, enquanto o número de beneficiários de subsídio de doença permanece estruturalmente elevado (cresceu 77,6% desde 2013), com impacto direto sobre a Segurança Social. Por fim, o impacto dos cuidados de saúde no absentismo laboral é significativo, com quase metade dos cidadãos inquiridos a faltar ao trabalho para consultas ou tratamentos, o que representa um custo indireto para a sociedade e reforça a importância de soluções digitais e horários flexíveis.Resumindo, diz o relatório, “o sistema de saúde português revela resiliência, capacidade de adaptação e ganhos seletivos, mas permanece tensionado por desafios estruturais: acelerar a prevenção, reduzir pagamentos diretos, uniformizar o acesso territorial, reforçar a capacidade programada nos cuidados primários, continuados e oncológicos, e investir na literacia e comunicação com o doente. Só assim será possível transformar a procura tardia em saúde antecipada, promovendo maior equidade, eficiência e sustentabilidade”.