Foi contactada para avançar com uma candidatura presidencial? Várias pessoas vieram com essa sugestão, mais recentemente com ligações à política, na área do Livre e do Bloco de Esquerda. A todos respondi que esse não é o meu projeto de vida. Agradeço muito que se lembrem da minha pessoa, mas não, nem pensar. Porquê? A política é uma atividade muito, muito exigente, particularmente dura, ainda mais nos dias de hoje, em especial para as mulheres. As pessoas são tratadas como se estivessem implicadas em coisas terríveis, mesmo que nunca tenham feito nada de errado. Já não tenho energia nem estaleca para fazer o que fiz. Foram 21 campanhas eleitorais nestes 50 anos de democracia. Mas as condições eram outras. Não havia esta maledicência organizada que hoje grassa nas redes sociais, através, até, da inteligência artificial. Maledicência organizada que me faz lembrar um verso da Sophia Mello Breyner: “o nosso tempo é pecado organizado”. Organizado na guerra, nos morticínios de que todos os dias temos notícias, no genocídio em Gaza. Maledicência organizada nas redes sociais. É uma batalha que todos os democratas e as suas organizações e movimentos devem travar com coragem. Eu sou apenas uma cidadã individual. É certo que aos 71 anos decidiu reformar-se dos cargos políticos. Hoje, a caminho dos 78, mantém as causas? Claro. Em mim, a cidadania sempre esteve sempre muito ligada à base, ao território, a pessoas concretas, a grupos de cidadãos. Esse trabalho permanece. Porque a cidadania também se constrói de baixo para cima. Não estou reformada das minhas causas. Continuo a batalhar pela habitação. Só não estou disponível para me candidatar a um lugar para o qual nunca me preparei. Vai apoiar algum dos candidatos presidenciais? Com a entrada em cena do candidato da extrema-direita, é preciso não dividir ainda mais o voto democrata. Nem todos os candidatos têm de ser heróis, nem todos têm de ser brilhantes. Tivemos, aliás, presidentes brilhantes, como o atual, mas nem sempre os mais brilhantes são os melhores. Eu ainda estou a ver o que fazem e dizem os candidatos anunciados. Fora do meu radar está obviamente o candidato da extrema-direita, que além de não querer ser presidente já mostrou que quer dividir os portugueses e acabar com o regime. Quanto ao candidato militar, lutei tanto por presidentes civis que não me vejo a votar nele. O essencial na 1ª volta é combater a abstenção, para não privilegiar minorias. Na segunda volta temos de escolher a pessoa que for mais capaz de defender a democracia e unir os portugueses. Vivemos tempos de ruído, de falsidades, de populismos. Com que olhos encara o futuro? Otimista? A luta é dura, as armas são desiguais, a vaga de destruição e desconstrução democrática é muito grande. Muito forte. E ultrapassa as fronteiras nacionais. Estou preocupada, mas tenho esperança. Sei que não deixarei de batalhar até ao fim. Dizia o poeta Aleixo que “a razão, mesmo vencida / não deixa de ser razão.” Não largo as minhas causas. E também digo que é tempo de as gerações mais novas virem a jogo. Deixo-lhes sempre o mesmo conselho: não façam nada sozinhos. Procurem gente com quem possam partilhar as vossas causas. Sozinhos não vamos a lado nenhum. É um nome ligado à cidade, à cidadania. O que é que lhe tem chamado a atenção nesta campanha autárquica? A campanha autárquica não é uma campanha só. São 308 campanhas municipais e mais de 3.000 para as freguesias. E são eleições que dependem muito da imagem e da personalidade dos candidatos, em particular do candidato ou candidata a presidente da Câmara. Temos, no território nacional, situações muito diversas. Por isso, não podemos transladar resultados das últimas legislativas para as autárquicas, seria um erro monumental. No meu caso, tenho acompanhado sobretudo o município de Lisboa, a minha cidade. Apoio a Alexandra Leitão, uma mulher inteligente e corajosa que aceitou um desafio extremamente difícil e foi capaz de unir partidos e independentes, com um programa muito aberto e consistente. Está a fazer uma campanha de muita proximidade e empatia, algo que é fundamental na vida política. Poder-se-á pensar que o apoio a Alexandra Leitão poderá ter também a ver com a saída de Filipa Roseta das listas de Carlos Moedas? Quem me conhece e conhece a minha filha, sabe que a resposta é não. A saída foi uma decisão dela, relacionada com a carreira académica, tomada em plena liberdade, que a mim, como mãe, só me cabe respeitar, evidentemente. Dei o meu apoio à Alexandra Leitão muito antes de a minha filha tomar a decisão de sair. Porém, afastou-se quando Filipa Roseta concorreu nas listas de Moedas. Aí sim, houve um distanciamento das minhas responsabilidades na autarquia de Lisboa. Quando me pareceu que ela, depois de ter sido cabeça de lista do PSD em Lisboa nas legislativas, poderia ser candidata na capital, entendi que devia retirar-me. Não faria sentido estarem mãe e filha a disputar o mesmo espaço, ainda por cima em partidos diferentes. Filipa Roseta ficou com o pelouro da habitação, área que lhe é muito cara. Gostou do trabalho realizado ao longo do mandato? Estou contente com o trabalho que ela fez, como mãe e como pessoa que luta nessa área. Um trabalho muito interessante, dando continuidade a muitas soluções lançadas por mim, mas juntando-lhe novas ideias e sua maneira de ser e agir. Há dias o Conselho Metropolitano de Lisboa apresentou publicamente um guia para a elaboração de Cartas Municipais de Habitação. Foi particularmente emocionante para mim, porque é um instrumento novo que criámos em 2019 na Lei de Bases da Habitação e a Filipa, em Lisboa, conseguiu elaborá-lo e fazê-lo aprovar pela Assembleia Municipal. As políticas de habitação precisam de continuidade para darem os melhores frutos.."A ideia que o governo tinha de transformar terrenos agrícolas em terrenos urbanos, de modo a aumentar a quantidade do terreno barato disponível para habitação, implica investir uma brutalidade de dinheiro nas infraestruturas. Além disso, perdem-se recursos naturais. Temos de ter juízo. O país é muito pequenino, o território é muito frágil, as alterações climáticas estão aí".Em que medida a Carta Municipal de Habitação pode ajudar à resolução da crise habitacional? A ferramenta serve para territorializar as políticas de habitação a nível municipal, ligando-as ao PDM e demais instrumentos urbanísticos. As casas precisam de um chão. É preciso saber exatamente onde e com que recursos se vão implantar as diferentes soluções. Sem isto, tudo se resume a palavras. Hoje em dia, o grosso do parque habitacional está na mão dos municípios. É verdade, perto de 90% do parque habitacional público está na mão dos municípios. A gestão desse parque é fundamental, é competência dos municípios e exige recursos, muito acompanhamento e diálogo com os moradores. Durante muitos anos não houve capacidade de manutenção do parque habitacional público e em muitos casos não houve boa gestão. Quando alguém diz que não quer morar num bairro social, é preciso perceber porquê. No geral é porque há nesses bairros muitos problemas, muitos deles resultado do desinteresse, da falta de acompanhamento e da falta de prioridade da entidade pública responsável. A boa gestão constrói-se todos os dias, envolvendo os moradores e respondendo às suas necessidades. O bom ambiente no bairro precisa desse trabalho. ."Ainda estou a ver o que fazem e dizem os candidatos anunciados. Fora do meu radar está obviamente o candidato da extrema-direita, que além de não querer ser presidente já mostrou que quer dividir os portugueses e acabar com o regime. Quanto ao candidato militar, lutei tanto por presidentes civis que não me vejo a votar nele" .Como é que essa gestão deve ser feita? Os bairros públicos têm situações muito diferentes. Há os que estão em boas condições e onde existe coesão social e há outros em que, pelo contrário, abundam conflitos graves, insegurança e criminalidade. A isso responde-se com políticas de proximidade. Lisboa tem uma ferramenta, criada por mim quando fui vereadora, que tem sido continuada e que considero fundamental. Trata-se dos GABIP (Gabinetes de apoio aos bairros de intervenção prioritária). É uma estrutura de coordenação permanente entre a câmara, a junta de freguesia e as associações de moradores, que permite tomar decisões de cogestão. É um instrumento sem custos que facilita um relacionamento colaborativo e participativo entre a Câmara e os moradores. Penso que esta ferramenta só existe em Lisboa. Em reação ao programa do governo Construir Portugal afirmou “Portugal está construído. Há mais casas do que famílias". Que há mais casas do que famílias, di-lo o INE. De facto, Portugal não precisa de muito mais construção. Portugal precisa é de gerir bem o que tem. Naturalmente, é preciso construir fogos novos a um ritmo razoável. Mas também é preciso reabilitar, não desperdiçar recursos, não deixar prédios abandonados. A habitação não é só um problema de construção civil. É também um problema de mobilização do setor imobiliário, de regulação dos recursos e potencialidades que temos em cada território e de capacidade para, a partir daí, responder a um direito básico da população. A construção civil é decisiva para a produção, para reabilitação e para a manutenção, mas é apenas uma das parcelas. É preciso intervir ao nível do ordenamento do território, das medidas fiscais, dos apoios financeiros e das leis. E é preciso regular os abusos de poder num mercado que hoje é global e movimenta muitos milhares de milhões. A Lei de Bases da Habitação aponta as grandes linhas e os grandes instrumentos a usar. Foi aprovada em 2019, até hoje ninguém a pôs em causa, tem que ser cumprida. Temos muito trabalho a fazer. ."A saída de Filipa Roseta foi uma decisão dela, relacionada com a carreira académica, tomada em plena liberdade, que a mim, como mãe, só me cabe respeitar, evidentemente. Dei o meu apoio a Alexandra Leitão muito antes de a minha filha tomar a decisão de sair. Estou contente com o trabalho que ela fez, como mãe e como pessoa que luta nessa área". .No programa lançado, o governo fala também em recuperar, reabilitar, reutilizar. É verdade. Em relação ao parque público, o Estado e as câmaras têm competências para o fazer e devem fazê-lo com recursos financeiros apropriados, o que nem sempre aconteceu. Atualmente, mais de 3 mil milhões de euros do PRR, em fundo perdido e empréstimos, estão afetos à habitação. Sabemos que o Programa Primeiro Direito, que é o principal, está a ser muito mobilizado pelos municípios para reabilitação, podendo presumir-se que se trata de reabilitar casas que já lhes pertencem. É bom que isso aconteça, mas não vai aumentar o nosso parque público. Quanto ao parque habitacional privado - falámos de 98% contra 2% de público -, recordo que há uma grande fatia que não é usada por ninguém. Em 2021 o INE identificou cerca de 723.000 fogos vagos, num total de 6 milhões de habitações existentes em Portugal. Ou seja, cerca de 12%. A pergunta que faço é esta: por que é que a maior parte destes fogos não entra no mercado? Acho que as autarquias deviam poder identificá-los e perceber as razões do fenómeno, para se poderem desenvolver medidas que estimulem o uso efetivo desta reserva de fogos que existem. Não podemos continuar a ignorar este dilema, mesmo sabendo que gera reações encaloradas. Se apenas 5% destes fogos fosse colocado no mercado a preços razoáveis, com incentivos certos, teríamos resposta para dezenas de milhares de famílias que tanto precisam de uma casa para viver. Com a crise habitacional grave que atravessamos em Portugal, este é um caminho que na nossa democracia não pode continuar a ser tabu. Não está otimista quanto ao resultado das medidas do governo, é isso? Não estou, porque são limitadas e pouco fundamentadas. Há uma pressão altíssima do preço das habitações, por razões que têm a ver com a mudança do mercado imobiliário, que hoje é global. Somos um país pequeno, com uma oferta local limitada. Por muito que se construa, a oferta é sempre limitada, sendo que a procura é global e virtualmente ilimitada. Como é que se equilibra uma oferta local limitada com a procura global ilimitada? Com mecanismos de regulação nacionais e transnacionais. Sem isso é impossível. Dados recentes sobre Portugal mostram que quanto mais construção se vai fazendo, mais os preços sobem. A este fenómeno chama-se falha de mercado ou especulação. Feita não necessariamente pelo proprietário individual. Falo de grandes fundos, comandados por pessoas de quem não conhecemos os rostos, que apostam apenas na financeirização da habitação. ."A construção civil é decisiva para a produção, para reabilitação e para a manutenção, mas é apenas uma das parcelas. É preciso intervir ao nível do ordenamento do território, das medidas fiscais, dos apoios financeiros e das leis. E é preciso regular os abusos de poder num mercado que hoje é global e movimenta muitos milhares de milhões" .A habitação deixou de ser algo que tem o destino de ser habitada. Exatamente. Por ser um ativo financeiro. E para quem negoceia em ativos financeiros o melhor é que as casas estejam vazias, já que ter gente dentro é uma complicação. Mas então, como conciliar o investimento estrangeiro em imobiliário com o direito constitucional à habitação? Regulando. Além dos Vistos Gold, tivemos uma política que foi muito perversa para a habitação. Muito positiva para o turismo, mas muito perversa para a habitação. Trata-se do alojamento local (AL). Fala-se em 100.000 fogos que transitaram para AL, mas foram provavelmente mais. Habitações que foram retiradas da bolsa de casas disponíveis, com apoios fiscais superiores ao próprio arrendamento urbano. Insistindo: é possível, enfim, valer aos dois interesses? Há que valer aos direitos constitucionais, quer o direito constitucional à habitação, quer o direito constitucional à propriedade. Os dois têm de ser respeitados, pressupondo um equilíbrio de interesses. Em caso de conflito, um acabará por prevalecer. A Constituição prevê mecanismos que podem condicionar o direito de propriedade em função do interesse público, como a requisição civil e a expropriação, naturalmente com valor justo. Todos os governos se cruzaram no passado com essas ferramentas. Hoje, antes de ir por aí, podemos e devemos usar a fiscalidade e o licenciamento urbanístico como mecanismos reguladores. Uma das vantagens das Cartas Municipais de Habitação, criadas na lei de bases da habitação, é permitir a definição clara, ao nível municipal, da ocupação do território para as diferentes modalidades de habitação. Falta desconstruir a ideia de que problema da habitação se resolve deixando o mercado trabalhar. É um mito. O mercado imobiliário não se autorregula porque o solo é um bem escasso. A lei dos solos enquanto forma de resolver o problema é outro mito?. Mais que um mito, a tentativa de, alegadamente, alterar a lei dos solos foi um equívoco. O que foi alterado foi o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial. Mas a ideia que o governo tinha de transformar terrenos agrícolas em terrenos urbanos, de modo a aumentar a quantidade do terreno barato disponível para habitação, implica investir uma brutalidade de dinheiro nas infraestruturas. Além disso, perdem-se recursos naturais. Temos de ter juízo. O país é muito pequenino, o território é muito frágil, as alterações climáticas estão aí. Não podemos destruir os recursos naturais que nos permitam um mínimo de equilíbrio sustentável, até climático. Até onde pode ir o impacto social da crise da habitação? A falta de casas contribui para uma radicalização da sociedade e, nessa medida, é um perigo brutal. Urge resolver o problema. A ausência de uma resposta decente para a maioria das pessoas que procura casa radicaliza a política e destrói as bases da democracia. Sobre isso não tenho dúvida alguma. Portugal tem de ser capaz de cumprir os direitos que estão na Constituição. Quando olha para a frente, que cidades vê? Tenho do futuro uma imagem que não é tão pessimista como as pessoas a pintam. Estou mais preocupada com este underground mediático, este submundo das redes, que destrói e sabota os valores em que as pessoas acreditavam. As cidades, apesar de tudo, têm uma estabilidade muito maior do que isso. As comunidades existem. As redes de vizinhança existem. As organizações existem e há muita gente a trabalhar. Muita gente, muitas vezes, sem visibilidade. Há capacidades imensas de, com muito pouco dinheiro, fazer coisas extraordinárias. Temos no interior do país cuidadores do território. Temos nos meios urbanos cuidadores da cidade. Sei-o por experiência própria. Os meus últimos anos foram dedicados a dar meios e apoio a essas capacidades nos sítios mais improváveis. Dito isto, há que fazer política de outra maneira e lançar programas públicos de outra maneira. Temos intervenientes políticos à altura? Temos de os chamar, temos de lhes dar condições. Temos de parar com o 'bota abaixo'. Precisamos de uma visão mais cooperativa. Sem cooperação, não vamos lá. Não há um partido, nem dois. Há todos. Todos. Não confio na extrema direita nem um bocadinho, mas naquele partido também haverá gente capaz. Vamos lá ver se a gente consegue olhar para isto com olhos mais humanos, contestando frontalmente as ideias antidemocráticas mas não condenando as pessoas, sobretudo as mais novas, aliciadas por ídolos e não por convicções. Quando passeia hoje por Lisboa? Adoro a cidade, mesmo quando ela não está muito limpa. Até porque conheço as dificuldades em manter Lisboa limpa. Conheço o desprezo que muitas pessoas têm pela limpeza da sua cidade. As que atiram as coisas para o chão, as que não querem nem saber. Há, portanto, um compromisso urgente de cidadania - ter brio no nosso bairro, na nossa rua, praticar e promover comportamentos mais decentes. Façam-se campanhas e apelos. As pessoas têm de compreender que a cidade também somos nós. Cuidar, palavra muito querida de Maria de Lourdes Pintasilgo, é urgente.