Gabriela Faria, a luso-sul-africana que quer construir um Portugal para todos “em conjunto”
Nesta terça-feira de manhã, o espaço do Lisbon Project está meio vazio. Passada uma sala de entrada de dimensões reduzidas, deparamo-nos com um open space onde, num canto, um membro da equipa de empregabilidade ajuda uma mulher a fazer um currículo, noutra mesa, a equipa de Educação discute os cursos que a organização oferece aos migrantes e refugiados, noutro a equipa de People and Culture, ou seja os recursos humanos, analisam candidaturas de estagiários e os processos de candidatos. “Amanhã temos o nosso pequeno-almoço mensal, por isso, hoje muita gente ficou em teletrabalho”, explica Gabriela Faria, enquanto mostra o espaço, um antigo armazém em Arroios, precisamente uma das zonas mais multicultutrais de Lisboa.
Fundadora, CEO e alma do Lisbon Project, Gabriela não esconde que a sua ambição hoje, mais de oito anos depois de ter lançado este projecto, é levá-lo para fora de Lisboa. “É esse o plano. Este ano temos várias prioridades e uma delas é aumentar a nossa voz, para sermos influência na narrativa da imigração”, explica a luso-sul-africana. E acrescenta que o sonho da sua equipa, neste momento, é “ter hubs - o Aveiro Project, o Porto Project, o Leiria Project - e todos trabalharem em conjunto para esta integração, para fomentar este feeling comunitário, para ligar as pessoas, e replicar o que aprendemos aqui noutros cantos de Portugal. Para que Portugal seja uma referência na Europa.”
Mas como é que surgiu o Lisbon Project? Para perceber o projecto, é preciso ir ao início da história da própria Gabriela. Hoje com 31 anos, a CEO do Lisbon Project nasceu na África no Sul, para onde os avós paternos - uma alentejana e um lisboeta -, emigraram à procura de ouro, onde o pai cresceu, antes de vir para Portugal estudar. Por cá conheceu a mãe de Gabriela, tendo ambos decidido ir também para a África do Sul. Foi lá que Gabriela nasceu, a 26 de abril de 1994.
“Nasci na véspera de Nelson Mandela ser eleito o primeiro presidente negro da África do Sul. Quando o meu pai tentou ir para o hospital havia barragens por todo lado e a polícia perguntou o que estava ali a fazer. Ele explicou que tinha a filha a nascer. E foi escoltado até ao hospital”, recorda.
Só muito mais tarde Gabriela perceberia que a sua data de nascimento não era coincidência - a mãe marcou a cesariana para dia 26, para que a filha nascesse um dia depois do 25 de Abril e não coincidisse com a revolução portuguesa. Resultado, “sou uma sanduíche de Liberdade!”, brinca Gabriela.
Quando ela tinha 2 anos, os pais regressaram a Portugal. Primeiro viveram na Margem Sul, depois cresceu em Cascais. E Gabriela sempre viveu num “ambiente muito internacional”, muito graças aos amigos dos pais, grande parte deles também vindos da África do Sul. Talvez por isso, depois de um intercâmbio nos EUA, tenha decidido ir fazer a licenciatura em Política e Relações Internacionais na Escócia.
Foi no verão em que voltou a Portugal, e quanto se candidatava ao Iraque, Filipinas ou Moçambique, perseguindo a carreira humanitária que sempre desejara, que Gabriela percebeu pela primeira vez a magnitude das dificuldades que migrantes e refugiados enfrentam no nosso país.
“Eu tinha feito algumas viagens a África quando era mais nova e nunca percebi por que é que eu tive a sorte de nascer neste ambiente, mas havia crianças da mesma idade que eu que não tinham escola, que não tinham acesso a água potável, etc.. Muito cedo percebi que queria fazer qualquer coisa em relação a isso. Mas, para tal, tinha de entender, tinha de me equipar”, recorda Gabriela. Naquele ano de 2016, deu-se a viragem: “Comecei a conhecer migrantes e refugiados em Portugal. Nunca tinha conhecido um refugiado. Para mim era algo teórico”, admite.
O assunto estava em ebulição na Europa, depois de a Alemanha da alemã Angela Merkel ter aberto os braços a um milhão de refugiados sírios, mas em Portugal ainda era pouco falado. A CEO do Lisbon Project lembra que foi também por essa altura que a imigração para Portugal acelerou. Mesmo se confessa não ter imaginado a dimensão que ia atingir: “Eu não fazia ideia. 400 mil migrantes na altura, hoje 1,6 milhões. Eu não fazia ideia do que ia ser a urgência do Lisbon Project.” Mas foi quando começou “a ir a casa de refugiados e a falar com eles. A jantar com eles. Foi à mesa, à conversa com as pessoas” que o projeto nasceu.
Gabriela apercebeu-se, então, das dificuldades que estas pessoas enfrentavam - fosse para arranjar um emprego, para encontrar casa ou apenas para aprender a língua. “Mas acima de tudo, - e foi isso que começou mesmo a mexer dentro de mim-, percebi uma falta de comunidade imensa, um isolamento tremendo dentro das comunidades migrantes, de pessoas que eram quase invisíveis. E eu sempre fui uma pessoa muito de conectar.”
Foi isso mesmo que Gabriela decidiu fazer: conectar. “Eu não sou professora de Português. Eu não sou advogada. Eu não sou médica. Mas conheço pessoas. E quem não conheço , consigo chegar até elas”, explica. E foi criando uma rede. Empenhada em dar a estas pessoas “uma resposta humana e não burocrática”, em “construirmos uma comunidade em conjunto”, arregaçou as mangas e decidiu agir.
