Gratuitidade de autotestes é "um investimento" e não "um custo para o Estado"
No dia em que políticos e peritos voltaram a reunir-se no Infarmed para avaliar a situação epidemiológica provocada pelo SARS-CoV-2, o país voltou a bater um recorde em número de casos de infeção: 39 570. Mas, segundo afirmaram ontem no anfiteatro do Infarmed os técnicos do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA), perante o Presidente da República, o primeiro-ministro, a ministra da Saúde e outros representantes políticos e parceiros sociais, o pico desta onda epidémica só deverá ser atingido na segunda semana de janeiro, podendo os números de novas infeções oscilar entre as 40 mil e as 130 mil, com o subsequente aumento, "também muito elevado, de pessoas em isolamento".
O epidemiologista Baltazar Nunes referiu mesmo que "o total de pessoas isoladas em quarentena pode variar entre 4% e 12% da população". Ainda ontem, a incidência por 100 mil habitantes também bateu recordes: 2104,7 a nível nacional e 2114,3 no continente. O R (t) subiu para 1,41 em todo o país.
O vice-presidente da Associação Portuguesa de Médicos de Saúde Pública (APMSP), Gustavo Tato Borges, argumentou ao DN que "se não fosse a benignidade que a doença assumiu já estaríamos todos em casa fechados com estes valores de incidência e de R (t)".
A verdade é que a variante Ómicron - identificada na África do Sul, que em pouco mais de um mês se espalhou pelo mundo e que já é dominante na Europa, incluindo Portugal - trouxe um maior nível de contágio, mas menos gravidade. Por exemplo, ontem, apesar dos 39 570 casos, registaram-se apenas 14 óbitos, estando ainda a taxa de ocupação de cuidados intensivos longe da linha de risco, acima dos 70%. Ontem havia 143 pessoas em UCI, de um total de 1251 internados.
Ou seja, e como explicaram os técnicos do INSA na reunião, apesar de o número de os números relativos a novas infeções serem elevados, os que retratam a gravidade da doença são bem diferentes dos que registávamos no ano passado por esta altura. Havia menos casos, mas as mortes atingiam quase as duas centenas e os internados em cuidados intensivos rondavam quase um milhar.
E é esta mudança de cenário que levou os especialistas reunidos com o governo a defender que, a bem da sociedade, da saúde mental e da vida económica, se aligeirem as medidas tomadas a 21 de dezembro, passando o objetivo a alcançar a ser o da "autogestão" da pandemia, no reforço da responsabilidade de cada cidadão, dando-lhe para isso mecanismos que permitam gerir a sua perceção de risco e o seu comportamento.
A pneumologista Raquel Duarte explicou ao DN que "esta mudança de estratégia é importante para podermos viver uma vida o mais normal possível e em segurança", sublinhando: "Desde o início que a nossa filosofia tem sido a de apostar na saúde da população, mas olhando também para o impacto social, económico e psicológico da pandemia. E para olharmos para esta faceta multidisciplinar precisamos de ter todas as atividades do nosso dia a funcionar com segurança, porque a pandemia não acabou, o vírus continua a circular e temos milhares de casos por dia. Portanto, o que precisamos de pôr em prática é o que já sabemos que funciona: o acesso à testagem, a distância social, a boa ventilação nos espaços interiores e o uso correto da máscara."
Todas estas medidas estão incluídas na proposta ontem apresentada pela médica no Infarmed. "Propomos um aligeirar das medidas porque defendemos a abertura das escolas já na próxima semana, o fim da obrigatoriedade do teletrabalho, a abertura de bares e de discotecas e não impomos lotação de pessoas em espaços interiores - embora se mantenha o número de pessoas por metro quadrado - desde que sejam cumpridas todas as outras regras gerais de saúde pública. Só assim conseguiremos ter a sociedade a funcionar em pleno e com segurança"
O grupo liderado por Raquel Duarte propôs ainda que o convívio familiar se restrinja a grupos inferiores a dez pessoas, que estas usem máscara fora do período da refeição e que façam testagem prévia. Nas celebrações (casamentos, batizados) deve evitar-se grupos com mais de cem pessoas, tendo o evento de ter uma avaliação do risco que existirá e testagem prévia.
Aliás, a testagem é, mais uma vez, considerada uma das medidas fundamentais para fazer face a mais uma onda epidémica. A pneumologista do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, que integra também a equipa de investigação da ARS do Norte, explicou aos políticos que o porquê da razão de agora virem pedir a gratuitidade dos autotestes. Na proposta feita pode ler-se: "Devem tornar-se os autotestes acessíveis e gratuitos, sem esquecer as populações marginalizadas; promover a utilização do autoteste com a possibilidade de validação (presencial ou remota) por profissionais de saúde, assim como o seu registo para efeito da certificação; e dar capacitação aos serviços e explicar de forma clara aos cidadãos o que fazer perante um teste positivo". Segundo o grupo de peritos que trabalhou a proposta, esta medida reforçaria a testagem e aliviaria os profissionais de saúde, que já estão sobrecarregados com outras funções.
