Extremismo:
"Os esforços de prevenção são praticamente nulos. Exige vontade política"
Reinaldo Rodrigues

Extremismo: "Os esforços de prevenção são praticamente nulos. Exige vontade política"

Membro do Centro Europeu para a Prevenção da Radicalização, Felipe Pathé Duarte aponta falhas em Portugal, critica a falta de vontade política e rejeita a ideia de que o país está imune.
Publicado a
Atualizado a

Felipe Pathé Duarte é professor na NOVA School of Law, onde coordena o Mestrado em Direito e Segurança e integra o NOVA War & Law Lab. Especialista em radicalização, extremismo e terrorismo, foi nomeado pela Comissão Europeia para o Comité de Investigação do EU Knowledge Hub on the Prevention of Radicalisation (Centro Europeu de Conhecimento para a Prevenção da Radicalização), onde contribui com orientação estratégica para políticas públicas europeias. Investigador e consultor internacional, colaborou com o UNODC em Moçambique (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), nomeadamente em projetos de prevenção do extremismo violento, e com o Conselho da Europa em matérias de ameaças híbridas. É doutorado em Ciência Política pela Universidade Católica Portuguesa, foi bolseiro Fulbright e visiting fellow em Oxford e no CSIS (Washington, D.C.). É autor de várias obras sobre jihadismo, violência política e atores não estatais violentos. Este ano, coorganizou o estudo "Violent Extremism in Contemporary Portugal: A Mild-Mannered Country?", que rejeita a ideia de excepcionalismo português face à ameaça extremista. Nesta entrevista, fala sobre o papel de Portugal na prevenção da radicalização, as novas ameaças emergentes e o que está — ou não está — a ser feito para travar fenómenos extremistas que já deram sinais de alerta em território nacional.

O que é o EU Knowledge Hub on the Prevention of Radicalisation (Centro Europeu de Conhecimento para a Prevenção da Radicalização) e qual a sua missão principal?

No essencial é uma plataforma da União Europeia (UE), que está sob a Direção-Geral de Migração e Assuntos Internos da Comissão, para partilha de conhecimento e boas práticas no combate e prevenção à radicalização, extremismo violento e terrorismo. Ou seja, é uma estrutura que faz a ponte entre a investigação académica, a dimensão operacional e a formulação de políticas públicas.

O que motivou a União Europeia a criar esta plataforma?

A radicalização, o extremismo violento e o terrorismo sofreram mutações nos últimos anos. E, em consonância com a nova Estratégia Europeia de Segurança Interna e com Agenda Estratégica 2024-2029, a EU Knowledge Hub surge como uma forma eficaz dos Estados-membros centralizarem partilha know-how, informações e reforço de capacidades. O objetivo é que desta articulação saiam iniciativas estratégicas, relatórios, discussões temáticas e investigação que alimente políticas públicas de segurança a nível nacional e europeu.

Este Centro de Conhecimento surgiu no seguimento do trabalho da Radicalisation Awareness Network (RAN), assumindo o seu legado e ampliando-o. Por exemplo, sabe-se que o Centro oferece um conjunto de recursos e atividades – formações, workshops, visitas de estudo – além de programas de mentoria para jovens profissionais e investigação sobre tópicos específicos de radicalização. Que novas oportunidades considera mais promissoras neste modelo atualizado de prevenção?

Por exemplo, a estruturação em painéis especializados e funcionais que abarcam as várias dimensões desta ameaça – desde as ideologias, ao mundo digital, às prisões, reabilitação e reintegração, passando pela saúde mental, pelos combatentes estrangeiros ou pelos fatores geopolíticos e pela influência externa nefasta. Daqui saem ferramentas e modelos a aplicar nestas várias dimensões. Repare que este Centro acaba por ter uma estrutura mais formal e uma função mais estratégica que a RAN. Se por um lado a RAN valorizava contributos práticos oriundos da experiência direta, o Centro pega nesse conhecimento e orienta-o para respostas coordenadas e, sublinho, de longo prazo.

Coorganizou um estudo intitulado “Violent Extremism in Contemporary Portugal: A Mild-Mannered Country?” (Extremismo Violento no Portugal Contemporâneo: Um País de Brandos Costumes)? Podemos realmente falar numa “exceção portuguesa” ou existem riscos latentes que não devemos ignorar?

O estudo, também coordenado pelo historiador José Pedro Zúquete do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, vai ser publicado até ao final deste ano. Faz uma análise ao extremismo violento em Portugal no último meio século. Para isso, juntámos aqueles que considerámos serem os maiores especialistas portugueses na área, não obstante o quadrante científico. E a conclusão é simples: não há um excecionalismo português.

