Futuros da Educação: Saber reinventar a escola sem a destruir, sem a diminuir

Jorge Ramos do Ó, José Pedro Serra, ambos da Universidade de Lisboa e Nina Stocco Ranieri, da Universidade de São Paulo, refletem para o DN sobre os futuros da educação, num exercício de antevisão da conferência que decorre esta sexta-feira em Lisboa.
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No âmbito dos trabalhos da Cátedra UNESCO - Futuros da Educação, decorre até maio de 2024 um ciclo de conferências que se propõe debater e refletir os caminhos para reinventar a escola. Os encontros, de carácter mensal, no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, contam esta sexta-feira com um novo momento e a presença de um trio de palestrantes comprometidos com a reflexão sobre os desafios que se colocam à escola, aos alunos e aos docentes neste século XXI.

Jorge Ramos do Ó e José Pedro Serra, da Universidade de Lisboa, e Nina Stocco Ranieri, da Universidade de São Paulo, participam numa sessão coordenada por António Sampaio da Nóvoa, doutor em Educação e em História. O também titular de uma Cátedra UNESCO sobre os futuros da educação sintetiza o espírito que orienta o ciclo de conferências em apreço: "gosto de imaginar um professor que, mesmo com o mundo prestes a acabar, continuaria a educar os seus alunos até ao último segundo. A nossa profissão é diferente de todas as outras. Também na ética, na solidariedade e na relação com o futuro. Talvez este ciclo de conferências pudesse adoptar como lema uma frase de Vladimir Jankélévitch - "A liberdade é mais do que livre, é libertadora"".

A anteceder o encontro Futuros da Educação, ao qual se associa o Diário de Notícias, convidámos o trio de conferencistas a refletir sobre alguns dos temas que levarão ao Anfiteatro I do IE-ULisboa, a partir das 15.00 (também em direto pelo canal Youtube da UNESCO Brasil).

Jorge Ramos do Ó, Professor Catedrático do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, enfatiza a imprevisibilidade do provir, "num tempo e numa geração que, pela primeira vez na história da humanidade, admite que o futuro é incerto, imprevisível e que o mundo está em risco de colapso total".

Face ao exposto, o docente recua a fita do tempo para nos recordar que "até não há muitas décadas, a legitimidade da universalização da escolaridade - que se concretizou na gigantesca operação de transformação de cada criança em aluno ao longo, sobretudo, do século passado - residia justamente na perpetuação das instituições, num grau de grande previsibilidade tanto da economia, como do trabalho ou da vida das populações no território".

Neste contexto, o que significava aprender? perguntamos: "significava, tanto no plano da aquisição de conhecimento, quanto da organização dos comportamentos, que o estado presente e o próprio funcionamento do mundo fosse assimilado pelos mais novos, tal como se apresentava em cada presente. Não raro se dizia que a escola devia ser uma sociedade em miniatura, em que a vida era antecipada nas suas diferentes componentes de estudo, de competição e seleção, da existência em comum ou mesmo da interiorização das regras cívicas. Durante o percurso escolar cada um era encaminhado para encontrar o seu lugar social e para nele se manter até ao fim dos seus dias. Os adultos diziam: "torna-te no que deves ser", ou seja, "torna-te parecido comigo e com o que eu represento"".

Os tempos são outros, a realidade impõe novas respostas e soluções, caminhos que, para Jorge Ramos do Ó, "implicam a necessidade de um novo pacto social para a educação e a profunda transformação do modelo de ensino. Temos mesmo de perceber e de nos pormos de acordo, enquanto sociedade, sobre quais as tarefas que temos pela frente perante os atuais enigmas do mundo. Estamos numa situação que, aliás, me parece muito próxima da que se viveu na Grécia Antiga, que se traduziu no nascimento da própria Filosofia e do trabalho sobre a Razão como modo de existência. Esse espanto perante o cosmos, essa necessidade nunca terminada de o decifrar que então os acompanhou constituem também o nosso desafio hoje. A educação escolar joga aqui um papel determinante, não tanto para alimentar uma narrativa dominante do crescimento exponencial, seja ele qual for, mas, antes, para generalizar a democratização do gesto criativo e inventivo".

