Após umas eleições legislativas convocadas na decorrência do “caso Spinumviva” — a empresa do primeiro-ministro Luís Montenegro — e das dúvidas sobre a conduta ética e o respeito pelas normas da transparência do chefe do anterior governo, o atual Executivo evidencia não considerar necessário efetuar ajustes em matéria de transparência e normas éticas.Assim, aprovou, a 23 de junho, um código de conduta decalcado do aprovado pelo governo anterior, e anuncia que se mantém em vigor o Plano de Prevenção de Riscos de Corrupção cuja aprovação fora anunciada pelo primeiro executivo de Montenegro a 13 de fevereiro de 2025 — dois dias antes de “rebentar” o caso Spinumviva — e que só seria tornado público a 5 de junho, em Diário da República, no exato dia em que aquele governo se extinguiu e tomou posse o atual.A decisão de não alterar os instrumentos de prevenção de corrupção contraria frontalmente a recomendação que o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) exarou a 22 de maio, quatro dias após as eleições. Nesta, como o DN noticiou, a entidade independente falava da “necessidade premente de promover a confiança dos cidadãos nas instituições do Estado de Direito assegurando a transparência e o controlo da integridade nos órgãos de soberania” e invocava “a experiência” — ou seja, os acontecimentos ocorridos durante a vigência do primeiro governo de Luís Montenegro — para justificar a necessidade de “atualização e aperfeiçoamento” de uma recomendação anterior, de fevereiro de 2024, referente também ao Código de Conduta e ao Plano de Prevenção de Riscos do Governo. Entre esses “aperfeiçoamentos”, o MENAC incluiu a necessidade de registo e publicitação das escusas: “A Secretaria-Geral do Governo deve dispor de registo centralizado dos pedidos de escusa por parte de membros do Governo e de membros dos gabinetes relativamente a processos decisórios e publicitar, da forma que considerar mais adequada”.Ora, como o DN já havia assinalado, o Plano de Prevenção de Riscos de Corrupção publicado a 5 de junho nada menciona sobre registo de escusas ou a respetiva publicitação. De resto, questionado desde 6 de março pelo DN sobre essa matéria — nomeadamente, sobre quantos pedidos de escusa haviam sido apresentados por membros do executivo e a propósito de que temas, se esses pedidos eram objeto de registo — o anterior governo nunca deu qualquer esclarecimento.No entanto, quer Luís Montenegro quer o anterior e atual ministro da Presidência, António Leitão Amaro, garantiram publicamente terem-se escusado de participar em processos decisórios devido a conflitos de interesses. Tais garantias surgiram após as notícias sobre a empresa do primeiro-ministro e o facto de esta receber avenças de várias empresas (entre as quais uma concessionária de jogo), e sobre a empresa de um cunhado de Leitão Amaro que, relacionada com o combate aos fogos, está sob investigação do Ministério Público. A título de curiosidade, refira-se que há governos europeus que publicitam de forma totalmente “aberta” os pedidos de escusa, ou impedimentos, devido a conflitos de interesse, dos seus membros. É o caso do executivo francês, que na sua página de internet elenca, governante a governante, a lista de impedimentos. O primeiro-ministro François Bayrou, por exemplo, por ser criador de cavalos, “não conhece atos de qualquer natureza relativos a criação de cavalos ou à organização de concursos hípicos”.MENAC admite ter sido ignorado“As recomendações do MENAC dirigidas ao Governo têm natureza orientadora e visam promover boas práticas de integridade, sem caráter obrigatório. Não são ordens mas constituem um apelo para se adotar determinado caminho, competindo depois aos destinatários seguirem ou não os termos da recomendação”, diz, em resposta ao pedido de reação do DN, o gabinete do presidente do Mecanismo, juiz conselheiro António Pires Henriques da Graça. Declinando qualquer comentário ao facto de os seus apelos terem sido ignorados pelo anterior e pelo atual executivo — “O MENAC não irá através da comunicação social fazer apreciações relativamente a opções substanciais e procedimentais do Governo nestas matérias” —, a direção do Mecanismo adianta no entanto que, “à semelhança do que fez relativamente às Recomendações anteriores” (…), analisará, em sede própria, as questões que as suas Recomendações (…) suscitem”. A sede própria, esclarece, será o relatório anual do MENAC.Ainda assim, esta entidade, cuja missão é “promover a transparência e a integridade na ação pública e garantir a efetividade de políticas de prevenção da corrupção e de infrações conexas”, admitiu ao DN que só teve conhecimento do Plano de Prevenção de Riscos de Corrupção do governo anterior aquando da respetiva publicação em Diário da República. Motivo pelo qual frisa, na recomendação que exarou a 22 de maio de 2025, que quer o código de conduta quer o referido plano devem ser elaborados pelo governo no prazo de 60 dias após o início de funções, “publicados no prazo de 10 dias a contar da sua aprovação e comunicados ao MENAC, preferencialmente através da Plataforma RGPC”. A referida plataforma, que tem o nome do Regulamento Geral de Prevenção da Corrupção (decreto-lei n.