Grécia só emitiu mandado europeu contra Bashir no dia seguinte ao massacre em Lisboa
Quando Farana Sahbudin Sadrunin e Mariana Rodrigues Moreira Jadaugy foram, a 28 de março de 2023, no Centro Ismaili de Lisboa, selvaticamente atacadas com uma faca de cozinha por Abdul Bashir Hussain Kheili (ou Khil), cidadão afegão que entrara em Portugal com estatuto de refugiado concedido em 2020 na Grécia, há mais de um ano que as autoridades gregas tinham emitido um mandado de detenção contra ele - por suspeitarem de que tinha matado a própria mulher, mãe dos seus três filhos. Mas "só após o pedido de informação sobre o suspeito por parte das autoridades portuguesas, na sequência do duplo homicídio em Portugal, foi emitido na Grécia um mandado internacional”, garante ao DN uma fonte judicial portuguesa que acompanhou a investigação.
De facto, de acordo com o despacho de acusação contra Bashir - ao qual o DN teve acesso e que lhe imputa 11 crimes, incluindo dois homicídios agravados e seis homicídios na forma tentada - o “Mandado de Detenção Europeu n° 5/2023” exarado pelo Ministério Público do Tribunal da Relação do Egeu Norte (Grécia) “com vista à detenção do arguido, com a identificação de Abdul Bashir Hussain Khil ou Kheili, nascido em 22.12.1990 ou 21.12.1994, no Afeganistão, residente em Atenas (…) ou em Nea lonia, Ática (…) ou em Portugal e de paradeiro desconhecido”, data exatamente de 29 de março de 2023. A mesma fonte judicial portuguesa já citada diz ao DN desconhecer o motivo dessa falha das autoridades gregas, sem a qual se poderia ter evitado o duplo homicídio.
Porém no despacho de acusação é igualmente mencionado um “alerta no Sistema Schengen” para “detenção e entrega ou extradição do arguido” datado de 15 de março de 2023, e que desse alerta constava “uma cópia do aludido Mandado de Detenção Europeu”- algo que ou constitui um erro de data ou significa que afinal o mandado europeu era anterior a 15 de março, e nesse caso foram as autoridades portuguesas que falharam. O DN tentou esclarecer este facto com a fonte judicial citada, sem sucesso.
“Em vez de a acordar e tirar da cama deixou-a morrer”
Seja qual for o caso, o mandado europeu não deixa dúvidas sobre a evidência de as autoridades gregas considerarem Bashir uma pessoa perigosa: nesse mandado, sempre de acordo com o despacho de acusação do MP português, são-lhe imputados os crimes de homicídio voluntário e fogo-posto, por ter alegadamente matado a sua mulher, Nazanin Hussain Khil, de 27 anos, “com frieza de ânimo”, incorrendo “o arguido, em abstrato, na pena de prisão perpétua ou efetiva de pelo menos dez anos”.
Exarado na sequência de um mandado de detenção nacional assinado por um juiz de instrução criminal a 5 de janeiro de 2022, o documento acusa Bashir de, no Centro de Acolhimento e Identificação Kara Tepe (na ilha de Lesbos), às duas da manhã de 5 de dezembro de 2019, ter ateado fogo “com chama direta” no contentor/abrigo que fora atribuído como morada à sua família, e deixado “uma botija de gás ao lado da mulher da cama da mulher, que se encontrava a dormir”.
Segue a narrativa: “Entretanto, a roupa de cama da mulher começou a arder e ele levou apenas os seus três filhos e saiu do abrigo e, quanto à sua mulher, em vez de a acordar e de a tirar da cama, deixou-a a morrer, já que esta era a sua intenção desde o início (…). A seguir, não fez nenhuma tentativa de apagar o fogo, e impediu o seu vizinho (…), de tentar apagar o fogo, quando o viu entrar no abrigo (…) com um extintor nas mãos, dissuadindo-o, dizendo-lhe que o fogo era de grandes dimensões e que se ia queimar.” 20 minutos depois, lê-se, “houve uma explosão dentro do abrigo”, no qual seria depois encontrado o corpo carbonizado de Nazanin.
Não há no despacho de acusação relativo aos crimes cometidos no Centro Ismaili informação sobre a data de abertura do processo-crime na Grécia contra o cidadão afegão. Porém, na sequência da tragédia ocorrida em Lesbos, o homem, que chegara à Grécia com a família em julho de 2019 vindo da Turquia (onde vivera mais de dois anos e onde nasceram os dois filhos mais novos), seria transferido com as três crianças para o continente grego e acabaria por conseguir o estatuto de refugiado em novembro de 2020, assim como autorizações de residência para os quatro.
Como referido, quando na Grécia foi exarado um mandado de detenção contra Bashir, ele e os filhos encontravam-se já em Portugal, onde entraram, em 19 de outubro de 2021, ”ao abrigo do Programa de Recolocação de Refugiados”.
“Temos de ter muito cuidado com ele, porque já deu para ver que é maluco”
Lê-se no despacho de acusação do MP português que “no seu processo de recolocação não constava qualquer informação prévia relativamente à suspeita de crime grega que impendia sobre [Bashir]”. É no âmbito desse processo que o cidadão afegão e os três filhos ficam a cargo da Rede de Desenvolvimento Aga Khan, com sede no Centro Ismaili de Lisboa, e cuja coordenadora nacional era Farana Sadrudin, uma das vítimas do duplo homicídio de 28 de março de 2023.