A questão é que houve e há contextos sociais (políticos e demográficos) que, quando não lidos em proporcionalidade – isto é, em comparação com outros países europeus – dão-nos uma ideia errada de imunidade.

Felipe Pathé Duarte

A questão é que houve e há contextos sociais (políticos e demográficos) que, quando não lidos em proporcionalidade – isto é, em comparação com outros países europeus – dão-nos uma ideia errada de imunidade.

Que comparação faz entre a abordagem de Portugal e a de outros países europeus na prevenção da radicalização?

Díspar. Vertiginosamente díspar. As intenções, tardiamente vertidas em grandes estratégias, emulam Bruxelas. Não o nego. Porém, em termos práticos não se concretizam.

Os esforços são praticamente nulos, apesar dos vários alertas. Enfrentar este desafio exige vontade política e reconhecimento da sua gravidade. E isso não existe.

Os esforços são praticamente nulos, apesar dos vários alertas. Enfrentar este desafio exige vontade política e reconhecimento da sua gravidade. E isso não existe.

Recentemente, as autoridades portuguesas realizaram detenções de suspeitos ligados a grupos de extrema-direita violenta, alguns com posse de armas e materiais de propaganda neonazi. Estas operações da Polícia Judiciária mostraram que, mesmo num país tido como pouco permeável ao extremismo, existem redes ou simpatizantes com potencial de radicalização. Isto indicia uma ameaça mais séria do que aquela que tradicionalmente atribuímos à realidade portuguesa?

Sim. É um padrão. E tende a intensificar-se. Veja-se este caso recente do Movimento Armilar Lusitano, cujo um dos líderes seria um elemento da PSP. O nexo entre extremismo violento de direita e forças de segurança ou forças armadas existe em vários países ocidentais. Mas é uma relação multifacetada e complexa.

Muitos incidentes envolvendo polícias ou militares têm sido tratados como casos isolados, mas há um padrão que aponta para uma ligação mais estrutural.

Felipe Pathé Duarte

Muitos incidentes envolvendo polícias ou militares têm sido tratados como casos isolados, mas há um padrão que aponta para uma ligação mais estrutural. Isso tem sido evidente, por exemplo, nos EUA e na Alemanha, onde levaram a cabo ações bem visíveis, provavelmente devido à força dos movimentos nestes países. Embora os casos extremos, recebam mais atenção pública, há muitos incidentes, com menos impacto, mas igualmente preocupantes, que ocorrem com frequência. Estes grupos valorizam a perícia e o capital humano oriundo de estruturas castrenses. Ainda assim, de vários estudos que foram feitos, demonstrou-se que o nível das ações não reflete, em geral, um uso sofisticado do treino militar/policial.

Estamos preparados para detetar e neutralizar este tipo de fenómenos em tempo útil? Os serviços de informações, as forças policiais, mas também a sociedade civil e o sistema educativo estão a trabalhar bem na prevenção do extremismo violento?

Não. Com a agravante de a extrema-direita violenta não ser monolítica. Há várias subcorrentes que, por vezes, se fundem – há movimentos neo-nazis, anti-Islão e anti-migrações, identitários, neo-fascistas e ultra-nacionalistas, actores individuais... Esta heterogeneidade reflete-se em estratégias, táticas e estruturas organizacionais – o que o dificulta o papel das autoridades.

Mas nestes casos mais recentes, onde há polícias e militares, o primeiro passo começa com a vontade política de reconhecer a gravidade do problema.

Felipe Pathé Duarte

Mas nestes casos mais recentes, onde há polícias e militares, o primeiro passo começa com a vontade política de reconhecer a gravidade do problema. O segundo será mapear as formas como este nexo extremismo/forças de segurança ou forças armadas se pode manifestar na prática. E dada a variedade de formas desta relação, é preciso uma abordagem personalizada.

Estão identificadas algumas lacunas na execução do pilar prevenção da Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo, cuja coordenação é do Sistema de Segurança Interna, nomeadamente, falta de programas de sensibilização em escolas, comunidades de risco ou prisões para detetar precocemente sinais de radicalização. Concorda com esta avaliação? Quem ou o que está a falhar?

Faça um exercício e pergunte às tutelas: Está a ser aplicado algum plano de ação para a prevenção da radicalização? Os vários intervenientes estão articulados? Está definido o papel da sociedade civil ou, por exemplo, das escolas ou serviços sociais? O Estado assegura formação específica para quem está no terreno? Há programas para combater o extremismo online? E nas prisões? Existe algum plano no âmbito da reabilitação e reintegração de extremistas violentos? A efetividade de políticas públicas e programas nesta área é avaliada?

Assumiu-se que a radicalização e o extremismo violento são um problema que nos passa ao lado. Há muito pouco a ser feito. E isso é grave. É um erro político de vários governos que nos pode sair caro! Temos tido sorte...