Para Jorge Ramos do Ó, "uma escola digna do nosso tempo deve ser aquela que inventa o tempo da espera, quero dizer, o do trabalho intenso no aqui e no agora, na concentração em torno das possibilidades que se jogam entre uma pergunta e uma resposta. Os alunos terão de ser convidados a mergulhar em problemas cujas respostas ainda não conhecem nem estão postas no programa ou no manual escolar, a fim de, desde cedo, poderem construir pontes com o desconhecido".

O docente do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa conclui o pensamento anterior a afirmar que "temos urgentemente de construir uma escola da pesquisa e da procura, de ir envolvendo todos os estudantes em tarefas que impliquem várias possibilidades e escolhas, em processos de interligação e de mistura, processos estes que a cada movimento se tornem mais desafiantes, exigentes e aprofundados. Certamente que esta seria uma escola da disciplina e do trabalho, longe da vertigem e da aceleração da vida actual. Aprender a desejar o desconhecido e a pensar sobre ele antecipadamente é a condição primeira para não ter um medo existencial do futuro, enfrentando-o. O tema pedagógico por excelência é o de trabalhar com os estudantes para desenvolver uma prática da atenção que suspenda o tempo, se assim posso falar, e se centre no presente, nas possibilidades que nele se abrem. Implica saber parar, suspender, refletir antes de avançar".

Sobre o papel do professor nestes novos contextos, o especialista em história da educação e da pedagogia recorda que "pode parecer paradoxal, mas o nosso desafio hoje é o mesmo de há cerca de 2.500 anos. O professor do futuro será aquele que se aproxima de Sócrates e assume o seu legado, isto é, aquele que representa a pergunta e não a resposta certa. Aquele que escuta o pensamento à medida que ele vai aparecendo na voz e na escrita do seu estudante, incitando-o a cada momento a pensar mais sobre o que pensa".

Também a José Pedro Serra, Professor Catedrático no Departamento de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, deixamos a questão sobre o futuro da educação não a destituindo do contexto atual de incerteza, imprevisibilidade e de grande avanço tecnológico: "Prever o futuro é sempre matéria difícil e horizonte de muitos enganos. Sobretudo numa época, como a nossa, de aceleradas mudanças, de incertezas políticas, de um prodigioso avanço tecnológico, de graves questões ambientais e de desorientação da inteligência e da cultura - se quiser usar este termo. A confusão e a desorientação são tais que não seria difícil encontrar alguns traços apocalípticos na poeira levantada. Mas a educação não deve seguir as poeiras do momento, nem os estilhaços de um tempo. E seria grave erro supor ou imaginar um futuro de perfil muito definido - sempre ilusório - em vista do qual se forjasse a adequada educação. Educar não é dar certezas de futuro; educar é orientar a inteligência, sem a domar; é acordar e fomentar a atitude crítica, sem cair no logro da permissividade do indiferentismo opinativo. Educar, creio, é, em última análise, devolver a cada um a aventura inalienável do seu pensamento e da sua vida. Com a mestria de quem sabe apontar caminhos - não mais do que isso - e colocar perguntas e aporias. A melhor preparação para um futuro incerto é estimular inteligências livres e críticas. E, nesse sentido, educar é um ato amoroso..."

Na intervenção que leva à conferência de hoje, José Pedro Serra, propõe-se abordar, entre outros, o tópico: "orientar e promover a inteligência mais do que a erudição ou a estrita competência técnica". Cabe-nos a pergunta: Promovemos um modelo de educação que não convida a refletir, relacionar e a questionar? "Tenho profundo respeito pela erudição, isto é, pelo duro trabalho "de secretária", pela imensa exigência da seriedade do saber, trabalho que ocorre ora em profunda solidão, ora na comunhão austera de um grupo. Mas a erudição não chega. Tal como não chega a estrita competência técnica. A erudição só se transforma em saber e sabedoria no diálogo vivo com a realidade que nos acolhe e nos convoca. Sem isso, a erudição é um pomposo discurso estéril que nos distrai. Só uma inteligência livre, reflexiva e crítica é capaz desse diálogo com a realidade".

Que papel cabe aos professores neste contexto? Diz-nos o docente: "Aos professores cabe fomentar a inteligência livre, reflexiva e crítica; despojando-se de falsas autoridades, sem perder a autoridade da sua orientação, sem a qual não há educação. Nem sempre é fácil, reconheço. Na universidade, um dos maiores perigos atuais é a pressa, a falta de tempo de maturação e a burocracia. É necessário dar tempo a que cada um vá percorrendo o seu caminho e vá encontrando as pedras que o habitam. Mas a urgência da "aquisição de competências", a pressão do emprego futuro e do mercado de trabalho, a necessidade de publicar o mais cedo que se puder e na maior quantidade possível; tudo isto é deformador".

Ganharia a escola em reencontrar os caminhos de uma educação clássica e humanística? Responde-nos José Pedro Serra: "Mesmo num mundo altamente tecnológico, os pilares fundamentais da educação são as ciências e as humanidades. E estas não estão sujeitas a finalidades pragmáticas ou utilidades. É esta a sua força. Afirmar isto não é já inocente quanto à compreensão da nossa existência. Dito isto, não tenho dúvidas em afirmar a importância das humanidades e da tradição. A tradição não é deixarmo-nos congelar num passado petrificante. A tradição é estar consciente de um testemunho que se recebe e abrir-se a um tempo futuro. Esquecer isto, esquecer esta memória, é uma ingénua infantilidade. As humanidades acolhem um diálogo insubstituível e irredutível do homem com a realidade, sem o qual sairíamos mutilados. E nesse sentido é o mais vivo sopro que as anima. E por isso reclamam, exigem, uma autenticidade que ultrapassa os jogos de aparência "culta" e as habilidades meramente mentais e descarnadas".

Face a uma intervenção que tocará em temas como o "ensino de qualidade, universalizado e gratuito para todos", Nina Stocco Ranieri, Professora Associada do Departamento de Direito do Estado, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, adianta que a "educação básica de 11 anos, pública, gratuita e universalizada é uma meta já alcançada em vários lugares do mundo, inclusive no Brasil, onde é garantia constitucional desde 1988. A qualidade da educação básica, em todos os níveis - infantil, fundamental e médio - depende de vários fatores internos e externos à escola. Entre eles, são essenciais a formação e treino de professores, fortalecimento da carreira docente, políticas pedagógicas e material didático adequado, profissionalização da gestão escolar. Para avançar a qualidade em escala é ainda necessária a modernização da gestão dos sistemas educacionais - no Brasil, são mais de 5.000, considerados os sistemas estaduais e municipais, além do federal - o financiamento adequado, o investimento na primeira infância, com atendimento integral da criança; colaboração entre estados e municípios para melhoria da alfabetização, mudanças no ensino médio. São políticas de longo prazo, que transcendem mandatos eleitorais e exigem continuidade", sublinha a docente.

Presentemente vivemos num mundo de situações inéditas, onde podemos incluir, entre outras, a crise climática, os desafios da inteligência artificial, questões ligadas à identidade de género. Face a isso, podemos perguntar o que esperar da escola enquanto formadora de cidadãos capazes de assimilar e enfrentar estes contextos? "Para além das questões que refere, incluo outras que ainda não conhecemos, particularmente em face do contínuo e acelerado desenvolvimento das tecnologias digitais. Da escola espera-se que seja capaz de formar indivíduos e cidadãos que tenham habilidades cognitivas e emocionais para aprender a conhecer, o que implica combinar cultura geral com assuntos mais específicos. Também indivíduos capazes de fazer, possivelmente com mais de uma qualificação profissional; e a conviver, desenvolvendo a compreensão do outro e os valores do pluralismo. Acresce o agir com autonomia. Além disso, é necessário investir na educação para a cidadania global, algo enfatizado pela UNESCO, que compreende a educação para a paz, os direitos humanos e a democracia".

Sobre que professores procuramos face aos horizontes expostos anteriormente, diz-nos Nina Stocco Ranieri que "a formação de docentes nessa direção é um dos grandes desafios do momento, mas não apenas. Eles são afetados pelas mudanças, pelos desafios, deles se exigindo contínua atualização de conhecimentos e competências. É essencial a valorização da carreira e a remuneração condigna, com estratégias que lhes permitam atualizar-se. A UNESCO já anunciou que em 2030 haverá uma falta de cerca de 69 milhões de professores em todo o mundo, impedindo a universalização da educação básica. No Brasil, a estimativa para 2024 é de um défice de cerca de 235.000 professores licenciados. Salários baixos, falta de estrutura e desvalorização social têm sido apontados como os principais fatores que prejudicam o interesse pela carreira docente".

O Ciclo de Conferências: Futuros da Educação prosseguirá depois a 24 de novembro, com a presença de Leonardo Garnier, conselheiro especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para a Cimeira para a Transformação Educacional.

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