Mariana Jadaugy, a outra vítima mortal (com 24 anos à data da morte), viria a ser encarregada de acompanhar o agregado familiar de Bashir apenas a partir de 20 de abril de 2022 - ou seja, mais de três meses depois de existir um mandado de detenção na Grécia contra o cidadão afegão, e quando este já iniciara um estranho padrão de mensagens e emails, primeiro para Farana, depois para Mariana e, por fim, para a princesa Zahra Aga Khan (filha do Príncipe Aga Khan IV, o 49.° Imam da comunidade muçulmana ismaelita), nas quais misturava queixas de toda a ordem com certificações de respeito e estima, declarações amorosas e outro tipo de comportamento abusivo.
Diagnosticado agora, como se lê no despacho de acusação, com “anomalia psíquica”, “quadro psiquiátrico de esquizofrenia”, “perturbação de personalidade mista, designadamente perturbação de personalidade narcísica e perturbação de personalidade anti-social”, tendo sido requerida “declaração de inimputabilidade” e internamento num hospital psiquiátrico, Bashir fora logo a 9 de maio de 2022 caracterizado por Mariana como “maluco” e incontrolável numa mensagem para Farana.
“Sinceramente sinto que o caso dele está a escalar e nós não temos como ter mão nele", escreveu Mariana. "Temos de ter muito cuidado com ele, porque já deu para ver que é maluco”.
Porém nesse mesmo mês, quando, informa o despacho do MP, Bashir “foi rastreado no âmbito da saúde mental pela Cruz Vermelha, em três momentos diferentes", os técnicos concluíram "pela inexistência de indicadores significativos que revelassem necessidade de intervenção psicológica subsequente, não apresentando reações de stress pós-traumático e, ainda, que não manifestava necessidade de ser seguido pelos serviços de psicologia, nem tinha intenção de colaborar nessas intervenções”.
De resto, de acordo com emails que tentou enviar à princesa Zahra (esta foi bloqueando os diversos endereços que o cidadão afegão ia criando) desde dezembro de 2022 até à madrugada da matança, Bashir, que demonstrava no que escrevia estar cada vez mais perturbado, viria posteriormente a recusar apoio que lhe foi oferecido por Mariana em termos de saúde mental.
“Conspirações contra si”, sonhos com “pessoas mortas” e “facas na mão”
A atitude abusiva de Bashir foi criando cada vez mais problemas na relação com Farana e Mariana. Em setembro de 2022, Farana avisou-o de que não devia mais contactá-la, e que só poderia comunicar com ela através de Mariana. A partir de outubro o cidadão afegão passou a tentar também junto desta aquilo que o MP designa de “aproximação romântica”, embora por vezes discutisse com ela “de forma ríspida”; também Mariana lhe disse que não lhe admitia tais comportamentos. No entanto Abdul Bashir continuou a enviar mensagens às duas.
Em dezembro, como já referido, Bashir começou igualmente a enviar emails para a princesa Zahra, com a qual, certifica o despacho de acusação, estabeleceu, apesar de nunca obter resposta, “um vínculo unilateral de caráter amoroso”.
Ainda de acordo com o relato do MP, nos emails para Zahra o cidadão afegão pedia ajuda, garantia que a equipa do Centro Ismaili “o queria prejudicar” e que existiam “conspirações contra si”. Em março de 2023 começou a relatar “sonhos terríveis e assustadores” , enquanto, revela o seu histórico de pesquisa na internet, procurava explicações para o significado de sonhos envolvendo “atos de violência e pessoas mortas”, “matar com armas” e “ter uma faca na mão”.
A 18 de março, 10 dias antes dos homicídios, relatou num email para a princesa que andava com uma faca para se defender. No dia seguinte, voltou a falar da faca, dizendo - relata o MP - que “queria que ela compreendesse que não tinha outra opção, porque tinha medo e só a tinha levado para se proteger e mais nada e pedia-lhe desculpa, do fundo do seu coração, pela faca.”
Nem esses emails nem outros posteriores, nos quais referia a faca, foram recebidos pela destinatária, porque esta bloqueou o endereço do remetente.
Auto-deportação, repreensão e matança
A 21 de março, narra o despacho do MP, Bashir enviou um e-mail para o Presidente do Conselho Nacional da Comunidade lsmaelita, com conhecimento para Farana, no qual informou que "tendo em conta a situação de solidão em que os seus filhos viviam e o facto de a sua família no Paquistão sofrer muito com a situação de solidão e desespero deles, tinha decidido que se iriam deportar para o Paquistão" e pedia que o ajudassem nos documentos necessários.
A 27, convocado por Farana para o respetivo gabinete e na presença de Mariana, Bashir foi repreendido por "ter faltado, com os seus filhos, sem aviso prévio, a uma visita, ao Jardim Zoológico, no sábado anterior". Foi-lhe explicado que "os bilhetes estavam pagos e que, com a sua atitude, tinha privado os filhos daquela atividade e desperdiçado o dinheiro que o projecto tinha despendido, impedindo que outras famílias pudessem usufruir (...)".
Na manhã seguinte, Bashir, que comprara entretanto passagens aéreas, para si e os seus filhos, com destino a Zurique, entrou no Centro Ismaili com a dita faca e, após estar algum tempo numa aula de português, dirigiu-se ao gabinete de Farana, de 49 anos, esfaqueando-a repetidamente. Mariana tentou socorrê-la e foi igualmente esfaqueada. Esfaquearia ainda o professor, Diogo Piedade (que sobreviveu), e tentou esfaquear outras pessoas, incluindo outros refugiados e dois agentes da PSP que acabaram por atingi-lo a tiro.