º 109-E/2021, de 09 de Dezembro), está operacional desde 25 de novembro de 2024.Mas a recomendação de maio de 2025 não é a única ocasião em que o MENAC “admoestou” publicamente o primeiro executivo de Montenegro: no relatório anual de 2024, datado de abril de 2025, este organismo fá-lo nas páginas 27/28. Chamando a atenção para a recomendação exarada em fevereiro de 2024 (a dias das legislativas de 10 de março desse mesmo ano) sobre a necessidade de elaboração dos referidos código e plano pelo governo no prazo de 60 dias após a respetiva tomada de posse, passa a relatar que o primeiro executivo de Luís Montenegro aprovou o Código de Conduta em 24 de abril de 2024, estabelecendo neste um prazo distinto, de 180 dias (ou seja, o triplo) do prescrito pelo MENAC para a aprovação do plano de prevenção de riscos de corrupção. Lendo-se igualmente nesse Código de Conduta, sublinha o MENAC no seu relatório, que “a adoção e o cumprimento do plano referido (…) são efetuados em articulação com Mecanismo Nacional Anticorrupção”, esta entidade diz ter procurado auxiliar o governo nessas tarefas. Assim, narra o MENAC, no dia 5 de junho de 2024 (ou seja, dentro do prazo dos 60 dias que a entidade prescrevia para a aprovação do plano), o vice-presidente do MENAC e o consultor-coordenador reuniram com o diretor de Transparência, Serviços Jurídicos, Auditoria e Inspeção da Presidência do Conselho de Ministros (PCM). Na sequência dessa reunião, prossegue o relatório, o MENAC “elaborou um documento com pistas de trabalho dirigidas ao governo nesta matéria”, que informa ter remetido, no dia 17 de junho de 2024, para o referido funcionário da PCM. Não existindo desenvolvimentos, seis meses depois, a 15 de janeiro de 2025, o presidente do MENAC enviou um ofício dirigido ao secretário-geral do governo, Carlos Costa Neves (que tomara posse no dia anterior), informando dos contactos estabelecidos e reiterando “a disponibilidade do MENAC para prestar a colaboração que fosse entendida necessária para a execução destas tarefas.” Porém, conclui-se, “até à presente data não foi recebida qualquer resposta”. Governos não podem ser sancionados A atitude do anterior executivo de Luís Montenegro para com o MENAC não apanha desprevenida Susana Coroado, investigadora correspondente da Comissão Europeia no domínio da corrupção e da boa governança. “Não me surpreende. Por dois motivos: primeiro, na prática, o governo despediu a direção do MENAC, logo mostra que não lhe reconhece grande autoridade; segundo, mesmo tendo sido aprovado em fevereiro de 2025, o Plano de Prevenção de Riscos de Corrupção só foi tornado público depois de a recomendação de maio do MENAC ter sido publicada, pelo que se o governo tivesse querido fazer alterações ao plano, já as teria feito.”O “despedimento na prática” que Susana Coroado refere é o anúncio, pelo governo anterior, efetuado a 13 de fevereiro, de que iria reestruturar o MENAC com o objetivo expresso de “superar as dificuldades de funcionamento detetadas desde a sua criação em 2021”, dotando-o “de uma nova lei orgânica, criando um Conselho de Administração e viabilizando um quadro de pessoal próprio”.O diploma que efetua essa reestruturação foi promulgado a 16 de abril, “com dúvidas”, pelo Presidente da República e publicado a 29 do mesmo mês — datas em que o governo estava já em gestão. Entrando em vigor a 29 de maio, operou a destituição formal do presidente do MENAC que aguarda apenas, para sair, a nomeação dos novos dirigentes.Certo é que, seja qual for a direção do organismo, os governos, por não fazerem parte das entidades abrangidas pelo Regulamento Geral de Prevenção da Corrupção (RGPC), não estão obrigados a acatar as suas recomendações.Isso mesmo sublinha o MENAC: “O Governo, enquanto tal, não é uma entidade abrangida pelo RGPC, por não ser uma pessoa coletiva nem uma entidade administrativa independente.” Em última análise, então, os governos nem sequer têm de aprovar códigos de conduta e planos de prevenção de corrupção? “Devem fazê-lo”, responde o MENAC. “Devido à importância da sua missão os gabinetes dos membros do Governo devem dispor de mecanismos que fomentem a transparência e previnam os riscos de corrupção e infrações conexas. A este respeito é importante referir recomendações feitas pelo Relatório do Grupo de Estados contra a Corrupção (GRECO) do Conselho da Europa na Quinta Ronda de Avaliação a Portugal.”Decorre destes factos que nem os prazos referidos no regulamento nem as sanções nele previstas para as entidades que não aprovem os referidos instrumentos e/ou não os comuniquem ao MENAC — contraordenações puníveis, respetivamente, com, no caso de pessoas coletivas, coimas de 2000 a 44 891,81 euros e de mil e 25 mil euros — são aplicáveis aos executivos.De acordo com o MENAC, havia, no último dia de junho, cerca de 300 entidades públicas que ainda não tinham cumprido as obrigações do regulamento, terminando o prazo de regularização exatamente esta segunda-feira. O MENAC informa ainda que “tem atualmente 44 processos de averiguação em curso, abertos na sequência de auditorias da Inspeção-Geral de Finanças. Desses 44 processos, 10 estão prontos para decisão final. Nos referidos 10 processos, em sete está em causa o incumprimento do artigo 6.º do RGPC [que diz respeito ao plano de prevenção de corrupção]. Os referidos 10 processos dizem todos respeito a fundações”.