Como ministro da Administração Interna passou, em 2002, por uma situação semelhante à que sucedeu na semana passada na Grande Lisboa, quando um morador da Bela Vista, em Setúbal, foi morto por um agente da PSP. Estamos a falar de há mais de 20 anos. O que devia ter mudado e não mudou e porque acha que não mudou? Esse incidente policial no bairro da Bela Vista originou também uma reação violenta de grupos de jovens revoltados com a morte de um amigo e sérias ameaças à ordem pública que foram reprimidas por uma intervenção adequada da PSP. Depois, graças a uma complexa e rigorosa gestão da situação, foi possível evitar danos colaterais, usando para o efeito o diálogo e a participação ativa de representantes da comunidade e de entidades respeitadas, designadamente, a Igreja e a Escola, contando sempre com um apoio da Câmara Municipal de Setúbal. O estudo deste caso ajudou-nos a compreender melhor estes fenómenos e definir importantes mudanças na formação e motivação dos agentes policiais, assim como na definição e implementação de programas de policiamento de proximidade, no âmbito de uma Estratégia de Prevenção e Combate à Criminalidade. É sabido que, durante estes 22 anos, os governos que se sucederam prosseguiram com estes esforços de desenvolvimento de programas de policiamento de proximidade, mas continuámos a assistir ao agravamento dos problemas sociais e de outros fatores de criminalidade típicos destes bairros, onde vive gente trabalhadora e pacífica. Onde continuam a faltar intervenções comunitárias e socioeconómicas capazes de mudar as degradadas condições de vida e onde os programas de policiamento de proximidade também não terão funcionado com a eficácia esperada..Não o surpreende que, 22 anos depois, se mantenha, ou se tenha mesmo agravado, a tensão entre a polícia e estas comunidades? A segurança não passa apenas por uma questão de mais e melhores polícias. A segurança faz parte da nossa vida e tem de envolver toda a sociedade, exigindo políticas transversais pró-ativas e estratégias capazes de garantir um rigoroso equilíbrio entre repressão, prevenção e solidariedade. Solidariedade no sentido do envolvimento das comunidades locais e da cooperação entre diversos agentes de intervenção socioeconómica e num diálogo franco com as forças de segurança. Só assim, com diálogo e transparência, se pode gerar a necessária confiança entre polícias e cidadãos, mesmo nos bairros mais difíceis. Julgo que estes princípios estão geralmente adquiridos pelo poder político e até inseridos nos programas dos governos. Surpreende-me, por isso, que, apesar da repetida ocorrência de casos idênticos ao do bairro do Zambujal, nestes últimos dez anos, as lições não tenham sido aprendidas. Daí que, neste caso como noutras situações idênticas mais recentes, todas as atenções se concentrem na atuação da polícia contribuindo para o acentuar de tensões entre a polícia e as comunidades..Do que viu durante a semana, o que mais o surpreendeu? O que mais me surpreende é esta espécie de bipolarização de reações de sinal contrário onde temos responsáveis políticos de esquerda a alinhar em manifestações contra a violência policial e um partido de extrema-direita a apelar à violência policial. Considero uma e outra muito injustas para as forças de segurança. Os agentes da PSP e os militares da GNR têm de ser o elo mais forte da cadeia de segurança interna. Devem, por isso, ser respeitados e merecer o reconhecimento de todos os cidadãos. Com forças de segurança fragilizadas, é a própria autoridade do Estado que está em causa. É preciso, finalmente, sublinhar que a atuação irregular ou até criminosa de um agente policial, se como tal vier a ser julgada pela Justiça, não pode contaminar toda a corporação..E a forma como a PSP respondeu e reagiu aos acontecimentos? Apesar dos esforços de comunicação, pareceu-me que teria sido necessário ir mais longe nos esclarecimentos sobre o “teatro de operações” e as demais circunstâncias em que se desenrolou este grave incidente policial. Sem prejuízo do segredo da justiça, talvez tivesse sido necessária uma comunicação mais transparente e esclarecedora das circunstâncias que justificaram o uso da arma pelo