Incentivada por dois amigos do pai e apoiada por um financiamento de 30 mil euros da Igreja Riverside International, da qual é pastora (já lá voltamos), aos 23 anos Gabriela deixa de lado a carreira internacional que sempre quisera e lança o Lisbon Project, na altura no Lumiar.
“A primeira palavra que os imigrantes aprendem em Portugal é “espera”. Centro de Saúde, “espera”. SEF, ou AIMA, “espera”. Tudo é “espera”, lamenta Gabriela. Por isso decidiu fazer diferente e oferecer “excelência”, “eficiência”, “agilidade” e “rapidez” a quem procura a sua associação. Mas nem tudo foi fácil. “Tinha 23 anos, não tinha experiência nenhuma. A experiência que eu tinha de liderança era ser capitã de um clube desportivo”, ri-se, sentada a uma das mesas corridas que ocupam o antigo armazém que, mais tarde, arrendou em Arroios, quando o espaço do Lumiar se tornou pequeno demais.
Neste anos, Gabriela procurou financiamentos - sempre privados - e parcerias - com escolas, universidades ou empresas. Sempre com um objetivo em mente: construir pontes e desconstruir barreiras e estereótipos.
Passados estes mais de oito anos, Gabriela está convencida de que Portugal está neste momento num cruzamento. “É agora que, ou vamos numa direção correta, de integração e eficiência, em que mostramos como é o contributo dos imigrantes e este relacionamento - como é que nós podemos construir juntos - ou, então, vamos permitir estes antagonismos, que são ineficientes a longo prazo. Porque nós precisamos de imigração. E não podemos seguir o caminhos dos que criam divisão, que só criam discriminação, só criam ódio ou ressentimento”, garante. E não esconde que o seu objetivo é que o Lisbon Project seja a referência em Portugal e que Portugal seja uma referência na Europa.
Com uma equipa de apenas sete colaboradores permanentes, apoiados por duas centenas de voluntários e 30 estagiários, o Lisbon Project tem no inglês a sua língua de trabalho. Por isso, explica a CEO, atrai muitos imigrantes do sul da Ásia: Bangladesh, Nepal, Índia, Paquistão. E não tantos dos países de língua oficial portuguesa, como Angola ou Moçambique. Não só porque as comunidades da Ásia do sul são as que têm crescido muito ultimamente, mas também porque os imigrantes dos PALOP têm outras associações que podem procurar.
Uma pastora CEO
Casada e mãe de duas filhas, de 3 e 5 anos, Gabriela alia o seu trabalho no Lisbon Project ao de pastora na Igreja Riverside International, uma igreja não-denominacional, com a qual partilham o espaço, sobretudo o auditório que fica na cave.
“A igreja é que paga a renda para nós estarmos aqui. É essa parceria que nos permite estar no centro de Lisboa, porque eles usam o espaço ao domingo e, muito raramente, durante a semana, mas o Lisbon Project tem acesso o resto do tempo. E é aqui que nós fazemos, por exemplo, um workshop sobre como fazer o IRS. Nas últimas eleições fizemos um workshop sobre quais são os partidos em Portugal. Para eles terem noção do que é que se está a passar, até qual é o processo, como é que as coisas funcionam em Portugal. Antes dos cursos abrirem, nós fazemos sempre uma sessão de informação para as pessoas terem noção do que é que é o curso, o que é exigido. E enchemos este espaço”, explica Gabriela, enquanto vai mostrando as instalações.
E garante que a sua fé está na origem de tudo. “Para mim, a fé é o fundamento do porquê. Porque é que faço as coisas, como é que lidero, como é que ajo com as pessoas. Desde criança que eu tive esta revelação de quem Deus é para mim. Não um Deus distante, mas um Deus que criou o mundo com uma intenção, com um propósito, e criou-me a mim individualmente. Criou-me com o propósito de como é que eu vou servir os outros. Vivemos num mundo onde há muita miséria, muita pobreza, muita dor, muito sofrimento, e eu não posso ser ignorante a isso. Nem posso ser egoísta perante isso. Desde pequena, sempre procurei como posso viver a minha vida de forma a amar a Deus, acima de tudo, e amar o meu próximo como a mim mesma.”
E ao longo dos anos foi juntando um vasto leque de histórias de sucesso. Como a de uma mulher vinda do Gana que chegou a Portugal, com a filha pequena e no final de outra gravidez. Vinha para fugir à mutilação genital feminina e entrou em trabalho de parto no aeroporto. Deu à luz num hospital de Cascais, mas as autoridades portuguesas determinaram que as crianças lhe fossem tiradas. Gabriela tinha, ela própria, acabado de dar à luz e, depois de uma batalha legal, conseguiram reunir a família e arranjar-lhes uma casa provisória. “Se não houvesse o Lisbon Project para ser a ponte entre estas pessoas, teria sido uma história muito diferente”, acredita.
No piso de baixo, todo renovado depois de umas inundações há uns anos, passamos pela biblioteca, por salas de aulas e arrecadações, onde guardam alguma roupa doada à associação. Enquanto volta a fechar a porta do auditório e questionada sobre as suas preocupações com o futuro deste projeto, Gabriela explica que sempre que as coisas pareciam estar a correr mal, Deus providenciou. “A história do Lisbon Project tem sido, de uma forma muito pessoal, a fidelidade de Deus. Ele chamou-me, e é sempre a minha oração: ‘Tu é que me chamaste, tu é que pagas, tu é que arranjas financiamento’”, explica com um grande sorriso.