Frente ao Atlântico, o arau-gigante mira a sua história de extinção
Longo braço de terra intruso nas águas do Atlântico Norte, as paisagens da Península de Reykjanes, no sudoeste da Islândia, saltaram em 2006 para o grande ecrã num filme realizado pelo norte-americano Clint Eastwood. As Bandeiras dos Nossos Pais (Flags of Our Fathers), adaptado do livro com o mesmo nome de James Bradley, situa o espetador na década de 1940, na Batalha de Iwo Jima, combate feroz entre as tropas dos Estados Unidos e as japonesas. A orografia islandesa serviu as intenções de Eastwood de recriar no cinema as paisagens de dor e morte da ilha no Oceano Pacífico. Arredado da escala hiperbólica da Sétima Arte, a Península de Reykjanes acolhe um testemunho de perda. Uma escultura em bronze de metro e meio de altura, batizada “Pássaro Perdido”, atenta no oceano próximo. A 16 Km da costa, ergue-se um ermo rochoso. Três hectares de terra elevam-se mais de 70 metros acima das ondas.
A islandesa ilha de Eldey serviu em 2011 de referência ao documentário rodado pelo artista e realizador americano Todd McGrain. The Lost Bird Project percorreu cinco partidas deste nosso mundo. Unia-as um quinteto de histórias de extinção. O documentário levado à tela por McGrain visitou os lugares tidos como derradeira presença de cinco espécies de aves hoje extintas. Todd não procurou perdas antigas. O pato-do-labrador, o tetraz-das-pradarias, o periquito-da-carolina e o pombo-passageiro viram os derradeiros representantes da sua espécie erradicados nos últimos dois séculos. Em concreto, sobre a rocha vulcânica de Reykjanes repousa a escultura de um arau-gigante (Pinguinus impennis). O dia 3 de junho de 1844 (ou 3 de julho, as fontes diferem no que respeita à data), foi de má sorte para o último casal de uma corpulenta espécie de ave descrita pela primeira vez para a ciência em 1735 na obra Systema Naturae, redigida pelo zoólogo sueco Lineu.
Outrora presente do Canadá ao norte de Espanha, passando pela Islândia, Ilhas Britânicas e França, do arau-gigante, com os seus quase 90 cm de altura e mais de 5 Kg de peso, contavam-se milhões de indivíduos ainda no século XV. Crê-se que 20 colónias de reprodução pontuavam o território ocupado por este animal de dorso negro, ventre branco, bico forte, asas raquíticas e exímio mergulhador. Como certas são dadas as localizações de seis colónias de reprodução de uma ave que, no mar, mergulhava aos 70 metros de profundidade e por 15 minutos. Ditou a sorte deste habitante de ilhas rochosas afastadas do litoral a procura crescente da sua carne, dos seus ovos e penas.
A história de frenesim delapidador do arau-gigante recua à Pré-História, há mais de 100.000 anos e à caça que o Homem de Neandertal moveu à pacata criatura. Tosco na sua locomoção em terra, o arau-gigante, parente da torda-mergulheira (não obstante a sua parecença com os pinguins, o arau-gigante não tem com estes parentesco), era uma presa fácil às investidas humanas. Uma caça que, contudo, se revelava limitada no espaço e na quantidade de animais capturados. Um achado em Port au Choix, na Terra Nova, datado de 2.000 anos a.C., atesta o enterramento de um individuo com mais de 200 bicos de arau-gigante. Por seu turno, o extinto povo Beothuk, também da Terra Nova, confecionava um nutritivo pudim à base de ovos da ave.
As grandes viagens oceânicas a partir do século XV aproximariam os europeus das colónias de araus-gigantes do Atlântico setentrional. A carne e os ovos proporcionavam uma apetecível dose de proteína animal. A mesma carne, rica em gordura, servia de isco para a pesca de espécies marinhas e de combustível para as fogueiras. Os marinheiros europeus também viam nas imensas colónias de araus-gigantes um farol à navegação. A presença destas aves assinalava a aproximação aos bancos da Terra Nova. Em meados do século XVI, as colónias de nidificação próximo ao litoral europeu foram exterminadas. A plumagem da ave usada no enchimento de travesseiros atraía caçadores. Em 1800, a colónia na ilha Funk, na Terra Nova, foi dada como extinta. Quarenta e quatro anos depois, a colónia de Saint Kilda, no Reino Unido, era dizimada.
Face à rápida extinção da espécie no século XIX, museus e colecionadores particulares aceleraram a demanda de aves e dos seus ovos. Eggers, assim denominados, recolhiam ovos a uma escala superior à capacidade da espécie se recompor. Desde o século XVI, leis de proteção procuravam, sem alcance efetivo, travar o declínio da espécie. Em 1794, a Grã-Bretanha proibiu a matança de aves sempre que a finalidade fosse a utilização da sua plumagem para enchimento de travesseiros. Sobre a mortandade dos araus-gigantes deteve-se Aaron Thomas, tripulante no HMS Boston, citado pelo escritor inglês Errol Fuller no livro de 2003, The Great Auk: The Extinction of the Original Penguin (O Grande Arau: A Extinção do Pinguim Original): “Se vier na demanda das suas penas, não há que matá-los [ao arau-gigante], basta agarrá-los e arrancar-lhes as melhores plumas. Vai deixar o pobre ‘pinguim’ desorientado, com a sua pele exposta. Morrerá a seu tempo. Este não é um método muito humano, mas é comum ser praticado (...) também os queimará vivos para cozinhar (...) os seus corpos são oleosos e produzirão de imediato uma chama. Não há lenha na ilha”.
Coube ao naturalista norte-americano e grande colecionador de ovos John Wolley uma das entrevistas mais dolorosas ligadas à triste sina do arau-gigante. Em 1844, Wolley sentou-se com os islandeses Jón Brandsson e Siguror Isleifsson. Na primeira pessoa, o naturalista, recebeu as palavras que relatavam o derradeiro capítulo da história da grande ave do norte. Palavras aqui transcritas numa tradução livre a partir do já citado livro de Errol Fuller: “As rochas estavam cobertas de blackbirds [aves marinhas] e lá havia os geirfugl [arau-gigante] que caminhavam lentamente. Jón Brandsson esgueirou-se com os braços abertos. A ave que Jón agarrou foi para um canto, mas [a minha] encaminhava-se para a borda do penhasco. Apanhei-a na borda do precipício (...) Peguei-a pelo pescoço e ela bateu as asas. Não emitiu nenhum grito. Estrangulei-a”.
O último casal de araus-gigantes fora encontrado por Jón e Sigurur a incubar um ovo. A colónia da ilha Eldey fora descoberta nove anos antes, em 1935. Contava, então, com 50 aves. Em 1852, a comunidade científica recebia uma notícia: um arau-gigante fora avistado vivo nos grandes bancos da Terra Nova. Nos últimos 172 anos não houve notícia que confirmasse o achado. O arau-gigante juntou-se à lista de aves ícones de extinção como o dodó, o pombo-passageiro e a moa. Hoje, do arau-gigante restam 78 peles, 75 ovos e 24 esqueletos completos.