agente neste lamentável incidente. Importa ter sempre presente que, sem transparência, não há confiança. E a confiança dos cidadãos nas polícias não pode ser abalada porque nela reside o principal vínculo entre a autoridade do Estado e a sociedade. Por outro lado, assistimos com alguma surpresa a repetidos e violentos atos de vandalismo com uma intensidade nunca vista no nosso país, gravemente danosos para os cidadãos residentes, com indícios de criminalidade organizada. Interrogo-me se, nestas circunstâncias, o Sistema de Segurança Interna não deveria ter criado as condições necessárias para prevenir estas situações tão recorrentes noutros países europeus..Faz esta semana um ano que foi extinto o SEF. Que avaliação faz deste processo de reestruturação do sistema de fronteiras? Apesar de o Governo em que participei não ter inscrito este objetivo no seu programa, a minha experiência leva-me a considerar que a decisão de extinguir o SEF foi acertada não só por razões de racionalidade orgânica, mas também por uma gestão mais simplificada e humanizada dos imigrantes. Por outro lado, as funções de controlo de fronteira e de investigação criminal, agora entregues à PSP, à GNR e à PJ, podem ser melhoradas em benefício da segurança interna. Todavia, o processo foi seriamente prejudicado pela sua proximidade temporal à morte de um cidadão ucraniano nas instalações daquele Serviço, que gerou fortes repercussões na opinião pública. Assim, numa primeira perceção, esta medida política foi vista por muita gente como uma “fuga para a frente” para resolver este grave problema. Depois, foi evidente a coincidência desta decisão política com o caos administrativo gerado nos serviços de imigração devido, principalmente, à política de imigração e ao sistema de manifestações de interesse em vigor. Sabe-se que o atual Governo já tomou medidas no sentido de consolidar, na AIMA, uma base de recursos humanos e tecnológicos mais robusta para agilizar os processos, resolver os casos pendentes e evitar novos atrasos. Só então se poderá avaliar esta importante decisão política, seriamente prejudicada por falta de um adequado planeamento estratégico..O atual Governo agiu bem ao acabar com as manifestações de interesse? Apesar de ter sido criado para facilitar o processamento das autorizações de residência, a vigência do sistema de manifestações de interesse teve consequências desastrosas tanto no domínio das responsabilidades do Estado como sob o ponto de vista humanitário. Impelidos por um ilusório anúncio de facilidades, milhares de imigrantes entraram no nosso país em situação de manifesta vulnerabilidade. Além dos problemas administrativos que a acumulação de centenas de milhares de processos gerou nos serviços competentes, que rapidamente viram ultrapassados os limites da sua capacidade de resposta, as principais vítimas foram os imigrantes que aceitavam condições de trabalho muito precárias enquanto aguardavam a sua regularização e eram facilmente explorados por associações criminosas. Com o fim deste mecanismo e o funcionamento eficaz de todas as estruturas que sucederam ao SEF, especialmente a AIMA, é de esperar que a nova política de imigração e o novo sistema de requisitos de entrada torne o processo de legalização menos burocrático e mais ágil e contribua para facilitar a vida dos imigrantes, em benefício próprio e da economia nacional..O que diz de um Governo que tem por nomear há dois meses o secretário-geral do Serviço de Segurança Interna e há quatro meses um diretor nacional da Polícia Judiciária? Não sei como interpretar a demora em nomear cargos tão importantes para a segurança nacional tanto no domínio da manutenção da ordem pública como na prevenção e repressão da criminalidade. É difícil considerar estes atrasos como uma falta de prioridade política para as questões de segurança, sobretudo em momentos em que a criminalidade e o combate ao crime organizado são desafios presentes na sociedade portuguesa. Convém não esquecer que a ausência prolongada dos dirigentes principais das instituições exige o recurso a soluções transitórias e precárias que, quando muito prolongadas, podem até comprometer a sua plena eficiência operacional.