Para o vice-presidente da APMSP, Gustavo Tato Borges, a gratuitidade dos testes é uma medida positiva, até porque "nesta fase da pandemia a autogestão dos casos positivos e do isolamento profilático é fundamental. Os profissionais já não conseguem chegar a todas as pessoas e, hoje, os portugueses já sabem perfeitamente quando têm um sintoma de maior preocupação, necessidade de testagem e de autoisolamento. Se as pessoas tiverem acesso de forma livre a mais testes, mais vezes se testam e mais depressa encontramos casos positivos e quebramos cadeias de contágio".
Filipe Froes, o pneumologista coordenador do Gabinete de Crise para a Covid-19 da Ordem dos Médicos, argumentou mesmo que "a medida não é um custo para o Estado, mas um investimento no controlo da infeção", explicando: "A testagem aumenta e até poderemos abdicar da realização de testes PCR, no caso de pessoas com o esquema vacinal completo, que dessem positivo e que fossem assintomáticas."
Para o médico, esta medida é tão importante quanto o acelerar da vacinação de reforço, para maiores de 50 anos, e da segunda dose para as crianças, que deveria ter um intervalo de apenas quatro a cinco semanas, já que estas "precisam é de ser protegidas agora em janeiro, quando vivemos o pico, e não em abril ou maio quando já não será necessário". E vai mais longe ao defender que "a solução para esta fase da pandemia está na vacinação de reforço. É nisto que nos devemos concentrar nas próximas semanas. Tudo o que fizermos em termos de vacinação de reforço é um meio de nos aproximarmos do fim desta onda pandémica e do impacto desta variante na nossa população e no nosso país".
Questionados sobre se as medidas propostas são as adequadas ou se se poderia fazer mais, Gustavo Tato Borges considerou que "as medidas propostas são as que fazem sentido para a fase que estamos a viver, permitem que a economia continue a funcionar, portanto não há necessidade de mexer muito nelas", enquanto Filipe Froes, sublinhou, que, na sua opinião, a recomendação do teletrabalho deve ser mantida. "A obrigatoriedade vai ser difícil, mas deveria continuar a ser recomendado sempre que possível, para salvaguarda da proteção dos próprios e pela diminuição do risco da transmissão na comunidade".
O representante da Ordem dos Médicos sustentou que "cada empresa deve fazer a sua avaliação de risco e saber o que é melhor para a empresa, para os seus colaboradores e para o país. E agir de acordo com essa premissa".
O governo avalia hoje as medidas apresentadas pela equipa de Raquel Duarte que assentam na estratégia célere no diagnóstico e rastreio através do "fácil acesso aos métodos de diagnóstico perante suspeita (...) e no reforço de campanhas que expliquem às pessoas o que devem fazer em caso de testarem positivo (...)", mas também na capacitação dos serviços de forma a reduzir "a carga do Trace Covid na atividade dos médicos de medicina geral e familiar, para que estes possam dedicar-se mais aos doentes de maior risco, em isolamento, garantindo-lhes o contacto célere e direto perante sinais de agravamento".
E, mais uma vez, a forma de comunicar será fundamental para se conseguir uma maior envolvência da comunidade. A proposta apresentada por Raquel Duarte refere ser "importante que haja uma estratégia de comunicação clara sobre a avaliação de risco, como fazer um autoteste, como proceder perante um autoteste positivo, desde a necessidade do isolamento e por quanto tempo, como se pode aceder à plataforma para registo do teste e seu resultado e como é feita a identificação de contactos, entre outras orientações". Ou seja, não basta tornar os autotestes gratuitos, a população tem de ser ensinada sobre a forma como deve agir.
Para estes especialistas os sinais de alerta para uma mudança de estratégia devem soar quando a taxa de internamento em UCI atingir os 70%. "Propõe-se que, se for atingida a fasquia dos 70%, ou seja, 179 internamentos em UCI e um R(t) superior a 1, sejam aplicadas medidas a fim de contribuir para uma travagem precoce do respetivo impacto da doença"; "propõe-se ainda que o indicador de referência para os internamentos em UCI seja uma média a cinco dias, de modo a que este se torne mais robusto face a eventuais variações diárias causadas por perturbações de reporte".
O importante agora é conseguir-se a "autogestão da pandemia". O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa já disse confiar na responsabilidade dos portugueses para se atingir este objetivo. Falta o Conselho de Ministros decidir. Está confirmado que, após a reunião, alguém apresentará as conclusões aos jornalistas, não se sabendo a que horas. É possível que seja o primeiro-ministro, mas ontem à hora do fecho desta edição não estava confirmado.
Com João Pedro Henriques