Felipe Pathé Duarte

As respostas não vão ser positivas. E isso é confrangedor. Assumiu-se que a radicalização e o extremismo violento são um problema que nos passa ao lado. Há muito pouco a ser feito. E isso é grave. É um erro político de vários governos que nos pode sair caro! Temos tido sorte...

Quais são as novas formas de radicalização e extremismo emergentes que mais preocupam atualmente?

Olhando para 2024, e de acordo com dados oficiais de Bruxelas, o jihadismo é o mais letal e com maior número de ataques. É seguido pela extrema-esquerda violenta e anarquistas, se tivermos em conta a quantidade de ataques. Mas nenhum teve consequências letais. Os ataques foram essencialmente contra património, tirando o caso de uma carta-bomba na Grécia. Considerando intenções, inferidas através do número de prisões feitas no ano passado, o jihadismo continua à frente, seguido da extrema-direita violenta.

Mas as alterações geopolíticas e a crescente digitalização das relações sociais estão a alterar os processos. Por um lado, há uma tendência pós-ideológica anti-sistema que tem levado a uma convergência operacional, juntando, por exemplo, supremacistas a movimentos anti-imperialistas, anti-semitas ou a ativistas climáticos. Por outro, a imersão na cultura online espoletou o aumento da radicalização de menores, a disseminação do discurso de ódio e a desinformação propagada por atores externos.

Ou seja, há uma propensão para a hibridização da radicalização e do extremismo-violento ao nível da motivação e operacionalidade. Hoje pode ser cada vez mais difícil distinguir um “atirador ativo” numa escola de um extremista violento.

Nos últimos anos fala-se cada vez mais de radicalização online, da disseminação de teorias da conspiração e do ressurgimento do extremismo de direita (bem como outros fenómenos como os movimentos “aceleracionistas”, grupos conspiracionistas anti-sistema ou até subculturas como os “incels”). Entre estas ameaças, quais destacaria como as mais urgentes e porquê?

A curto prazo, olhando para números e estrutura organizacional, para além da jihadismo, associado ao que está a acontecer no Médio Oriente, a extrema-direita violenta, por intenção, capacidade e oportunidade. A médio e longo prazo devemos considerar esta convergência e hibridização que referi, tendo como mote três variáveis: uma certa violência nihilista pós-ideológica (como o caso dos “acelaracionistas”), a polarização do debate público e a desconfiança nas instituições democráticas (que permite grupos “conspiracionistas”), e, mais importante de tudo, o interesse de atores externos que financiam e instrumentalizam estes movimentos.

Que papel têm as grandes plataformas online nesse fenómeno e que medidas de prevenção ou regulação poderiam ajudar a mitigar este risco, sem comprometer os valores democráticos (como a liberdade de expressão)?

Embora exista um quadro legal sólido a nível europeu, como o caso dos Regulamentos sobre Conteúdos Terroristas Online de 2021 ou dos Serviços Digitais de 2022, controlar a propagação de conteúdos ligados ao extremismo violento e a processos de radicalização online é um desafio. Para isso, é fundamental uma resposta multisetorial. Veja o caso da EU Internet Forum, pode ser um ponto de partida. Mas há muito a fazer por parte dos grandes prestadores de serviços online, nomeadamente no garante de responsabilização, na promoção de contra-narrativas, na implementação de sistemas robustos de moderação de conteúdos, no apoio à literacia digital, na melhoria dos mecanismos de denúncia e na adaptação a conteúdos gerados por IA...

O EU Knowledge Hub e outras iniciativas já estão a estudar temas como o uso de novas tecnologias por grupos extremistas – por exemplo, ainda recentemente soubemos de grupos de extrema-direita a contornar algoritmos de Inteligência Artificial para difundir conteúdos de ódio. O que falta ainda fazer, ao nível europeu e nacional, para adaptar a prevenção da radicalização a estas tendências? Há necessidade de novas legislações, de estratégias educativas, de maior cooperação entre Estados ou entre o setor público e privado (por exemplo, empresas tecnológicas) para conseguirmos antecipar e travar a próxima vaga de extremismo?

A resposta não é fácil. Mas há um conjunto há vários pontos para as quais devemos olhar com mais atenção. Por exemplo, é importante atualização dos quadros legais tendo em conta a regulamentação dos conteúdos gerados por IA, as plataformas encriptadas e as redes descentralizadas. Tal como já respondi na outra questão, é fundamental a colaboração com privados – para transparência e uso responsável dos sistemas algorítmicos que podem direcionar os utilizadores para materiais extremistas; devemos também apostar mais na promoção da literacia digital e no pensamento crítico dos mais jovens; e claro, fomentar a cooperação e partilha de informação e know-how.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt