"Há atrasos significativos" na recuperação de aprendizagens

Sindicato, professores e diretores escolares pedem medidas urgentes no setor, não só para resolver o problema da falta de professores, mas também para poder recuperar efetivamente as aprendizagens prejudicadas por dois anos de pandemia.

"Até à semana de 24 a 28 de janeiro, que foi o pico dos contágios nas escolas e no país, estivemos a gerir a covid-19, com alunos e professores em isolamento, e com muitos constrangimentos para as aprendizagens. É evidente que isso constitui um problema grande para a recuperação das mesmas. De uma forma global, todas as aprendizagens até ao final do mês de janeiro saíram prejudicadas", alerta Filinto Lima.

O presidente Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos de Escolas Públicas (ANDAEP) admite constrangimentos no cumprimento do Plano de Recuperação de Aprendizagens e pede que seja feito um diagnóstico no final do ano letivo "para perceber se é necessário alargar o período de recuperação", que terminará em 2022-2023.

O responsável aponta ainda para uma situação mais complexa no Algarve e Lisboa e Vale do Tejo, onde a falta de professores foi significativa. Contudo, o presidente da ANDAEP alerta para o facto de já se sentir "o mesmo na zona norte". "Até há pouco tempo estivemos imunes à escassez de professores, mas já se sentem dificuldades para colocar docentes no norte. O problema já se estendeu a todo o país e a verdade é que não é possível recuperar alunos sem professores", afirma Filinto Lima.

Para Arlindo Ferreira, diretor do Agrupamento de Escolas Cego de Maio, na Póvoa de Varzim, a difícil gestão do Plano de Recuperação prende-se com o facto de "o ano letivo estar a decorrer aos solavancos". "Eventualmente, serão necessários mais anos para recuperar. No caso dos alunos de 1.º e 2.º anos, na leitura e na escrita nota-se um atraso considerável. Os de 3.º e 4.º anos também estão com mais dificuldades do que nos anos anteriores à pandemia. Há um atraso significativo que não sei se será possível recuperar", alerta.

"No caso dos alunos de 1.º e 2.º anos, na leitura e na escrita nota-se um atraso considerável. Os de 3.º e 4.º anos também estão com mais dificuldades."

Aumento de licenças sem vencimento

Filinto Lima, que tem alertado para a falta de atratividade da profissão docente e pedido medidas para a tornar mais "apetecível", afirma ser necessário, também, "motivar os professores de quadro". "Neste momento, apercebo-me de que há cada vez mais professores de quadro a pedir licença sem vencimento por um, dois ou mais anos porque se sentem mal numa carreira que não tem futuro. Abandonam as escolas e as escolas estão a ficar cada vez mais pobres. Os professores saem do ensino para mudar para áreas mais atrativas e vantajosas", explica. Não estando previstas alterações no concurso de professores para o próximo ano letivo, Filinto Lima reitera um pedido feito pela ANADEP nos últimos meses: um concurso extraordinário para efetivar professores contratados com experiência.

"O próximo governo tem de dar uma solução. Não queremos regressar ao passado, com professores a lecionar sem habilitações. E este não é um problema que afeta só a escola pública, mas também os privados. Nós queremos professores habilitados e com experiência e há uma solução para isso que é abrir um concurso extraordinário de professores contratados. Têm de entrar para os quadros porque, senão, vão para outras áreas e a educação perde excelentes profissionais", sustenta.

Filinto Lima diz ainda que "o governo tem de encarar a falta de professores como uma pandemia". "É preciso evitar que outra pandemia ataque o nosso sistema de educação. Temos de tomar medidas e não podemos cruzar os braços. É preciso vontade política porque é um problema nacional. A falta de professores não foi uma surpresa como foi a pandemia. É algo que se sabe há muitos anos e também se sabe que a bomba está para rebentar", afirma. O presidente da ANDAEP refere tratar-se de um problema "dramático" que "nenhum governo quis resolver". "A culpa não é deste governo ou do anterior, é de todos. A resolução deste problema é tão urgente, que não admite politiquices para o resolver. Nenhum partido, de direita ou de esquerda, quis olhar para esta questão", conclui.

Para além do concurso extraordinário com efeitos imediatos, de forma a poder ser real já no próximo ano letivo, Filinto Lima diz ser urgente olhar para a tabela salarial dos docentes: "É preciso aumentar sobretudo o vencimento dos primeiros escalões. Os professores que entram na carreira devem ter um salário superior. Deveriam aproximar mais os vencimentos dos professores dos últimos escalões aos do primeiro. É uma grande distância e aumentava substancialmente o vencimento dos professores que estão em início de carreira. Era uma forma de, no imediato, tornar a profissão mais atrativa."

"Não queremos regressar ao passado, com professores a lecionar sem habilitações. E este não é um problema que afeta só a escola pública, mas também os privados."

O diretor do Agrupamento de Escolas Cego de Maio, Póvoa de Varzim, Arlindo Ferreira, também sentiu neste ano letivo, pela primeira vez, dificuldades para preencher as necessidades de docentes. "No norte não era assim. Sempre houve mais procura do que oferta e, neste momento, já não é assim", refere.

Ainda há milhares de alunos sem professores

André Pestana, coordenador nacional do S.T.O.P. (Sindicato de Todos os Profissionais de Educação) aponta, também, grandes dificuldades no cumprimento do Plano de Recuperação, numa altura em que ainda há "milhares de alunos sem professor".

"Apesar do grande esforço e dedicação de todos os profissionais de educação (pessoal docente e não docente), como é que seria possível implementar efetivamente com sucesso um plano de recuperação de aprendizagens para todas as nossas crianças/jovens quando é público que continuamos com milhares de alunos sem professor a uma ou mais disciplinas e muitos outros milhares de alunos estão com "professores" sem formação pedagógica?", questiona.

Tudo isto, diz, "juntamente com outras consequências das políticas educativas injustas deste Ministério da Educação, criam uma profunda desigualdade de acesso dos nossos alunos à educação (que questiona aliás o seu direito constitucional consagrado no artigo 74.º)". "Não se percebe o silêncio ensurdecedor do Presidente da República a esta violação da Constituição e o S.T.O.P. já o alertou várias vezes", sublinha.

Com cerca de metade do ano letivo cumprido, André Pestana faz um balanço negativo deste terceiro ano marcado pela pandemia de covid-19. "Relativamente às medidas no contexto da pandemia, as condições de higiene e segurança para o combate a esta pandemia não mudaram na generalidade das escolas, mas o governo transmite para a opinião pública a narrativa de que as escolas têm todas as condições de segurança. Infelizmente, mais uma vez, tornou-se evidente a falta de assistentes operacionais e de planeamento quanto às medidas de controlo da pandemia nas escolas (e a disparidade entre elas), por exemplo, relativamente ao isolamento profilático dos alunos e turmas ou o atraso evidente dos meios informáticos e tecnológicos para os alunos, professores e escolas", explica.

O sindicalista fala numa "política educativa errada e injusta que efetivamente cada vez mais desmotiva, precariza e sobrecarrega os profissionais que trabalham nas escolas". "Só nos professores, o número de professores contratados/precarizados (desde o início deste governo em 2015) aumentou em cerca de 45% e além disso o governo manteve o fim da gestão democrática nas escolas, a imposição de avaliações artificiais com quotas, aumento do trabalho burocrático, a municipalização que tanto tem precarizado e despedido pessoal não docente, perda significativa do poder de compra ou a passagem involuntária de milhares de profissionais da educação da CGA para a Segurança Social (com gravíssimas consequências), etc.", sublinha.

O coordenador do S.T.O.P. lamenta ainda a "inexistência de uma política concreta para evitar o envelhecimento dos profissionais da educação". No que se refere às condições de trabalho dos professores, o sindicalista destaca, ainda, "o assédio laboral que eles sofrem regularmente". "Um estudo recente revela que 75% dos docentes em Portugal afirmam já ter sido vítimas de assédio moral, sendo as direções escolares as principais responsáveis. Para não falar no roubo do tempo de serviço que tanto desmotiva e indigna a classe docente", conta, reforçando ainda o "problema da falta de professores que ainda afeta milhares de alunos".

André Pestana diz não entender "o silêncio" de Tiago Brandão Rodrigues. "O ministro da Educação, se já aparecia poucas vezes em público para dar explicações dos problemas prementes nas escolas, desde o início do ano letivo desapareceu ainda mais. Nunca houve negociações nem vontade de dialogar com objetivo de solucionar estes e outros graves problemas", afirma.

Concurso de professores

O concurso de professores para o próximo ano letivo está prestes a começar, e sem alterações previstas. André Pestana afirma que não é esse o principal fator para combater a falta de docentes. "Os concursos (e as suas regras), apesar de importantes, não resolvem per si todos os problemas. No entanto, fazer alterações profundas nas políticas educativas iria certamente ajudar a resolver graves injustiças que afetam os profissionais da Educação e também ajudar a resolver a falta cada vez maior de professores, que prejudicam severamente milhares de alunos", diz. "Nomeadamente: alterar os ataques sofridos nas últimas décadas por quem trabalha nas escolas, diminuir o número de alunos por turma, criar incentivos para os profissionais de educação deslocados (subsídio de transporte e/ou alojamento como acontece noutras profissões) e, nos concursos, criar por exemplo uma lista única de graduação profissional (uma para concurso interno e outra para concurso externo), reduzir o tamanho dos Quadros de Zona Pedagógica, não criar dificuldades aos colegas da Mobilidade Interna e permitir a vinculação a todos os profissionais de educação com mais de três anos de serviço (independentemente de a entidade patronal ser o Ministério ou as autarquias)."

"O ministro da Educação, se já aparecia poucas vezes em público para dar explicações sobre os problemas prementes nas escolas, desde o início do ano letivo desapareceu ainda mais."

Para Arlindo Ferreira, "o ideal era fazer uma abertura de novos lugares para professores de quadro de agrupamento", mas, explica, é uma situação que "carece de negociação e o governo só tomará posse no final de março". "Não haverá tempo para isso", lamenta.

Alunos em isolamento não têm acesso a aulas à distância

Luís Sottomaior Braga, professor de História e especializado em gestão e administração escolar, acredita que "a ideia de recuperação de aprendizagens baseada em aumento de aulas e apoios é muito sobrevalorizada". "Na verdade é ineficaz, porque o problema é mais qualitativo do que quantitativo. Até suspeito de que há quem fale muito de recuperação como forma de justificar programas e projetos de lucro privado na educação. Há aspetos que ajudariam à recuperação do sistema educativo (cuja necessidade é anterior à pandemia) que estão a ser desvalorizados: o ânimo e motivação dos professores, por razões da conjuntura pandémica e motivos estruturais, o estado psicológico dos alunos, a falta de meios e recursos das escolas. Por exemplo, a maioria do parque informático, que podia mudar tanto e rapidamente a qualidade do trabalho das escolas, é do tempo do plano tecnológico, tem 12 anos", explica.

"Os recursos humanos não aumentaram (na verdade diminuem, com baixas e com as grandes dificuldades em substituir). Muitos alunos e professores em confinamentos de sete dias ficam sem acesso à escola porque objetivamente não é possível ligá-los às aulas: a rede não aguenta", descreve.

Para Luís Sottomaior Braga, o governo deveria "apostar num efetivo plano de reforma educativa de longo prazo, sustentado em provas e análises realistas e não dogmas de académicos". E dessas reformas, explica, devem fazer parte medidas para colmatar a falta de professores, nomeadamente nos concursos.

"Há princípios que têm de ser mantidos e são essenciais: o concurso deve ser nacional e nunca retalhado em concursos locais (e diria que isso é essencial à unidade nacional), deve ser baseado numa fórmula de avaliação curricular (graduação) e deve visar nas suas várias etapas que os candidatos, ao fim de alguns anos, atinjam um lugar de quadro em escola. Assumidos estes princípios, há algumas mudanças que se podem fazer e que seriam justas e úteis, como assumir a vinculação com base no tempo de serviço total e não com base no número de contratos anuais sequenciais (ex.: acesso a vinculação extraordinária com vagas suficientes para todos os que tenham seis anos completos acumulados de serviço público nos últimos dez), bonificar o tempo de serviço e pagar segurança social por horário completo a quem aceitar substituições, pagar deslocações e alojamento a quem se deslocar mais do que um certo número de horas de viagem ou quilómetros do local de residência indicado no concurso para um período de seis anos (para evitar fraudes), reduzir o tamanho dos quadros de zona, bonificar o tempo de serviço prestado em TEIP e zonas onde faltam professores, impedir reconduções de professores contratados que não tenham concorrido a nível nacional, usar a graduação como critério (reduzindo a existência de prioridades ao critério do tempo mínimo de serviço público em todos os concursos de quadro, incluindo mobilidade por doença em que o grau de doença deve ser também graduado e obrigar o Estado a ser transparente nas vagas disponíveis", explica.

Luís Sottomaior Braga acredita também que se devem aumentar salários dos docentes: "Ninguém se mete num processo destes se o destino for igual ao dos que nele entraram há dez ou 15 anos. Melhorar os concursos implica mexer no ambiente profissional docente todo".

dnot@dn.pt

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